segunda-feira, 30 de junho de 2008

COLUNA DO MÁRIO SIMON

UM SEMINARISTA EM APUROS


Acho que não se fazem mais seminaristas como antigamente. Hoje, na verdade, os seminaristas nem mais parecem que são filhotinhos de padres. Não os reconhecemos nas ruas, não se distinguem de outros jovens, nem mais andam recolhidos em seminários vetustos, espalhados pelos pátios daquele imenso casarão caminhando pra cá e pra lá, braços cruzados, tendo na mão direita um rosário por onde vão desfiando ave-marias e ladainhas intermináveis. Não se ouve mais o sino que batia chamando-os para o recolhimento do estudo em vastas salas. Foram-se, também, os corais dos seminários, aquelas vozes que de tão afinadas eram capazes de erguer um Beethoven do túmulo. Com oito vozes, as missas solenes eram entoadas em latim. E os seminaristas aprendiam a tocar harmônio, um instrumento que de tão obsoleto nem sei se ainda existe. Mas um bom padre deveria saber tocar harmônio. E decoravam as partituras. E matavam horas e horas, e junto se matavam no estafante pedalar o fole do instrumento.
E as sotainas negras que os seminaristas usavam para assistir à missa, diariamente. Eram batinas feitas a facão, umas parecendo mais uma camisola de pano preto batendo na canela em vez de cobrir o candidato a padre até o calcanhar. As batinas não sabiam que os meninos seminaristas cresciam rapidamente, como todo o adolescente que se preze.
E havia as mulheres, o demônio anda de saia para os seminaristas. Ah, nem vou falar do estrago que as mulheres fizeram, fazem e farão nos seminaristas. Uma mulher, que caísse do céu no meio de um bando de seminaristas, e que na queda o vento lhe erguesse a saia um palminho acima do joelho, era o mesmo que encher de filas intermináveis o confessionário nos próximos trinta dias. E todos com o mesmo pecado. Não, não vou falar das mulheres e os seminaristas. Eu não agüentaria minhas próprias lembranças! Vejam por quê!
Do seminário, fui aconselhado a retirar-me depois de oito anos de puro zelo pela minha vocação. E não foi por culpa de mulher, não. Foi por culpa de um homem que me delatou. Que eu namorava fulana, que eu beijara sicrana, que eu, que eu, tudo eu. Não era verdade, mas quem acredita em seminarista? Defenestraram-me, e a igreja perdeu um padre, e por culpa disso muitas almas se foram para o porão do inferno. Me aguardem que eu vou tirar vocês daí!
Em casa, poucos dias depois do triste episódio, triste e assustado como um gato perdido, ocorreu meu primeiro contado íntimo com uma mulher. Acontece que dei com os dentes para toda a família que eu sabia aplicar injeção, já que morávamos no Comandaí, lá ao lado de uma hoje famosa ponte construída por Luiz Carlos Prestes, e não havia pronto-socorro por perto. Comandaí fica ainda muito longe de tudo. Pois não é que aparece uma vizinha com sua filha, dezessete anos, alta, morena, linda de fazer até os cachorros calarem-se, que dirá um pobre seminarista indefeso. A mãe dela trazia uma ampola de injeção para que eu aplicasse na moça. O que ela tinha de doente? Nunca vou saber.
Eu disse que era melhor que ela fosse para Santo Ângelo, para Giruá, cidades vizinhas, para um lugar qualquer que eu estava de férias, que eu havia saído, que eu estava com indisposição para aplicar injeções. Desculpem, eu não disse nada: eu pensei. Minha boca devia estar aberta, mas não saía nada, talvez uma baba inútil. Mas eu só caí mesmo no chão quando a moça, choramingando, disse que só deixava dar a injeção se fosse na bunda. Usou dessa palavra mesmo, inimaginável na boca de um seminarista, muito menos na de uma donzela inefável, diante da qual eu podia rezar, e não dar uma injeção na bunda.
Quando me ajuntaram, eu já estava com o aparelho para aplicar a maldita injeção prontinho, fervido numa latinha, agulha fervida junto, e os olhares em torno que diziam para que eu levantasse a saia da menina e fizesse o serviço de enfermeiro. Pedi algodão, pedi álcool, pedi ar que já me faltava, pedi espaço, e pediria muito mais coisas se pudesse para não ter que ver o que um seminarista nunca viu, nem deve ver: uma bunda de moça.
Então, idéia brilhante assaltou-me. Disse que dava para dar a injeção na perna, um pouco acima do joelho, que era a mesma coisa. E enquanto a moçoila erguia a saia um palmo acima do joelho, embora aquele palmo de coxa me fez penar três meses, apliquei ali a injeção e saí correndo. Soube, mais tarde, que moça mancou dias com uma dor muito grande naquela perna. Mas que havia melhorado, graças a Deus e a umas benzeduras que a aconselharam fazer, por vias das dúvidas. E por via das dúvidas, evitei a moça por anos, certo de que um contato a mais com ela me levaria a perdição para sempre.

domingo, 29 de junho de 2008

VARIAÇÕES EM TORNO DO TEMA FIADASPUTAS

DINHEIRO DE BÊBADO TAMBÉM NÃO TEM DONO

João Eichbaum

Não foi por acordo prévio nem por qualquer outro tipo de combinação. O que nos une neste “blog”, debaixo do estilo “ridendo castigat mores”, é a força da atração dos semelhantes. A verve do Paulo Wainberg e o humor insinuante do Mário Simon (esse mais “ridendo” do que “castigando”) se unem às diatribes deste escriba para mostrar, aos que nos lêem, que a única coisa que nos resta é gozar com a cara dos que nos enganam. A nós, que não temos poder, só nos resta rir dos poderosos (esse é, no fundo, o sentido da frase latina “ridendo castigat mores”).
Pois um leitor, ou blogueiro, criticou a crônica do Paulo Wainberg, intitulada “Se comer bombom não dirija”. Pelo jeito, o mencionado leitor não entendeu o espírito da coisa: “como indignação de um jornalista que representa a classe A, está bem redigida a crônica. Mas como exame imparcial e desprovido de preconceitos, está falha. Por vários motivos, mistura coisas, confunde em vez de esclarecer”.
Ou seja, encheu a bola do Paulo para, logo depois, enfiar um prego nela.
Sem procuração do Paulo, mas conhecendo suas idéias, seu humor ferino, seu estilo “ridendo castigat mores”, tomo-lhe as dores e respondo.
Não é a lei que arranca a nossa indignação, mas a moral (eles a têm?) dos que a pariram. Falo da chamada “lei seca” ou “tolerância zero”, que está botando toda a polícia atrás de bêbados – como eu.
Claro, minha gente, meus amigos de copo e de cruz, (como diria o Chico Buarque) é muito mais fácil pegar bêbado, do quer pegar bandido, traficante, político corrupto, pessoal do MST, da Vila Campesina e de outras organizações nem tanto criminosas.
Para combater o crime, é preciso dinheiro. Mas, não há dinheiro para a segurança, como não o há para a educação, para o sistema carcerário, para o sistema viário (entregue às concessionárias), para a saúde. Então, peguemos o dinheiro dos bêbados.
Sim. Mas o que fazem com os nossos impostos? O que fazem com esse absinto que nos devora três meses de trabalho por ano, e é subtraído dos alimentos, da escola e da saúde de nossos filhos? Ah, esse vai para as mordomias dos presidentes e ex-presidentes da república, (sim, com letra minúscula) cassados ou não, equipados com seguranças, automóveis, e sustentados por pensões vitalícias. Vai para o mensalão, para os cartões corporativos, para as viagens e diárias de deputados e senadores, para os dirigentes dos sindicatos (há quantos anos o Lula não trabalhava, mesmo, antes de assumir a presidência da república?), para o MST que degola brigadianos, para a Vila Campesina, que destrói lavouras, para o “bolsa-eleição” que incentiva a preguiça, para os comunistas de antigamente e que hoje, graças a indenizações milionárias, se tornaram capitalistas – coitadinhos, seqüestradores, ex-assaltantes de bancos, parasitas da esquerda que só sabe berrar, enquanto a caravana passa.
Não somos contra a lei, gente. Somos contra essa cambada, que agora pega também o dinheiro dos bêbados, para sustentar a bandalheira nacional. Somos contra o engodo, contra a hipocrisia (há energúmenos anti-álcool que se consideram mais deuses do que J. Cristo, o qual não só tomava o seu vinhozinho, como providenciava para que não faltasse o precioso líquido nas festas), contra a fonte legislativa imoral: já que pardais, caetanos e radares estão mais do que manjados, é preciso criar outro poço de dinheiro, além do imposto aquele, chamado de “contribuição” para a saúde.
Ah, sim, somos contra, e não queremos sustentar mais CPIs, essas comédias sem graça que, ao cabo e ao fim, depois de eleitoreiras aparições na TV, concluem: é, o dinheiro sumiu.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

SE COMER BOMBOM, NÃO DIRIJA
Paulo Wainberg.


Exatamente, minha cara, não ouse comer um bombom recheado com licor na festa de aniversário do filho de uma amiga se, depois, for dirigindo para casa. Você estará cometendo um crime que, além de lhe custar quase mil reais, porá você na cadeia e não adianta chorar, pedir perdão e jurar que nunca mais.
A desfaçatez legislativa no Brasil só é menor do que os cerca de três bilhões e seiscentos milhões de reais por ano que nos custam senadores e deputados federais, isto apenas no “oficial”.
Tolerância zero não é isto que esta lei absurda que acaba de entrar em vigor significa. Muito pelo contrário. O crime consiste em dirigir embriagado o que não é a mesma coisa que dirigir após ingerir bebida alcoólica.
Porém nossos congressistas, devidamente sancionados por nosso Presidente, resolveram inverter o mando de campo, mudando a regra no meio do jogo: bebeu um xarope e dirigiu, se ferrou! Enquanto isso os corruptos contumazes, mensaleiros, propineiros, armadores e integrantes de esquemas, charlatães e mentirosos, gozam dos sagrados direitos de ampla defesa, espaços gigantescos nos cenários apropriados, auto-louvação e louvação alheia, desafios impetuosos e silêncios arrogantes para, no fim dos tempos, saírem de mãos limpas e caras lavadas, sem uma única multinha que seja, nem mesmo para pagar o tempo desperdiçado.
E, como de hábito, esquemas devem estar sendo armados para aproveitar essa verba extra que a nova lei disponibilizou e que, dentro de três a quatro anos a Polícia Federal vai descobrir, juntamente com o Ministério Público, gerando dezenas de CPIs “éticas” e processos judiciais postergáveis.
Em nome da transparência.
Naquilo que o Brasil precisa realmente de tolerância zero, temos tolerância máxima. Naquilo que o rigor da lei deveria desabar com toneladas de indignação sobre os delinqüentes juramentados aplicam-se os prazos processuais, os recursos, as instâncias e, novamente no fim dos tempos, a prescrição e a impunidade.
Não sou apólogo da bebida, muito pelo contrário. Acho que quem dirige embriagado deve ser severamente multado e preso. Automóvel mata muito, mas não sei se a maioria dos acidentes é causada por motoristas embriagados. Acho até que não. Aliás, se considerarmos a quantidade de carros que circula no país durante um dia, associada às condições das nossas estradas e à falta de planejamento de nossas cidades, o número de acidentes, estatisticamente falando, é ínfimo. Não sei se já fizeram essa conta mas assim, à olho nu, já é possível esta conclusão. Acontece que os jornais, as rádios e as TVs enfatizam cada acidente fatal – e fazem muito bem – porque a morte no trânsito é extremamente chocante, fútil e inútil. Morrer em acidente é a interrupção inglória e sem propósito de vidas em andamento. Pior do que isto é morrer com uma bala perdida de um tiroteio alheio.
De leis bombásticas e inócuas este país está cheio e nós, o povo, estamos chegando no limite de nossa tolerância.
Três bilhões e seiscentos milhões por ano, entre salários e benefícios! Quanto nos custa um discurso de seis horas no Senado vazio, com dois membros presentes em troca de um jantar? Quanto nos retornou, desse custo?
É o que você deve se perguntar, minha cara senhora, meu prezado amigo, quando sentir o doce gosto de chocolate derretendo em sua boca e perceber, tomado de pavor, que junto com ele vem um licorzinho posto ali só para complicar a sua vida.
Se tossir, não tome xarope, se tomar xarope não dirija e nunca, repito, nunca coma panquecas de maçã flambadas porque elas são flambadas sabe no que? No conhaque, demônio, no conhaque!
O que eu pergunto é: quanto falta para que nós, o povo, atinjamos a tolerância zero?

quarta-feira, 25 de junho de 2008

COLUNA DO MÁRIOSIMON

MISS BISTURI
Crônica de Mário Simon

Ela não gosta. Acha que Miss Bisturi não lhe cabe, nem por brincadeira. Isso de já ter feito 18 plásticas para adaptar seu perfil ao perfil de uma Miss Brasil não significa que precisou do bisturi em todas. Essa aqui, olha, nem dá para ver de tão pequena. Essa outra aqui na bochecha era uma pintinha de nadica. Tenho outras aqui quase na nádega, não dá para mostrar, né!
E ela sabe direitinho onde foram feitas as incisões. Conta-as, mostrando com o dedo onde estão espalhadas pelo corpo. Dá a impressão que está benzendo com o sinal da cruz toda aquela massa de carne esculpida, tantos foram os locais onde permitiu que se fizessem melhoras. Como se fosse uma escultura inacabada e, ela, o artista de si mesma, que vai dizendo alonga aqui, retira ali, raspe acolá... Olha, essa barriga da perna esquerda está pouco afunilada. Precisa retirar uns centímetros da canela. Ai, meu pescoço, pareço uma girafa! Corte um pouco da parte de cima. Recauchute meu bumbum, mas não mexa na cintura. Essa minha coluna está pouco curvada no meio deixando meu bumbum chato. Arrebite o bumbum com enchimento de silicone, ou tire duas ou três vértebras para criar a curvatura necessária para arrebitar o bumbum.
Mas quando passou pelo Miss Brasil e anteviu o Miss Universo, as coisas ficaram ainda mais sensíveis. A visão de si mesma, agora tridimensional, exigiu correções mais específicas, detalhes imperceptíveis para a maioria dos míseros mortais que só conhecem as paroquianas. Então descobriu que um braço era mais longo que o outro. Pouco, menos de três milímetros, mas o suficiente para desequilibrar o perfil. O mesmo problema descobriu na distância entre o nariz e a íris, centro dos olhos. Pouco também, um milímetro, um defeito que ela supunha poder deixá-la levemente estrábica. E havia a questão do tornozelo esquerdo, um defeito congênito que o fazia mais largo que o direito. Muito pouco, dois milímetros e meio, mas que, vistos de trás, dava a impressão de que ela pesava mais de um lado. Nenhuma estátua grega tinha um tornozelo maior do que o outro. Ah, o omoplata esquerdo que era mais longo e deixava a cabeça fora do centro. Isso era um drama terrível! Cabeça fora do centro só um pouquinho, meio milímetro, mas que a deixava louca só em pensar que algum jurado das arábias percebesse e fosse desclassificada por menos de um milímetro no omoplata! Terrível! O Brasil perder um título desses só por que tinha a cabeça fora de centro?
A tudo corrigiu esse fenômeno de beleza greco-moderna. Não saiu exatamente uma Vênus de Milo, mas quase . Na verdade, saiu à feição de uma mulher turbinada, melhor do que imaginava, conclusão a que chegou pela reação do vasto público que se foi formando em torno da escultura. Polêmica! Ela, particularmente, só tinha problema com o espelho, que continuava a lhe mostrar o avesso de sua cara e o inverso de sua atitude: se melhorava o corte da silhueta, não mudava o jeito de ser e sentir o mundo. Havia ali no espelho duas pessoas, agora. Ela mesma e o projeto pronto de si mesma. Mas isso não a abalou. Em algum lugar ela encontraria um cirurgião plástico que uniria outra vez ela com ela mesma.

terça-feira, 24 de junho de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

NEM ESTOU FALANDO em HERPES
Paulo Wainberg


Eu ia dizer que a diferença entre “hérnia” e “harpia” é que hérnia existe e harpia não.
Ah essa falta cultura, já afirmou Millor. Ou não foi ele?
Não fosse o Google e eu manteria a afirmação porque pesquisar em enciclopédias ou dicionários envolve um trabalho que minha preguiça – meu pecado capital preferido depois da luxúria – não tolera.
Descobri que “harpia” é uma ave de rapina brasileira – você sabia? – a maior do mundo, também conhecida na intimidade como falcão-real.
O que eu sabia é que a harpia, na mitologia grega, era uma ave de rapina com rosto de mulher e seios (ah, seios...) que não permitia que Lineu, um profeta cego, se alimentasse. Jasão, o comandante da nau Argos, que convocou os heróis gregos, entre eles Hércules e Orfeu, para que trouxessem o velocino de ouro que, no popular, significa uma pele de carneiro de ouro, criando um grupo chamado os Argonautas, nos dias de hoje renegada a uma possível banda de roquenrol, provavelmente “cover”, conseguiu, através de um expediente pouco ético, combater e vencer as harpias, permitindo assim que Lineu, atualmente interpretado por Marco Nannini em a Grande Família, finalmente pudesse comer em paz.
O resto da história com certeza você conhece.
Portanto, na real, hérnia e harpia são reais e cada uma exerce suas funções naturais, uma de atormentar os homens e a outra para rapinar, do alto de sua realeza.
Acho que os antigos gregos sofriam de hérnias terríveis e, poeticamente, inventaram as harpias para justificá-las.
Antes de entrar no assunto propriamente dito impõe-se esclarecer que as harpias seriam descendentes de Parsifae e seu amor tumultuado com um touro. O mais expressivo produto desse amor foi o Minotauro, monstro metade homem, metade touro. Ele gerou também Ariadne, fruto de uma transa como rei Minos, de Creta, que encomendou a Dédalo a construção do Labirinto, no qual aprisionou o Minotauro que ameaçava comer a ilha de Creta inteira, inclusive a própria mãe, onde é que já se viu?
Teseu (não confundir com tesão), determinado a destruir o monstro, resolve enfrentar os meandros do Labirinto, mesmo sabendo que todas as outras tentativas resultaram em morte horrível, devorados que foram os antecessores, pelo Minotauro ou pela fome, porque entravam lá e não conseguiam sair.
Ariadne, entretanto, apaixonou-se por Teseu e, para proteger o amado, oferece-lhe um fio, o famoso Fio de Ariadne, que guiou o herói Labirinto adentro, permitiu-lhe decepar a cabeça de touro do monstro e encontrar a saída sem qualquer esforço, seguindo o Fio da amada até, como se diz no vulgo, passar-lhe o fio a valer.
Teseu, agradecido mas nem tanto, leva Ariadne em seu cavalo branco para abandoná-la na primeira estalagem onde a jovem donzela padece pelo amor do ingrato. É então que Afrodite, compadecida mas não virgem, introduz Dionísio na vida da ninfa, ele mesmo, o futuro Baco romano, que toma Ariadne literalmente e com ela percorre sua trajetória devassa nos tortuosos meandros da sacanagem explícita, com todo o tipo de gente e de animal, reinando soberano sobre o vinho e seus eflúvios, ingressando no mundo moderno, depois de trocar de nome, sob o sugestivo e atraente programa, que a todos seduz, conhecido como bacanal ou, novamente no vulgo, suruba atômica.
Ficou claro?
Estas revelações, que estou fazendo em primeira mão, têm dois objetivos: o primeiro é para que você, que por acaso se chama Ariadne ou por este nome é conhecido, sinta-se orgulhoso do nome ou do epíteto. Você pode sentir-se altivo pois seu apelido é revelador de um apetite amoroso super dimensional, ultra-carismático, hiper-calamitoso, super-ultra-hiper-sensorial.
Capice?
O segundo é que, não se chamando Ariadne, não descender de harpias e nunca ter sido comido por um minotauro, outra sorte não lhe resta – ou não me resta – do que ser o trágico portador de uma hérnia de disco.
Você sabia que existem discos, na sua coluna vertebral? Pois é, eles existem e não são cds, ipods nem míseros long-plays. São discos de setenta e oito rotações, dos mais antigos, daqueles que você procura em duzentos e dezessete antiquários e não encontra.
Não perca tempo, meu caro, faça uma tomografia computadorizada, uma cintilografia ou, sei lá, uma radioscopia vituperal e encontrará dezenas de pequenos discos rodando a mil entre as vértebras de sua coluna, cada um deles tocando ao bel-prazer, desde o mais sórdido rap do bas-fond a mais eloqüente sinfonia dodecafônica do mais obscuro, desconhecido e ignorado compositor contemporâneo.
Isto quando está tudo numa boa.
Porque quando tais discos arranham e começam a saltar ou repetir o mesmo acorde ad infinitum, você vai saber o quanto dói uma ranhura, vai conhecer o verdadeiro significado da expressão a dor ensina a gemer e vai compreender o verdadeiro, legítimo e único significado da palavra paralisia.
E quando um piadista sem graça disser na TV que só dói quando ele ri, autorizo seu olhar de desdém, sua expressão de pouco caso e seu sentimento de auto-comiseração porque, posso garantir, assinar como avalista e hipotecar a casa própria, você, no lugar dele, estará dizendo que só dói quando você respira.
Sabe por que? Porque você cultivou hérnias no seu disco, prezado leitor, estimada leitora.
Hérnia de disco dilacera mais do que as garras de um falcão-rei ou de uma ave de rapina com rosto de mulher, seios (ah...) de mulher, dentes de vampiro e garras de falcão-rei, pode acreditar.
O primeiro sintoma é, por que não dizer?, sintomático: você levanta da cama e seu tronco forma um ângulo reto a partir da cintura para baixo. Sua cabeça está perpendicular à linha do colchão, o braço direito quase tocando o solo e é assim que você tenta caminhar, como se fosse um caranguejo ao contrário.
Evidentemente, como diria um deputado na CPI, você não consegue. A dor lancinante faz você sentir inveja de uma facada na cintura e, como um saco de batatas cheio até a metade, você desaba na cama, da cintura para cima no colchão e as pernas para o lado de fora, pesando e doendo como vou te contar.
É um momento sui-generis: você sente inveja da mulher que é serrada ao meio, no show do mágico. Você quer ser “Boris, o homem tronco”, lembra? E, num derradeiro gesto de humanidade, numa última manifestação de consciência você urra como uma foca dando à luz às mil e quinhentas foquinhas de uma só vez.
Você é o feliz possuidor de uma hérnia de disco, meu caro. Sua vida nunca mais será a mesma porque, como cocô no mosqueiro, você será invadido por hordas insaciáveis de neurologistas, traumatologistas, apucunturalistas japoneses, massagistas coreanos, injeções de cortisona e comprimidos antiinflamatórios. Além dos insaciáveis exemplificadores, amigos e conhecidos que sabem tudo a respeito e tem soluções infalíveis para resolver o drama, dentre elas a mais evocada, sugerida e aconselhada: bolsa de água quente e repouso.
Enquanto isso eu ali, estendido como um polvo anestesiado, sem posição, sem ânimo e sem sossego, doendo a perna e a cintura, implorando por uma harpia feroz que me devorasse a medula ou por uma canja de galinha que re-estabelecesse a até então cordial relação que sempre mantive com meu estômago.
Descobri, graças à hérnia de disco que, ao contrário do resto da humanidade que convive com a flora, possuo uma fauna intestinal constituída de bilhões de bichos microscópios cuja única finalidade na existência é provocar ardência, cólica, dores difusas e, para complementar, um pouco mais de ardência.
Se você for um grego antigo dê graças aos deuses do Olimpo e aos poetas de então, em especial, a Alceu, Safo e Anacreonte que, ao som magioso da lira, compuseram odes a tudo e a todos, abençoados por Apolo, Hera e Afrodite.
Caso contrário não exulte porque, levanta peso daqui, levanta peso dali, mais cedo ou mais tarde seus discos medulares arranharão e, quando você menos espera, abaixando-se para pegar uma página do jornal, amarrar os cordões do sapato ou pintar as unhas dos pés, uma harpia hernial dará o ar da graça e você conhecerá o verdadeiro significado do suplício de uma saudade.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

PORQUE NÃO ACREDITO NA JUSTIÇA

A DESEMBERGADORA E SEUS CINCO MARIDOS

João Eichbaum

Em matéria de página inteira o jornal Zero Hora, de domingo, dia 22 último, se ocupa de uma desembargadora a quem chama de “pioneira”, por ter sido a primeira mulher a ingressar nos quadros da magistratura do Rio Grande do Sul.
Pois a desembargadora, na matéria ornada de fotografias, alardeou aos quatro ventos, para quem quisesse saber, que teve – certamente até agora – cinco maridos, quatro dos quais levaram pé na bunda.
Acontece que essa desembargadora, enquanto teve o poder nas mãos, para decidir sobre a vida das pessoas, estava lotada na oitava câmara cível do Tribunal de Justiça, especializada em Direito de Família. Portanto, a desembargadora, mulher de cinco maridos (sucessivos, supõe-se) era uma das autoridades a quem incumbia dizer o direito nas questões de família que lhe eram submetidas.
“Oh tempora, oh mores”! A magistrada decidia exatamente (aqui não cabe o advérbio “justamente”, por razões óbvias) sobre aquele núcleo de toda a sociedade, que é a família, conforme está escrito no art. 226 da Constituição Federal.
Não conheço qualquer decisão dessa magistrada, não sei o que ela pensa sobre a família. A pergunta que faço é a seguinte: que conceito de “família” ou de “entidade familiar” pode ter uma pessoa que troca de marido ou de mulher com mais freqüência do que a pilha do seu celular? Será que, para a desembargadora, constituir família e “acasalar-se” é a mesma coisa? Mas, além disso, ao lado dessa conduta nada trivial, a desembargadora se jacta de ser “feminista de carteirinha”, de participar de “paradas gays”, contando que “veste uma echarpe colorida e, do alto do caminhão, grita palavras de ordem”.
Aqui, mais uma vez se prova que a justiça não é um ente etéreo, incorpóreo, desatrelado da humanidade e acima dela. Debaixo da toga está o primata humano, aquele ser cheio de defeitos, que teve a sorte de conseguir, com cruzinhas, abocanhar uma fatia de poder para decidir sobre a vida dos outros.
A toga não dignifica as pessoas, mas há pessoas que podem dignificar a toga.

domingo, 22 de junho de 2008

COLUNA DO MÁRIO SIMON

BENZEDURAS
Crônica de Mário Simon

Você não acredita? Como todo mundo, certamente que não, mas que, paradoxalmente, que sim! Benzedura é assim como as bruxas: no lo creo, pero que las hai, las hai!
Benzedura é coisa do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça. Vem do antes tempo! De um tempo definitivamente enterrado pela cibernética. Aos poucos vão sumindo os velhos benzedores, as velhas curandeiras, as antiquíssimas senhoras que dominavam os mistérios dos cobreiros, das erisipelas, dos furúnculos encravados, dos unheiros e mijacões, dos sapinhos, dos panarícios, das espinhelas caídas, das bicheiras e barrigas d'água e de tantos dói-que-dói.
Mas você não acredita! Nem nunca ouviu falar em unheiro ou em mijacão. Estes também vão sumindo. Tomaram outros nomes, mudaram de endereço, transferiram-se para outras regiões. O mijacão, tão popular, para onde foi? Este, conheci-o bem, instalado que esteve na sola do meu pé direito no verão de 1946. Dizem que se pegava quando a gente pisava num local onde um cachorro havia mijado. Daí, talvez, o nome mijacão.
Primeiro era uma coceirinha do tipo bicho-de-pé. Depois, um ponto amarelado. Em seguida, uma dor infernal que obrigava o cristão a andar na ponta do pé. Então o remédio era colocar no local meio quilo de açúcar com banha de porco para chupar o furúnculo dolorido. Um mijacão equivalia a um trauma para o resto da vida, e não sabíamos. Até o coração mudava de lugar e batia, batia a noite toda lá na sola do pé.
Mas eu fui premiado, também, com um unheiro. Foi na ponta do indicador da mão esquerda. De repente não podia mais tocar em nada com esse dedo. Então surgiram mil remédios.
- O melhor que tem pra isso daí é enfiar o dedo no caldo de feijão fervendo até não agüentar mais.
Enfiei! Mas não comi o feijão. Os outros comeram porque não sabiam que eu havia praticado, no desespero, o remédio. Não adiantou, pois até pior.
- O feijão não resolveu? Mete o dedo na polenta quando está quase pronta. É muito melhor.
Não tive coragem. Não pelo dedo, mas pela polenta, tão cheirosa, bonita, redondinha na panela fazendo os últimos pluf-pluf. Foi aí que dei com uma benzedeira.
- Vem lá em casa antes do sol nascer.
Mal o horizonte branqueou, lá me fui depois que uma noite inteira apontando o dedo para o céu me convenceu pela metade. A outra metade do convencimento veio de uma velha empregada da casa que dizia:
- Que mal hai numa benzida?
A benzedeira me esperava com um mate já lavado de tão madrugador. Com um olho no céu e outro na cuia, a velha senhora cuidava o nascente. E quando os primeiros piscos do sol adentraram na sala, ela me levou até uma porta que dava para o astro da luz. Mandou-me que colocasse o dedo em brasa no batente e foi fechando a porta devagar como que para esmagar o indicador quando eu menos esperasse. Confesso que temi pela minha integridade física. Só não saí em debandada porque ela ia proferindo palavras ininteligíveis, apelando para almas perdidas e outras coisas de fogo e de sombras.
O sol avançava, me lembro. E quando ele arredondou inteiramente, a benzedeira disse:
- Pronto! Se continuar doendo, volte aqui amanhã. Caso contrário, reze três pai-nossos e três ave-marias para as almas do limbo.
Você não acredita? Nem eu acreditava. Mas não precisei voltar ao benzimento. A dor foi sumindo no correr do dia e, à noite, pude dormir como um frei gordo. O unheiro desapareceu em dois dias. O que não me lembro é se rezei a penitência imposta pela velha benzedeira.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

crônicas apolíticas


QUEM DESDENHA QUER COMPRAR
Paulo Wainberg






O Cinismo surgiu como Escola Filosófica grega, fundada por Antístenes, discípulo de Sócrates, que pregava o total desapego aos bens materiais e externos.
Seu maior expoente foi Diógenes que difundiu a corrente filosófica pregando que o homem feliz é totalmente desapegado das coisas materiais, do reconhecimento alheio, do sofrimento e da dor.
Para os Cínicos a virtude residia na conquista moral do homem naquilo que lhe é intrínseco e não nas conquistas materiais ou no reconhecimento alheio. Alexandre Magno certa vez parou diante do barril onde morava Diógenes e ofereceu-lhe a realização de um desejo. A resposta: - desejo apenas que te afastes do meu sol.
Ou seja, Diógenes era feliz com o que tinha e tinha apenas o que a Natureza lhe oferecia.
O cinismo que, em grego, significava “próprio dos cães”, passou à posteridade, graças à evolução etimológica da palavra e às diversas correntes de pensamento futuras, como sinônimo de pessoa sem pudor, inescrupulosa, egoísta e indiferente ao sofrimento alheio.
É deste conceito de cinismo que vou tratar.
A hipocrisia consiste em fingir acreditar no que não se acredita, demonstrar sentimentos que não se possui, acusar alguém de praticar atos que também pratica, pregar a imoralidade sendo, ele mesmo um imoral.
A hipocrisia vem a ser a negação do próprio cinismo.
O sistema político americano é cínico mas não hipócrita, embora a hipocrisia ética, nos Estados Unidos, seja uma prática constante. Lá os denominados lobistas são oficiais, profissionais da busca de favores em benefício deste ou daquele em troca de votos ou de contribuições financeiras. Lá os políticos editam normas e leis em resposta aos interesses dos representados pelos lobistas desde que o conceito de “bem comum” não seja profundamente violado, sem esconder, interna ou externamente, as vantagens pessoais auferidas.
São cínicos mas não são hipócritas.
No Brasil é diferente. Aqui o cinismo é negado com veemência, cada político é um arauto da ética, um defensor intransigente do “bem comum”, o lobista é suspeito e até criminoso e, embora seja prática comum como se está observando, as vantagens pessoais são negadas e as acusações contestadas com vigor digno de um cavaleiro andante, de um Príncipe Valente, de um abençoado participante da Távola Redonda na Corte do Rei Artur.
Prevalece a forma sobre o conteúdo como, por exemplo, no caso dos Cartões de Crédito Corporativos: Ocupou-se o parlamento federal, na CPI correspondente, do vazamento do “dossiê”, deixando de lado os gastos espúrios do “governo anterior” porque isto significaria ter que se ocupar dos gastos espúrios do “atual governo”.
Roberto Jefferson pôs a público uma parte do que se passa nas internas políticas, as barganhas, trocas de influência, exercício de poder econômico, pagamento em espécie (dólares e reais) por votos, mas não tinha gravação a sustentar-lhe a palavra. Resultado: pouquíssimos parlamentares punidos e a grande maioria absolvida.
E ninguém condenado judicialmente.
Por aqui se discute prioritariamente a “conduta ética” do vice-governador por ter gravado uma conversa com o Chefe da Casa Civil, visando minimizar o que foi dito porque o que foi dito atinge toda classe política.
“Aquilo que todo o mundo sabe” foi exposto numa gravação. Revelou-se o modo como os políticos conversam entre si, revelou-se que todos sabem das fraudes, das irregularidades, revelou-se que há um rabo preso coletivo e que ninguém é inocente.
A hipocrisia consiste em cobrar-se moralidade aqui e defender a imoralidade acolá, em negar-se publicamente que a política no Brasil é feita como se fosse um mercado persa onde a pechincha predomina sobre o valor do negócio e onde a glória da honestidade consiste em obter o melhor preço, em conseguir a maior vantagem desde que nada se revele.
Negar o cinismo é a mais perniciosa forma de hipocrisia, esta que vem sustentando a política brasileira desde que D. Pedro I instituiu o Poder Moderador.
“Aquilo que todo o mundo sabe”, isto é, o conchavo de quintal, a troca, a compra e venda, a melhoria do padrão pessoal, o uso do Poder em benefício próprio e a revelação estupenda de que basta uma ordem “de cima” para que tal ou qual presidente ou diretor de órgão público conceda este ou aquele favor a quem interessar no momento, agora é realmente o que todo o mundo sabe, é como se uma criança inocente, ainda não corrompida pela maturidade e pelos interesses pessoais, gritasse na frente das câmeras de televisão: O Rei está nu!
E todos aqueles que “viam” a roupa invisível do rei fossem atropelados pela verdade indiscutível.
O problema é que, assistindo depoimentos e declarações, lendo notas oficiais e rompantes de indignação, fico com a sensação de que nada vai mudar, os panos quentes serão adequadamente colocados sobre as feridas expostas e, como já está acontecendo os execráveis de hoje retornarão à cena pública, amparados em um poder concedido que nem a mais abjeta das condutas conseguiu arranhar.
Não há democracia que resista a tantos impactos da corrupção, da mentira e do faz-de-conta institucional.
Portanto alertemo-nos, fiquemos atentos e lutemos por uma reforma radical do Estado Brasileiro e de nossa Constituição, antes que algum sorrateiro aproveite a brecha e tome conta, como outros fizeram no século vinte, hipocritamente cínico a defender as “legítimas instituições democráticas ameaçadas”.

COLUNA DO PAULO WAINBERG

CRÔNICAS APOLÍTICAS


OS DESÍGNIOS DA PAIXÃO
Paulo Wainberg






Quando você ama alguém pode se apaixonar por outro, mas quando está apaixonado por alguém, não se apaixona por outro.
Digo mais que é para não restar pedra sobre pedra, neste assunto: Quando você ama alguém, pode amar outro e quando você está apaixonado por alguém pode continuar amando outro.
O amor é o conjunto de várias coisas: você ama o jeitinho dela sorrir, o modo como ele coça o nariz quando está triste, o suspiro que ela dá logo depois, o cuidado dele com as crianças.
Você pode amar outro(a) ao mesmo tempo porque ele(a) diz coisas diferentes, trata você com outras ternuras, quando toca sua mão é um arrepio, você admira a inteligência dele(a), gosta do tom de voz, o cabelo, a cor do olho, o pé bonito.
O amor envolve prazer na convivência, amizade, companheirismo, gostos compatíveis, pequenos (mas enormes) momentos de convívio, brigas por bobagens, desentendimentos, respeito e compreensão mútuos.
Afirmo, do alto de minha inesgotável sabedoria amortecida por infinita modéstia, que é impossível amar duas pessoas ao mesmo tempo sem prejuízo de nenhum dos amores.
Paixão é diferente.
Apaixonados não pensam, reagem. Apaixonados não pedem, tomam. Apaixonados não resistem e se entregam.
Alguns apaixonados, em homenagem aos verdadeiros amores, postergam, recuam, hesitam, mas sabem que estão adiando o inevitável e que, mais cedo ou mais tarde, sucumbirão ao apelo da paixão.
Quando o amor é para um(a) e a paixão é para outro(a), minha doce amiga, meu prezado amigo, as culpas passam a ter nome: traição, fidelidade, honra, pecado, prurido e... medo.
A sina dos apaixonados é saber que a paixão é efêmera e o risco que correm, maior do que qualquer outro, até mesmo o de ser descoberto ou flagrado, é que ela se transforme em amor.
Quando isto acontece, de a paixão se transformar em amor, vem o tormento da escolha porque, entre dois amores, nenhum dilema é maior para o ser humano.
Apesar de parecer cinismo, não é. Entregar-se à paixão é um proveito próprio, sem prejudicar ninguém, nem mesmo à pessoa amada.
O custo é alto reconheço, porque a paixão, quanto mais proibida, mas exige em cuidados, em sigilos, em subterfúgios e em uma boa dose de prazer perverso de sentir-se acima dos demais, capaz de tamanha nobreza de sentimentos, de usufruir emoções intensas como ninguém, na opinião dos apaixonados, será capaz.
Em cada encontro, em cada olhar sub-reptício, em cada roçar eventual de braços ou mãos, em cada frase codificada, perpetua-se o desejo inerente da contravenção e do desafio ao perigo, tão natural na essência humana.
Os apaixonados rendem permanente homenagem à própria grandeza e à pureza primitiva dos seus sentimentos: o prazer pelo prazer.
Quer coisa melhor?
Quando a coisa evolui e a paixão cede, lentamente, lugar ao amor, aí começa o drama, a porca torce o rabo, a cobra vai fumar.
Dois ambientes amorosos podem co-existir por um tempo, mas são incompatíveis por definição.
O momento inevitável da escolha vai chegar por mais que você afaste a idéia do pensamento com a simplicidade de quem arranca uma felpa do dedo.
Quando você percebe que seu gesto amoroso para um(a) infesta você de culpa por causa do outro(a), pode crer, a colisão está bem ali, uma imensa parede esperando por você, pronta para esborrachar você em mil pedaços que levarão muito tempo para se reunirem novamente.
Não dá mais, você não consegue continuar assim, vem o dia dramático, a hora desesperada em que, entre dois amores, você escolhe um e abandona o outro.
Metade de você ficará um bom tempo dilacerado, mas o tempo, ele mesmo, se encarrega de recompor a ferida e mais tarde restará uma doce lembrança, acalentadora e rica, do período de sua vida em que você foi plenamente feliz.
O outro, o amor abandonado, bem, ele vai ter que se virar sozinho entre o ódio, o ciúme, a compreensão, o carinho e a própria existência.
Caso a sua paixão se esgote comme il faut, as sensações perdendo intensidade aos poucos, as emoções esfriando ao ar livre, talvez reste um resquício de culpa mística, algo assim de leve, a lembrar que você foi fraco(a) uma vez na vida, mas lá no fundo a certeza de que valeu à pena, você não podia passar a vida inteira sem saber, afinal de contas, como é que “os outros” vivem.
Pessoalmente acho que a paixão é o verdadeiro sentido da vida e o amor a sua explicação. Cada coisa no seu lugar.
Quem nunca atirou a primeira pedra que ponha um telhado de vidro, use guarda-chuva de papel, calce sapatos de lama e vista a roupa invisível do rei.
Ou finja que não está nem aí, o que vem de baixo não lhe atinge e interne-se num mosteiro.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

COISAS DA VIDA

SÓ QUEM MORA EM MANSÃO RESPEITA O RIO GRANDF

João Eichbaum

“Não dá para morar, a governadora, com a altivez de governadora, respeitando o Rio Grande do Sul, em um apartamento de um quarto. Comprei a casa digna.”
Atenção, professores de português, (mal) pagos pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, essas palavras não foram proferidas por moradores de rua, nem por marginais analfabetos, nem por crianças que tropeçam no vocabulário. São palavras da senhora Ieda Crusius, transcritas no jornal Zero Hora, edição do dia 15 de junho de 2008.
Permitamo-nos alguns comentários.
O verbo dar é um verbo transitivo. Exige, portanto, objeto direto. Quando se dá, se dá alguma coisa. Pode-se dar alguma coisa em algum lugar: num apartamento de um quarto, numa casa modesta, numa mansão, ou – por que não? - num motel.
O verbo dar nunca foi sinônimo de poder, ser possível.
Mas, o que a senhora Ieda Crusius quis dizer foi que não pode a governadora, com a altivez de governadora, morar num apartamento de um quarto. Ela precisa de muitos quartos, certamente, porque a altivez da dita governadora, não cabe em espaços pequenos.
Eu não sabia – e confesso minha ignorância – que a altivez faz parte do cargo ou das malas e bagagens de quem governa seja lá o que for. E não sabia também que a mesma altivez é um substantivo concreto que exige espaço, dimensões, estrutura, metros e metros quadrados.
Também não sabia que o Rio Grande do Sul, para ser respeitado, exige que as pessoas morem numa casa “digna”.
Atenção, portanto, moradores de apartamentos de um só quarto! Nem falo dos moradores de rua, dos que habitam debaixo das pontes, dos que pagam prestações para o BNH, dos que moram nas vilas, com ruas esburacadas, com esgoto a céu aberto, sem água, sem luz, etc. Parem de desrespeitar o Rio Grande do Sul!
Muita gente faz esgares de dúvida, quando se diz que o ser humano, como os bonobos e os chimpanzés, é um primata. E sendo um primata, ele não é, por essência, um escrínio de dignidade. A dignidade ele a adquire, ou a constrói. A dignidade não nasce com ele, não faz parte de sua natureza, não é uma condição ontológica de sua vida em grupo. Então, se ele não a tem, se não a construiu, se não a agregou ao seu caráter, só resta comprá-la. Mesmo que não explique donde saiu o dinheiro para tal negócio.
E mais: a dignidade não está nos cargos, nas funções. A dignidade está na pessoa que a construiu. Se a pessoa não construiu a dignidade, ela não irá encontrá-la no cargo que irá exercer. Um varredor de rua, se desempenhar sua função com honestidade, com a dignidade que construiu em si mesmo, levará essa dignidade para a função que exerce. O mesmo não se poderá dizer de um político desonesto, enganador, falacioso: o cargo não o dignificará porque ele não tem dignidade em si mesmo.
Dona Ieda, a dignidade não está nos palácios, nem nas mansões, senão nas pessoas. Não existem casas “dignas”, mas qualquer barraco se torna digno com a pletora de dignidade da pessoa que o habita.

terça-feira, 17 de junho de 2008

COLUNA DO MÁRIO SIMON

PRESSENTIMENTOS
Mário Simon

- Ele tinha a minha idade – falou baixinho Alberto depois de minutos em silêncio diante do túmulo.
Na entonação da voz havia mais do que uma constatação: uma denúncia, detalhe que não passou despercebido pela mulher, Dora, que sempre o acompanhava ao cemitério. Ela conhecia aquele silêncio a que Alberto se impunha sempre que visitava o jazigo do pai anualmente. Tanto conhecia que nunca se preocupara com o que o marido pudesse estar pensando nessa quietude. Afinal, há vinte anos que o sogro partira e há vinte anos que esta cena se repetia. Rezar? Não, Alberto não rezava nunca! Mas, desta vez, pareceu a Dora que o silêncio fora mais inquieto, mais profundo, cheio de significados expostos na superfície do semblante, na voz murmurada.
- Sessenta anos, Dora! – completou Alberto.
Ela achegou-se acarinhando o braço do marido sem dizer nada. Mas duas rugas entre as sobrancelhas de Dora determinaram o rumo do seu pensamento. Alguma coisa que doeu por dentro, talvez. Ou, talvez, um arrepio, um medo passando de cruzada por ali, uma visão de coisas que a gente não quer saber. E sem que se desse conta, um aperto foi cobrindo o coração da mulher.
Em casa, horas depois, ela escolhia um melhor momento para comentar com o marido o que a perturbava. As palavras ouvidas no cemitério batiam nas paredes da cozinha, da sala, do quarto que era por onde Dora ia e vinha sem motivo aparente. Naquela ansiedade, chegou a colocar uma chaleira com água para ferver, desligando as chamas do fogão logo em seguida.
Na sala de estar, Alberto examinava as manchetes de um jornal diante da televisão ligada. Dora julgou que era esse o momento de pôr um fim na sua crescente angústia, e sentou-se ao lado do marido. Temia retomar o assunto de forma errada, ou de jeito que Alberto não se interessasse. Finalmente, optou por ir devagar.
- O teu pai iria fazer oitenta anos no mês que vem, não é?
Alberto continuou calado, olhos nas manchetes, como se não tivesse ouvido o que a mulher dizia. De repente, largou o jornal sobre a mesinha de centro e, olhos nos olhos de Dora, falou pausadamente, mas firme, como que continuando a frase.
- E eu sessenta e um! Ele morreu aos sessenta.
Outra vez a mulher pode notar aquele tom de revolta nas palavras do marido. Pensou um instante e decidiu abrir-se de vez.
- E está com medo de morrer com a mesma idade?
Ele ficou surpreso, tal a seriedade com que a mulher fez a pergunta. Então entendeu o que estava acontecendo com Dora e seu vaivém nervoso. Não, não era isso, absolutamente, o que se passava no seu interior. Ela se enganara, confundira tudo. Por que teria medo de morrer agora? Só porque o pai se fora aos sessenta não significava que ele também morreria nessa idade. Não, nada disso! Achou que deveria corrigir o mal-entendido.
- Mulher, você entendeu tudo errado. O que eu quis dizer é que, com meus sessenta anos, faço tantas coisas e tenho tanto a fazer que me surpreende o que sinto. Comparo-me com meu pai porque tenho hoje a idade que ele tinha quando morreu. Papai me parecia mais velho do que eu sou com os mesmos sessenta, entende? E não se trata da conversa fiada de que juventude é uma questão de espírito! Me sinto jovem, mesmo! Veja, eu faço, ainda, praticamente tudo o que fazia há trinta anos atrás. Não enxergo no espelho a minha cara mais velha, nem sinto o meu corpo diferente de antes. Por isso acho que foi uma injustiça papai ter morrido aos sessenta anos. É isso! Qual é o problema!
Dora sorriu talvez aliviada. Passou as costas dos dedos carinhosamente no rosto do marido, uma, duas, três vezes. Não falou mais. Nem achava o que falar, entre confusa e decepcionada. Nunca imaginara que era assim que se sentia o marido, tão diferente dela. Tinha consciência de todos os problemas que seus cinqüenta e oito anos lhe trouxeram, a menopausa, a osteoporose, as rugas, as varizes doloridas. Por alguns momentos até invejou a maneira do marido sentir-se a si mesmo. Não estaria ela menosprezando sua própria capacidade de ainda viver a vida?
Logo depois, enquanto preparava algo para a janta, outra vez sentia bater nas paredes da cozinha, não mais as palavras que ouvira no cemitério, mas a explicação que Alberto dera. Se na hora soou otimista, agora uma nuvem sombreava devagar seu pensamento. E o que era, inicialmente, uma dúvida enfumaçada, foi ficando claro, dolorosamente claro: o marido enganava-se a si mesmo. Seria possível ao homem não perceber o próprio envelhecimento? Será que Alberto não se dava conta de seus passos mais lentos, da dificuldade para subir escadas, de amarrar os cadarços dos sapatos, de erguer pesos, de correr, da barriga exagerada? E o desinteresse para sair de casa, para passear, para ir a um restaurante? E o espaçamento cada vez maior na busca do sexo, antes sempre renovado? E as dores nas costas, nos braços, nas juntas dos dedos de que se queixava freqüentemente? E a hipertensão que identificara aos cinqüenta anos? E o pescoço e as costas das mãos cobertos de rugas, e rugas no rosto, e o cabelo grisalho? Sim, Alberto enganava-se a si mesmo, e isso não era bom! Estava envelhecendo, mas não aceitava.
O jantar, como de costume, aconteceu com poucas palavras. Ele sempre com o ouvido num noticiário que vinha de um radinho perdido entre os pratos. Ela, desta vez, não dava atenção para o locutor e observava o rosto, o jeito de comer, as reações do marido, para ela, tão de repente, um quase estranho ali na mesa. Tinha vontade de falar as coisas que a amarguravam, mas não encontrava coragem. E coragem não teve nessa noite. Alguma coisa mudava nela em relação ao homem que estava ali, inapelavelmente, profundamente. Não era mais o Alberto, seu marido, mas um ser frágil, inseguro, desorientado e muito mais velho do que sempre lhe parecera. Debalde tentou resistir à sensação de que a vida estava lhe aprontando coisas sobre o que não estava preparada. Pressentimentos de solidão, imagens tristes que tentava afugentar, uma aflição intensa sem que pudesse explicar por quê!
Nessa noite, na cama, quando se acordou no meio de pequenos pesadelos, prendeu a respiração por instantes para certificar-se de que Alberto dormia, e somente dormia.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

CRÔNICAS ANTÍQUAS


ATO TRÊS CENA DOIS
Paulo Wainberg


HAMLÉTICO: - Ter ou não ter... eis a questão. O que fazer, minh’alma para satisfazer tamanha ambição? Amealhar moedas e arriscar tudo perder por causa da inflação ou erro na aplicação ou, ai que tremo, por causa do ladrão? Ou aderir, incorporar, enturmar no Primeiro Escalão, gozando as benesses do Poder e ficar rico, sem temor de investir no Exterior até mais não poder, graças à corrupção?
- Morrer... Dormir... Sonhar talvez? Justo eu que, como um sonho da Renascença e produto do Humanismo ideal, a mercê de feroz batalha financeira e joguete do capitalismo internacional, mereço viver tal problema? Encarar e padecer diante de tão cruel dilema?
- É aí que a porca torce o rabo.Como fazer e onde buscar alma forte para suportar os juros bancários, a fúria dos empresários e, o que é pior, eis que os deuses já não aceitam pouca oferenda, conseguir notas frias e outros que tais para sonegar o Imposto de Renda?
- Quem há de tolerar o desprezo e escárnio dos fortes, as injustiças da sorte, o deboche dos políticos e sua zombaria obscena se tão poucos sãos patrícios ou abençoados pela loteria e mega-sena?
- Ah meu pai! Terias coragem de colocar em minha boca indagações ontológicas neste mundo de hoje, em que a questão de fundo, imoral e escatológica, é primeiro ter e depois, se possível, ser?
- Sonhar... Morrer... Não enfeitar o corpo com anéis e pulseiras argentinas, esquecer os casacos de couro, a cotação do ouro e os drinques, à beira das piscinas? E despertar desse sono mortal – se é que despertar, em tal circunstância, é vital – tendo pela frente a luta pela sobrevivência ou para eliminar a concorrência e evitar a falência?
- Ora senhor desta arte literária, espelho de uma paródia, ter ou não ter, ser ou não ser, entra ano e sai ano e eu aqui, frustrado e sem abandonar o natural fervor de minha resolução: ganhar um milhão, em dinheiro americano. E fui buscar inspiração num poeta parnasiano cuja glória secular – para gáudio das estrelas com quem costumava falar – foi tornar obrigatório o Serviço Militar! Mas... silêncio.... aí vem Ofélica
(Para Ofélica)
HAMLÉTICO - Em tuas orações, ninfa, recorda-te das minhas ambições.
OFÉLICA: - Quanto tens ganhando, no correr dos dias?
HAMLÉTICO: - Muitíssimo pouco, obrigado.
OFÉLICA: - Venho até aqui para agradecer-te o mimo.
HAMLÉTICO: Que mimo? Nunca te dei nada. Eu não! Eu não!
OFÉLICA: - Bem sabes que deste. Embora a qualidade deixe dúvidas não esqueço a gentileza.
HAMLÉTICO: - Repito, nada te dei!
OFÉLICA: - Nobre príncipe, herdeiro da realeza, sabes muito bem que só abro a boca quando tenho certeza.
HAMLÉTICO: - Então cala-te, mulher! Não me vez aqui, meditabundo, procurando um jeito de cobrir este cheque sem fundo?
OFÉLICA, falando de lado: - Os mimos se empobrecem, para uma alma bem nascida...
HAMLÉTICO: - Arrá! És rica?
OFÉLICA: - Como assim?
HAMLÉTICO: - És herdeira?
OFÉLICA: - Não compreendo, meu senhor.
HAMLÉTICO: Bela Ofélica, se unires os dotes da riqueza própria com o substancial legado de teus pais, estarei sempre ao teu lado, não te deixarei jamais. Tomo-te por esposa!
OFÉLICA: - Oh!!!
HAMLÉTICO: - Caso contrário despacha-te que tenho de pensar em outra coisa. Faz melhor, entra para um convento.
OFÉLICA: - Convento?
HAMLÉTICO - Sim, convento. Lá poderás fugir das prestações atrasadas, dos juros do cheque especial acumulados e, o que é melhor para tua sina, do aumento do preço da gasolina. Adeus.

(HAMLÉTICO SAI)

OFÉLICA : - Poderes celestiais devolvei-lhe a razão! Quanta inteligência posta fora! Para que servem ideais tão nobres em pessoas tão pobres. Não muito e, de Hamlético, príncipe tão nobre, se lhe desgarrarão a decência e a bondade e estará, como um sabujo, à porta dos políticos, assessores e secretários, lambendo-lhes a mão e mendigando cargos e funções banais com ótima remuneração e excelentes repercussões sociais. De quais trevas obscuras terá vindo a assombração que de sua alma tomou posse? E que o transformou, de forma tão precoce, em arraigado sovina? Para tal doença haverá cura na medicina?

(ENTRA O REI)

O REI: - Tarde demais, doce Ofélica. Mas digo-te, com alma leve e sem rancor que Hamlético, por influências laterais e sem qualquer favor, haverá de ser um dia o chefe de gabinete de algum Governador. E quem sabe, se assim eu desejar, graças ao bolsa-família e ao meu terceiro mandato, ele venha a ser, por força da própria instituição, um candidato, quando houver eleição.
OFÉLICA: - Oh mai lorde, será Hamlético apenas mais um caso de cão que late e não morde?
O REI:- Igualzinho à minha querida oposição, menas mal, dietética leide, menas mal. E, como sempre, eu de nada sabia.
HAMLÉTICO (de longe): ... do que sabe a nossa vã filosofia.
CAI O PANO

(Publicada em 1982 no livro O Homem de Papel, com pequenas adaptações pertinentes).

sexta-feira, 13 de junho de 2008

COISAS DA VIDA

O “SANTÍSSIMO”
João Eichbaum

Para enganar a morte e fingir que está começando tudo de novo, a gente, quando fica velho, gosta de voltar aos tempos de criança.
Foi o que fizemos, um grupo de ex-alunos da Escola Rainha dos Apóstolos, de Vale Vêneto. Reunimo-nos em Santa Maria, para recordar aqueles tempos do começo de nossas vidas. Com missa em latim e tudo o mais. Pouco antes do horário marcado para a missa, começaram a chegar os ex-colegas, alguns de cabelos brancos, outros carecas, gente de cabelo pintado, mas todos com o rosto marcado pela passagem inexorável do tempo. Em poucos minutos havíamos formado uma horda de velhinhos contentes. E aí, é natural, a gente vira criança, ri, se abraça com tapas barulhentos nas costas, comenta essa passagem do tempo, que se vê só nos outros, porque temos espelhos mentirosos em casa. Sabe aquela mistura de disposição e alegria? O burburinho se torna inevitável.
E foi aí, no meio da nossa infantil alegria de velhos, que irrompeu no altar uma mulher, dessas que não tiram o sono de ninguém, uma encalhada vestida de freira, sem bunda, sem trato nenhum na periquita, reta como tábua de passar roupa e, autoritária, nos passou o maior esculacho, pedindo silêncio, em respeito ao “Santíssimo”.
Para quem não sabe, explico o que vem a ser o “Santíssimo”. Diz a Igreja Católica que, na missa, ocorre o fenômeno da transubstanciação. O padre pega o vinho, que um acólito lhe entrega, e mais as hóstias, feitas com farinha e água, sem sal, e faz disso tudo o “corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”. A isso é que se chama de transubstanciação. O que sobra das hóstias que o povo cristão não consome na “eucaristia”, chamada também de “comunhão”, fica num cálice revestido em ouro, que é guardado numa espécie de armário, chamado de tabernáculo, no altar.
A essas hóstias, ditas consagradas, se chama “Santíssimo”. Então o “Santíssimo” outra coisa não é, para os crentes católicos, senão o próprio Jesus Cristo vivo, em carne e osso, embora a gente seja levado a pensar que, sem o sangue, que foi consumido pelo padre, é um pouco difícil viver.
Mas, seja como for, Jesus Cristo é o “Santíssimo”.
Ora, pelo que se sabe, através do novo testamento, escrito pelos evangelistas Lucas, Mateus, João e Marcos, o “Santíssimo” freqüentava festas e bebia vinho. E quando faltava vinho ele dava um jeito. E gostava de mulheres. Por exemplo, conta Marcos, no capítulo 14, versículos 3 e seguintes, que estando o dito “Santíssimo” na casa de um tal de Simão, onde fora convidado para jantar, chegou-se a ele uma mulher com um vaso de alabastro e um ungüento de nardo puro, quebrou o vaso e lhe derramou o ungüento sobre a cabeça. Quando o pessoal reclamou do desperdício, o “Santíssimo” pediu que deixassem a mulher em paz, por que ela lhe havia feito uma obra boa – qual é, galera, a mina tá na dela!
Também tem aquele caso da Marta e da Maria, em cuja casa o “Santíssimo” havia dado um chego, segundo conta Lucas no capítulo 10, versículos 38 e seguintes. Enquanto a Marta foi tratar das lides da casa, a Maria ficou ali perto dele, curtindo o “Santíssimo”. É claro que a Marta não gostou e foi reclamar: “senhor, eu tô aqui dando duro e a Maria, numa boa, sem fazer nada, só do teu lado”. Aí “Santíssimo”, que estava bem no clima, se divertindo na companhia da gata, retrucou, dizendo que a Maria tinha feito a melhor escolha, da qual não seria privada – ela tá na maior curtição, pô, deixa rolar!
Quer dizer, o “Santíssimo” gostava mesmo de mulher. Claro, ele tinha também o lado “piradão”, de rogar praga pra uma pobre figueira que estava sem frutos, (Marcos, 11, 14) e de descer o cacete em camelôs sem alvará (Mateus, 21, 12).
Em suma, o “Santíssimo” era um cara normal, como qualquer um de nós, que gosta de vinho, mulher e festa e, de vez em quando, perde a classe. No geral, era um cara de bem com a vida, que jamais exigiu silêncio para ser respeitado.
Nada disso ensinaram nas aulas de catequese para a freira aquela, que nos tratou como vacas profanas, como se nós, velhinhos broches, tivéssemos culpa por ela nunca ter sido comida. Mas, no próximo encontro, se ela não tiver tido tempo para se suicidar até lá, tenho certeza de que vou vê-la feliz. Além de flores e chocolate, vou lhe mandar, na véspera, um vibrador.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

COLUNA DO MÁRIO SIMON

BREVE CURRÍCULO DE MÁRIO SIMON


NOME COMPLETO - Crenolbe Mário Basso Simon
NATURALIDADE - Carazinho-RS
FILIAÇÃO - João Alfredo Simon e Amélia Isidora Basso Simon
DATA DE NASCIMENTO - 30 de abril de 1939
Casado com Jandira Maria Lucca Simon, tem três filhos: Mário César, Rita Simone e Glauber Marcelo.



- Mário Simon é natural de Carazinho RS, mas escolheu Santo Ângelo para morar desde 1956. Cidadão Santo-angelense desde 1993, título que lhe foi concedido pelo vasto trabalho nas mais diversas áreas da cultura. Mestre em Literatura Brasileira, é professor da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI, onde é titular dessa cadeira.

- Foi fundador e primeiro presidente da Academia Santo-angelense de Letras onde ocupa a Cadeira número 4 que tem como patrono o árcade brasileiro Basílio da Gama.

- Dedica-se à produção ficcional e pesquisa histórica das Missões Jesuíticas no Rio Grande do Sul.

- Tem publicados oito livros:

. BREVE NOTÍCIA DO SETE POVOS - 1984 - três edições.
. OS SETE POVOS - TRÁGICA EXPERIÊNCIA - 1984 - três edições
. LINDEIRO - ficção missioneira em contos - 1988
. O CAMINHO DA PEDRA - romance histórico – 1988
- PASSIONÁRIO – Contos e Crônicas Reunidos - 1998
- INVENTA(RIO) DE MOTIVOS – Crônicas literárias – 2003
- AS MISSÕES DO SETE POVOS – História – 2004- duas edições
- CONTOS MISSIONEIROS – Ficção - 2004


- Mário Simon está presente em Antologias espalhadas pelo Brasil. Em 2004 foi Destaque Cultural no Estado do RS pela criação e edição da Revista TALENTO, pela criação e realização do Acampamento da Poesia de Entre-Ijuís (RS) (já na 6ª edição), e por toda a sua vasta obra cultural.


A MESTRA DE CERIMONIAL SEM CERIMÔNIA
Crônica de Mário Simon

Não é sempre que a sorte te acompanha. Por isso, não é sempre que tu vais a um Encontro de Estudos, evento de caráter nacional, e encontra uma Mestra de Cerimonial pra lá de animadíssima, capaz de roubar todas as atenções. E como esse tipo de Encontro costuma acontecer com a presença de uma dúzia de palestrantes, todos movidos pelo beneplácito de diárias, jantares, hotéis e passeios extras, isto é, com o dinheiro público, essa Mestra de Cerimonial superou-se, já que, na cabeça dela, certamente estava comandando uma reunião do G8, ou o grupo dos mais sábios e mais respeitados cientistas de seu tempo, do qual seu ardor fazia parte indispensável.
Qual era o assunto desse Encontro de Estudos? Não há como precisar, pois que, no correr da primeira parte, que teve a duração de 90 minutos, a nossa prestimosa Mestra de Cerimonial desceu do palco, subiu ao palco, atravessou a frente do palco, saiu da sala, entrou na sala tantas vezes que acabei por iniciar a contagem de sua perturbadora movimentação já com atraso e, mesmo assim, somei 19 vezes. Como que eu poderia saber exatamente o que falavam os palestrantes se perdia meu tempo com o vaivém dessa volátil criatura? Em vez de anotar o que diziam, e diziam o que não interessava muito, acabei por anotar o que a obsequiosa Mestra de Cerimonial fazia nesse constante ir e vir. Vejam!
Depois de abandonar seu parlatório, que é aquele púlpito com microfone para os mestres-de-cerimônia, veio sentar-se na primeira fila de poltronas, muito próximo de onde eu estava, e talvez por isso me incomodou tanto. Instantes depois de acomodada, já iniciava o mexe-mexe. Tomou sua bolsa e umas pastas que trazia no colo, levantou-se e foi ocupar outra poltrona da mesma fila, quase no corredor central do salão. Lá se sentou por minutos, ergueu-se, depositou a bolsa e as pastas no banco e retornou para o local anterior, bem na minha frente. Até aí, tudo bem, entendi que sua bolsa e pastas apreciariam melhor a palestra, lá ao lado, sentadas sozinhas!
Mas, incontinênti, ergueu-se outra vez, subiu ao palco dirigindo-se ao parlatório, pegou o microfone, desligou-o, batendo antes com o dedo indicador no aparelho para ouvir se estava mesmo ligado. E como estava ligado e fez toc toc toc muito alto, sorria, como sorria para público!
Na primeira fila outra vez sentada, não esquentou a poltrona. Sem detença, lépida dirigiu-se para o meio da sala, no centro do corredor em frente ao palco e pisoteou, não pude ver, alguma coisa, não sei se mosca, barata, aranha, besouro. E sorria, como sorria!
De retorno ao seu lugar, mal deu com o traseiro no assento, pipocou outra vez em direção à sua bolsa de onde retirou uma máquina fotográfica, sorrindo muito, ah, seu sorriso! Com a câmera em punho, meteu-se a fotografar os amigos na primeira fila. Terminada a tarefa, pediu a alguém dali que a fotografasse sentada junto aos amigos, tudo sempre sorrindo, ai, que sorriso! E a palestra andando, e ela fotografando, agora, o público.
Outra vez refestelada no banco, saltou em seguida para subir ao palco, atravessar na frente da mesa dos palestrantes, erguer as garrafas de água mineral à altura dos olhos, examinar a quantidade de conteúdo de cada uma, dar-se por satisfeita e retornar, sorrindo demais. Mas mal baixara os poucos degraus do palco, voltou outra vez para o esplendor das luzes, desta vez por trás da mesa, para dirigir-se ao pé do ouvido do palestrante, ciciar algo, e retornar triunfante no seu sorriso enorme. Aliás, esta procedimento ela repetiu quatro vezes nos 90 minutos da sessão.
No entanto, a mais insólita de suas subidas ao palco foi quando a mestra-toda-sorriso atravessou a frente dos que palestravam unicamente para endireitar um cartel de papelão que continha o nome da pessoa que falava. Aí eu tive que sorrir! E tive que rir, à socapa, quando ela ergueu-se de sua poltrona exclusivamente e, de certa forma, acintosamente, para ajeitar as calças, repuxando-a para a cintura, ou sei lá para onde. E quando ela deixava o banco para, simplesmente, recostar-se na parede ao lado e ficar olhando a platéia, sorrindo, sorrindo longo e sério, segurava-me para não me erguer e postar-me ao seu lado para perguntar seu nome, endereço, telefone. Amei a criatura, amei aquele sorriso afetado, que me fez perder uma manhã inteira. Mas fiquei encucado com o que ela ia fazer lá fora, quatro vezes em 90 minutos? Sofreria de incontinência urinária?

quarta-feira, 11 de junho de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

SUOR DA FELICIDADE
Paulo Wainberg

Uma vez, há muitos anos, eu estava num spa em Guarujá, São Paulo.
Queria relaxar, espairecer, me divertir e, casualmente, emagrecer cinco quilos.
Certa manhã, parecida com a de hoje, aqui em Porto Alegre, brilhante como são as manhãs de outono quando o ar parece polvilhado de bilhares de partículas luminosas, o rio assume cor de prata e as árvores choram a cada folha que cai, uma colega de spa lia um livro à beira da piscina, estirada numa chaise-longue.
Escorriam lágrimas pelo seu rosto. Cheguei perto da moça que era adequadamente gordinha para o ambiente e vi, surpreso, que ela estava lendo um livro meu, de crônicas, não lembro se o primeiro ou o segundo, que eu tinha levado de presente para a gerente do spa que era minha amiga e ela pegara emprestado.
A moça olhou para mim e sorriu, os olhos úmidos e as bochechas gordinhas manchadas pelos traços das lágrimas. Perguntei por que ela chorava e ela me respondeu que aquilo não era choro, era o suor da alma. – Suas crônicas estão fazendo minha alma suar, explicou.
Ó orgulho, teu nome é vaidade!
Inflei tanto que recuperei os quilos que já havia perdido e ganhei alguns mais. E não era para menos, não é qualquer escritor que faz a alma de uma mulher suar, eu não conhecia nenhum outro, até então.
E, modestamente falando, ainda não conheço.
De outra parte a moça, cujo nome olvidei, subiu dez andares no patamar da minha consideração: Sensível, bom gosto, acuidade literária, inteligência superior, quase esqueci que ela era gordinha demais para o meu gosto e, aqui entre nós que não sou de fazer fofoca, o rosto também não era lá essas coisas, nada de querer ver na hora de acordar.
Aos mais afoitos esclareço que nada aconteceu, nem a conversa seguiu adiante. Eu me senti tão imenso que não havia espaço para mais ninguém, o mundo era pequeno demais até para mim.Os dias seguintes transcorreram sem incidentes, aprendi a dançar aeróbica, fiz ginástica na piscina, virei um ser à milanesa, untado de óleo e coberto de sal, tomei choques leves no estômago, caminhei quilômetros, derreti como um protoplasma em saunas úmidas, levei surras de folhas aromáticas nas costas, coxas e bunda e devorei refeições gargantuélicas, compostas de folha de alface, ricota, cinco centímetros de filé de peixe, tudo ao saboroso tempero de duas gotas de limão, sobremesas compostas de dois milímetros de gelatina sem gosto e cafezinho com meia gota de adoçante. Na pesagem final eu tinha perdido seis quilos e fui consagrado, no jantar de despedida, quando o cardápio mudou substancialmente com o acréscimo de mais uma folha de alface, como o campeão da perda de peso da semana. Tenho a faixa lá em casa, para provar a glória.
Nunca esqueci a definição da gorducha, que pouco emagreceu sob a tortura, para lágrimas: suor da alma.
Mesmo eu, que não acredito em alma, reconheço que o conceito é lindo e, como quase nunca sou mentiroso e omisso, vou revelar a você, em absoluto sigilo, que ao longo dos anos, muito me valeu o episódio.
Durante os piores momentos de tristeza, de saudades, de abandono, todas as vezes que me olhei no espelho e chorei, nas horas trágicas de perdas e fracassos, ao sentir vergonhas pérfidas de ressacas homéricas e constrangimentos formais, sempre me restou o consolo de saber que, um dia, o que escrevi fez a alma de uma mulher suar, portanto eu não era tão péssimo.
Os anos passaram, muitos para o meu gosto.
Encontrei outros modos de lidar com frustrações, criei anti-virus contra tristezas, larguei aquela de viver com pena de mim mesmo, evitei situações em que pudesse me sentir abandonado, larguei de mão os porres e elaborei consistentes filosofias para sofrer menos com as perdas de pessoas queridas.
Há quem diga que amadureci, mas eu não acho.
Inclusive tenho a pretensão de ter decifrado o desejo que nos aumenta, a partir de certa idade, de voltar a ser jovem, mas isso outro dia eu conto.
Suor da alma, quer coisa mais linda para pensar, numa manhã de sol, em pleno outono? Sem orgulho e sem vaidade?
Você se comove e sua alma sua, o suor escorre de seus olhos, brilhante e salgado e, destilada a emoção, a alma se conforta.
Clarice Lispector já fez suar minha alma só que eu não sabia.
Lya Luft abriu uma cascata de suor em minha alma, com seus poemas vividos, cada verso uma gota de suor da alma dela mesma.
Beethoven arranca toneladas de suor de minha alma, principalmente o segundo movimento da Sétima Sinfonia.
Atualmente a torneira do suor de minha alma está totalmente aberta e acho que vai ficar assim por mais trinta e seis dias.
Suor bom, suor gostoso, suor de alegria, de lavar a alma para que, limpa e satisfeita, ela saiba que jamais deve perder a capacidade de suar .
Muitos me olham e perguntam se estou pegando uma gripe, de tão inchados meus olhos andam, tão ardidos do suor da minha alma. E vai melhorar, sei que vai, serão suores abundantes que temo, quando chegar a hora, não poder controlar, muito menos conter.
Nesta contagem regressiva que já soa interminável, ganho mil emoções novas a cada dia, sensações indescritíveis de empolgação e felicidade a cada hora, devaneios de expectativa e ansiedade a cada minuto.
Maio vai chegar e nele o dia vinte e quatro.
O dia do casamento da minha filha.RÔNICAS DA INTIMIDADE

terça-feira, 10 de junho de 2008

CRÕNICA DE MÁRIO SIMON

É com satisfação que anuncio, a partir de hoje, um novo integrante da equipe: Mário Simon, escritor, dramaturgo, historiador, professor de literatura, uma autoridade na história das missões jesuíticas. Seus textos dirão mais do que esta simples apresentação. À próxima crônica será aditada a lista de suas publicações.
Obrigado, Mário, pela tua contribuição.
João Eichbaum



A HONROSA ÚLTIMA VIDA DO GATO
Crônica de Mário Simon

Ele tinha sete! Já havia perdido seis. Restava-lhe a última, e essa tinha que ser bem vivida.
Assim pensava, talvez, um gato, cuja cor eu nunca soube, já que à noite todos os gatos são pardos. E a última vida desse gato e seu final honroso, eu a presenciei no escuro da noite sem lua e, pior, no mato.
Não sei muito sobre esse bichano. Conheci-o apenas por dois ou três minutos, os últimos de sua sétima e derradeira vida. Mas foi o suficiente para saber que ele escolhera com sabedoria e coragem seu final, já não sei ao certo se honroso ou doloroso. Vamos ver! Certo mesmo é que ele foi um dos peregrinos das Missões, o mais infeliz.
Peregrinos das Missões, você sabe o que é isso? Também conhecidos como caminhantes das Missões, vêm de todas as partes do mundo e, em pequenos grupos, fazem a pé, faça barro ou haja pó, até 300 quilômetros pelas trilhas do Caminho das Missões. De São Borja a Santo Ângelo, passando por todas as antigas reduções, hoje ruínas em pedra e mato. Para muitos deles é um hobby, para outros, uma aventura, e para alguns mais, um desafio de limites íntimos. Buscam o quê nestas plagas que viram o jesuíta e o guarani engolidos pela voracidade dos homens? Paz? História? Harmonização interior? Encontro consigo mesmos? Pagamento de promessas? No caso do gato peregrino de que trato nesta crônica, acho que buscava mesmo era comida, porque se ele caminhava para vencer seus próprios limites, se deu mal barbaridade!
Os caminhantes fazem sua última parada nos alojamentos do Balneário Parque das Fontes, próximo a Entre-Ijuís. Ali chegam ao escurecer depois de uma puxada de pó e cascalho pelo caminho antigo das ruínas de São João Batista-Santo Ângelo. Aporreados! Batidos! Clamando por um banho salvador. E por incrível que pareça, animados por um astral que supera as bolhas nos pés, cãibras nas pernas, as dores nas costas, os dedos em cacos, calcanhares em pandarecos. Mas vivos, incrivelmente dispostos para a próxima jornada. E riem, e cantam, e contam. E choram! O gato, coitado, veio junto, num desses grupos. Não teve tempo nem de banho, nem de rir, nem de chorar. Mal deu para um miau!
Foi depois do triste acontecimento com o bichano que os caminhantes me contaram. O gato estava tomando um sol na frente de um rancho perdido na beira do caminho, próximo a São João Batista. Um peregrino do Ceará viu o gato e disse:
- Qui bécháno bónitu!
O gato, que entendia essa língua lá do Nordeste, levantou-se preguiçoso, olhou para o sol e viu que era cedo da tarde, olhou para o grupo de caminhantes que carregavam uma mochila nas costas e um cajado na mão e percebeu que era gente boa, resolveu integrar-se ao grupo e partir. No alto da primeira colina, voltou-se para trás e olhou demoradamente a paisagem de sua terra e concluiu que, decididamente, fizera uma boa escolha. Aqueles ares não mais serviam para nada já que ali deixara seis de suas sete vidas. Pois que a última iria viver longe dali, junto com os novos amigos, peregrinos das Missões, feliz para sempre.
E caminhou, caminhou, caminhou. Treze quilômetros, como um cachorrinho. Seria mesmo um gato? Esse bicho não costuma seguir assim a estranhos. Mas seguiu! E veio a tarde, e veio a noite, e veio a escuridão. E o gato atrás do grupo, fiel, meditabundo às vezes, alegre, outras. Só lhe faltava o cajado.
Os peregrinos entraram na área da pousada já noite feita. O gato junto. E como gente, à noite, desperta a atenção do cão de guarda, manso como um poste para os homens, mas despreparado para receber um gato peregrino, pensou, se é que pensou, em pedir os documentos para o bécháno, e este não tinha mais do que ouriçar-se todo assustando o cão. O ataque foi rápido e terrível. Foi nesse momento que conheci o tal gato peregrino, que passou por mim como um raio rumo a um matinho que havia por perto. O cão foi uma faísca de boca enorme e dentes tratados.
Quando chegamos para acalmar os ânimos dos dois, nada mais pudemos fazer. O bécháno perdia a sétima vida de forma honrosa, pois adquirira o status de peregrino e se inscrevia como o protomártir do Caminho das Missões.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

VARIAÇÕES EM TORNO DO TEMA "FAIDASPUTAS"

IEDA, SEUS AMIGOS, FEIJÓ e a RBS

João Eichbaum
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Sobre o gravação que fez Paulo Feijó, enquanto conversava com Cezar Busatto, diz Ieda: “ quero manifestar minha indignação pelo comportamento do vice-governador. É fato único. É fato nacional. O Rio Grande do Sul é colocado frente ao cenário nacional como um Estado em que práticas de comportamento como esta jamais foram vistas. Denotando uma total tendência ao confronto...”
Claro, dona Ieda, é claro que “práticas de comportamento como esta jamais foram vistas” porque é a primeira vez que entra na política quem nunca foi político, quem nunca conheceu a podridão da política que se pratica neste Estado, do Detran, e na União, dos cartões corporativos.
Que bom que alguém parte para o confronto, que não se deixa comprar por cargos políticos, que não adere à hipocrisia do “diálogo”. Quem dialoga com político acaba se tornando corrupto, quer dizer, político.
Sobre Lair Ferst diz a dona Ieda: “ ...Lair é um militante do PSDB hoje afastado e que esteve presente em todos os momentos do partido como militante. Quem quis ajudar, esteve perto, segurou bandeira...Depois do resultado final, sem dúvida nenhuma todos aqueles que ajudaram buscaram tentar cooperar da maneira como bem sabem”
Isto, o Lair segurou a bandeira, a bandeira do Detran e militou também graças ao dinheiro nosso que o Detran arrecadou. E ele, é mais do que evidente, tentou cooperar da única maneira que sabia, demonstrando que não sabe ganhar dinheiro, nem militar num partido político de outra forma.
O presidente do DEM, que é do Piauí – e só podia ser do Piauí – Heráclito Fortes, vai pedir a expulsão do Feijó do partido: “ o que ele fez é inaceitável...”
Claro que nenhum político vai considerar aceitável o que fez o Feijó, porque ele desmascarou a todos, a toda a classe política. Político nenhum neste país terá moral para se pronunciar sobre a atitude de Feijó.
Por fim a RBS, no editorial do jornal Zero Hora afirma: “ o vice-governador mostrou também que não tem a dimensão política dos homens que escreveram a história deste Estado com as tintas da lealdade, da honradez e da transparência...”
Exatamente. Feijó não tem “a dimensão política dos homens que escreveram a história deste Estado”, porque todos agora sabem como se “escreve” uma história: com o dinheiro do povo. Que bom que ele não tem essa “dimensão política”. Lealdade? O que é isso? Qual é o político que, algum dia, praticou lealdade em sua vida? Os que foram leais, como Armando Câmara, tiveram que deixar a política. Honradez? Me apontem, na história do Rio Grande e do Brasil um político que tenha sido “honrado”? Salvo, naturalmente, os que, como Armando Câmara, deixaram enojados a política. Transparência? O que é isso também? Transparência nos porões do poder? Desde quando, para fazer transparência, se usa como matéria prima o conchavo, o “arreglo”, a suruba do “é dando que se recebe”?

sexta-feira, 6 de junho de 2008

CONSULTÓRIO JURÍDICO

A dra. L.S.A. pergunta se cabe recurso da seguinte decisão:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. GRATUIDADE JUDICIÁRIA. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. SINAIS EXTERIORES CONTRADIZENDO A PRESUNÇÃO DE POBREZA.
Evidenciado, pelos sinais exteriores exibidos pela parte, que não ostenta a condição de necessitado, correta a decisão que denegou-lhe o benefício da AJG.
SEGUIMENTO NEGADO EM MONOCRÁTICA.

Resposta:

Cabe agravo interno (art. 557, § 1º do CPC). A decisão do juízo singular de segundo grau, pomposamente chamada de "monocrática" se assenta no art. 5º, inc.LXXIV, que não diz respeito à lei 1.060, mas é uma norma dirigida ao próprio Estado, com a finalidade única de estruturar a defensoria pública. Para os pedidos individuais de justiça gratuita o que vale é a dita lei 1.060, segundo a qual basta a afirmação de pobreza para atrair o benefício, sujeitando porém o peticionário às sanções penais, se não for verdadeira a afirmação. A decisão dita "monocrática" senta como uma luva no meu artigo sobre os primatas de toga.

Também cabe agravo interno de decisão dita "monocrática" que nega a proibição de cadastro negativo. Há inúmeras decisões do próprio TJRGS sobre o assunto.

João Eichbaum

PORQUE NÃO ACREDITO NA JUSTIÇA

PRIMATAS DE TOGA

João Eichbaum

Certa vez, viajando pela Itália, tive a eventual mas agradável companhia de duas professoras italianas, na cabine do trem. Ao saberem que eu era oriundo daquele país que vive esticado sobre uma esplêndida rede nordestina, tomando água de coco, e deixando a vida rolar por conta de Deus, que é cidadão dessa mesma terra, crivaram-se de perguntas. Entre as tantas perguntas, uma, em especial, me chamou a atenção: “e a Justiça lá funciona ou é a mesma merda que temos aqui (na Itália)?”
Meu pensamento funcionou rápido: se aqui, no primeiro mundo, a justiça é uma merda, o que se poderá dizer dela lá, no país das palmeiras, das mulatas, do futebol, dos cartões corporativos, do mensalão e da corrupção impune?
Então, a partir dessa premissa estabelecida em forma interrogativa, respondi, imediatamente:
- Não tem diferença nenhuma. É tudo do mesmo material.
Hoje, muitos anos depois, vejo que não me enganei. Ao ler a notícia de que um casamento foi anulado na França, sob o argumento de que a noiva não era virgem, me lembrei de Charles Darwin: somos todos primatas. Alguns, até toga usam. E nesse ramo, não existe diferença alguma entre primeiro e último mundo. Por uma razão muito simples: é debaixo da toga que se metem os primatas de inteligência mediana, esse tipo de primata que se ama a si próprio mais do que ninguém, se chama de doutor e gosta de ser incensado como cientista..
Enquanto os primatas de inteligência superior se entregam ao estudo da matemática, da química, da física, da biologia, da informática, que são as ciências verdadeiras, o primata de inteligência mediana fica ditando modos de comportamento, normas morais, quer através da lei, quer através da jurisprudência. E os valores ditados por eles é que servem de música para a sociedade dançar. Alguns até chegam ao ponto de querer brecar o progresso das ciências exatas, em nome de suas macaquices.
Aqui neste país do oba-oba, os primatas de toga já decidiram que nós, os bons reprodutores que só nos acasalamos com mulheres lindas, devemos pagar, através dos impostos, cujo produto é levado para o SUS, a cirurgia dos veados que querem se transformar em mulher.
Na Turquia, os mesmos primatas julgaram inconstitucional a lei que libera do uso da burca para as mulheres que freqüentam a universidade.
Cuidem-se, portanto, meninas, usem cinto de castidade, não saiam dando a torto e a direito por aí, se pretendem um casamento indissolúvel. Os primatas humanos de inteligência mediana (que certamente não serão selecionados pela natureza para o aperfeiçoamento da espécie) já ditaram, na França, que a mulher tem que casar virgem.
E como a macaquice é própria da literatura dos doutores primatas, pode ser que essa idiotice não fique apenas sob o céu de Paris.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

CRÔNICA DE PAULO WAINBERG

CRÔNICAS ADVENTISTAS


SIMPLES COMO UM LOGARÍTIMO
Paulo Wainberg






Após a hecatombe restou uma única pessoa na face da terra, um homem. Vagou de um lado para o outro, entre escombros e florestas calcinadas até que, cansado, sentou à beira do penhasco, olhando o abismo sem fim e pensando seriamente em jogar-se lá de cima.
A vista, ainda que trágica, tinha uma estranha beleza, profunda e aterradora, e assim perdido em contemplação, ouviu uma voz às suas costas:
- O senhor tem fogo?
É aí que começa o drama: quem fez essa pergunta? É indiscutível o fato de ser o homem o único sobrevivente, ergo, não poderia ser uma pessoa.
Um alienígena talvez, compadecido da Humanidade e seu desastre, vindo à Terra para criar um novo ciclo, fecundar novamente o planeta, salvar a espécie, usando as capacidades científicas que os povos das galáxias com certeza possuem e que vão muito além das nossas, destrutivas por excelência.
Porém ele queria fogo! Seria um ET fumante que esqueceu a caixa de fósforos ou o isqueiro Bic na astronave? Seria ele um errante das galáxias em busca do fogo, desconhecido nos outros planetas, para assar uma costela gorda ou cozinhar uma canja de galinha?
Novo drama à vista: obviamente o ser, assim tão evoluído, há muito descobrira o fogo e seus usos, sem mesmo precisar de um Prometeu acorrentado à rocha, tendo seu fígado devorado diariamente por um abutre.
Outra hipótese: As radiações nucleares produziram um acelerado desenvolvimento na inteligência das baratas, dotando-as de poder de raciocínio, fala, sentimentos, ego e superego e, pasmem, inclusive fé em Deus.
A Nova Barata, como se denominaria a espécie, em pouco tempo adquiriu os hábitos da Humanidade quase extinta, inclusive o de fumar, mas ainda não inventara o palito de fósforo. Vendo o humano, louquinha para acender o cigarro preso entre suas antenas, a Nova Barata achou que, com sorte, o último homem vivo na face da Terra era fumante e teria fogo no bolsinho do colete. Ou precisava de fogo para eliminar a nova espécie rival alterada geneticamente pela radiação, a raça dos Amores-Perfeitos que desenvolvera extrema crueldade e disputava o Domínio do Planeta com a raça da Nova Barata. Teria o líder imaginado que com fogo seria fácil destruir as pétalas dos Amores-Perfeitos que, ainda por cima, eram ateus. Ou não eram e adoravam o Girassol como o representante divino, o profeta, a voz de Deus na terra. A Nova Barata, tendente a versões mais radicais, não aceitava os dogmáticos princípios dos Amores-Perfeitos e, por isso, tinha que exterminá-los da face da Terra.
Sinceramente? Também não acredito nesta hipótese. Não vejo como radiações nucleares possam produzir efeitos evolutivos, considerando é claro meus vastos conhecimentos sobre o assunto. Muito antes pelo contrário, acho que as baratas continuariam baratas mais fortes e os amores-perfeitos dada sua natureza vegetal seriam dos primeiros a desaparecer sob os ventos núcleo-radioativos.
Quem ou o que estaria atrás do homem, pedindo fogo? Não posso aceitar a hipótese de um engano do narrador, isto é, o homem não foi o único e um outro sobrevivente havia restado. E casualmente se encontraram naquele penhasco tendo um planeta inteiro a separá-los.
Ridículo.
É inconcebível também que os minerais tenham passado a viver. E, ainda que aceite isso, raciocinando pelo absurdo, para que precisariam eles de fogo? Por mais maluca que seja minha imaginação (ou a sua), dá para pensar num cascalho segurando um palheiro, um cachimbo, um charuto ou, prosaicamente, um cigarrinho?
Não, não é por aí.
Vai um fantasma? Uma alma de outro mundo que escapuliu do Vale dos Mortos e veio ver de perto o produto final da obra? Acho que por aí podemos chegar a algum lugar.
Se eu fosse o narrador não iria resistir: quem pediu fogo ao homem no penhasco foi a alma da sogra dele! Ou do cunhado! Ou do cara para quem ele nunca pagou o empréstimo! Ou – ó supra-sumo do terror – o espírito de um gremista!!!
Mais uma vez o drama aflora: para que uma alma do outro mundo precisa de fogo? O que fará o etéreo ser com uma labareda, uma mera chama, uma simples fagulha?
Caso eu fosse uma alma do outro mundo ia querer qualquer coisa do homem, menos fogo. Atormentá-lo, com certeza. Assombrar o resto de seus dias terrenos, infernizar suas noites, carregar correntes barulhentas pela caverna dele e chocar o último gole de cerveja que ele guardou para uma ocasião especial.
Mas fogo? Nunca. Até porque eu provavelmente viria de um ambiente onde o fogo abunda como nas areias de uma praia.
Outra hipótese: o último homem sobre a face da terra enlouqueceu e imaginou uma voz atrás dele pedindo fogo. Entre jogar-se penhasco abaixo e enlouquecer, preferiu continuar vivo e louco, criando pessoas ao seu redor e acreditando nelas como se fossem reais.
Também é insuficiente porque, após a hecatombe, fogo é o que não faltava na superfície, vulcões ativos estariam despejando lava ardente, as profundezas jorrando altíssimas labaredas, o homem podia ser louco mas não era burro. Não ia imaginar alguém pedindo exatamente aquilo que havia de sobra.
Se eu fosse ele, podes crer, ia imaginar coisa bem melhor, da Juliana Paes para cima.
Tudo bem, chega de suspense, vamos logo à revelação, ao esclarecimento definitivo do mistério.
O único sobrevivente após a hecatombe, um homem, admirava a paisagem bela e aterradora, à beira do penhasco, quando uma voz perguntou às suas costas:
- O senhor tem fogo?
Ele se virou calmamente, fez que sim com a cabeça, tirou um isqueiro Bic do bolso do colete e estendeu o braço, entregando o isqueiro a quem pedira, acrescentando:
- Pois não.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

COISAS DA VIDA

TEMPOS MODERNOS

João Eichbaum

Dona Carmelinda tinha casado na igreja, de véu e grinalda, toda de branco, aliança no cestinho, padre e padrinhos, tudo nos conformes. Com o devido sangue no lençol, nove meses depois teve o primeiro filho, que era uma menina.
Mas a vida lhe foi má, o marido a deixou por outra, e ela ficou só com a filha, costurando para fora, dando duro, para dar à menina uma vida menos dura. Mas, só, e ainda jovem, não resistiu às cantadas dos galanteadores que se seguiam, um depois do outro. Um só queria dar uminha. O outro queria dividi-la com a matriz. Teve até um rapazinho, bem mais moço, que quis se chegar, para auferir os benefícios da costura, sem necessitar de ir para o batente. Por fim, ela sentou pé. Só queria um homem sério, de boas intenções, com cara de família. Pois, então, com esse escolhido, constituiu família, teve mais dois filhos, ambos muito machos. E o homem sério, de boas intenções, também a deixou por outra.
Mas nada disso abalou os princípios de dona Carmelinda, que não abdicou da doutrina cristã, nem da velha moral. De modo que, mesmo depois que os filhos cresceram, queria recato, queria que eles respeitassem as namoradas e a meia-irmã, e mantivessem os princípios cristãos assentados sobre o sexto mandamento: que jamais levassem namoradas para os quartos deles. “Assim como eu nunca botei pra dentro de casa homem que não fosse definitivo” – acrescentava.
De modo que, naquela noite, ouvindo vários passos no corredor que conduzia ao quarto do filho mais novo, ela simplesmente perdeu o sono, a dona Carmelinda. Pensou, pensou e chegou à conclusão de que o filho não tinha entrado sozinho para o quarto. Isso não só a intrigou, como a deixou com medo.
Não pregou olho o resto da noite. E de manhã, quando ia para a cozinha preparar o café, deu com aquela gracinha loira, vitaminada, que saía sorrateiramente do banheiro, só de calcinha e soutien.
Dona Carmelinda nada disse e ainda fez que não viu. E quando o filho, algum depois apareceu na porta do quarto, bocejando, foi cobrado, sem rebuços:
- É tua namorada aquela moça!
E a resposta dele, cheia de razões, deixou-a de boca aberta, sem ter o que contraditar:
- Que que é isso mãe? Eu lhe obedeço, nunca vou trazer minha namorada pra dentro do meu quarto. Esta é a namorada do Wiliam, um amigo meu!

terça-feira, 3 de junho de 2008

CRÔNICA DE PAULO WAINBERG

SERMÃO DO FUNDO DO POÇO
Paulo Wainberg






Felicidade.
Desejo de felicidade é o ideal impossível de ser alcançado. Talvez eu tenha sido plenamente feliz, antes de nascer, flutuando na barriga de minha mãe. Pena que não lembro e, se não lembro, não posso usufruir a lembrança.
Talvez nem tenha sido uma felicidade assim tão plena.
Por alguma razão cruel, divina ou seja por influências malignas dos genes, estar plenamente feliz nunca acontece e ruidosamente sabotamos os momentos de felicidade, raros e passageiros, colocando com eles e acima deles os furacões, as incompreensões, os dramas inúteis, os nervosismos, os descontroles, as ansiedades, problemas reais e imaginários, como se um implacável alerta esteja sempre a avisar: Você está feliz neste momento? Ah é? Não esqueça que daqui a pouco alguma coisa ruim pode acontecer, vai acontecer.
Quantos problemas você tem que resolver, antes de sair de férias? Quantos problemas você tem que resolver quando está de férias? Quantos problemas você tem que resolver quando volta de férias!
O momento sublime, nos braços da amada e do amado, interrompido por um telefone gritando que seu cheque voltou, que seu paciente morreu, que seu filho rodou e... lá se foi o sublime, adieu felicidade.
Quanta incompreensão você enfrenta num dia de felicidade. Quantas coisas erradas lhe dizem que você fez, quando acorda de manhã sentindo-se feliz?
Você celebra o melhor momento de sua vida sabendo quanto sofreu para chegar nele, temendo quanto vai sofrer por causa dele.
Felicidade, felicidade.
Que nefando poder tem a linguagem que impossibilita o entendimento, que gera o conflito, que ensurdece, entumece o raciocínio e libera raivas e ódios, provoca patéticas situações, distorce expressões faciais, transforma olhares em dardos envenenados mesmo quando, pela frente tudo de bom está para acontecer?
Não é uma ingratidão quando acusam de insensível justo nos momentos em que sua sensibilidade está à flor da pele e o que você mais deseja é compartilhar? Quando uma palavra mal ouvida, um olhar mal interpretado ou um gesto distraído transforma esse desejo sensível em símbolo de agressão, de desinteresse ou indelicadeza?
Não é terrível quando acham que você é capaz das piores coisas, dos piores sentimentos mesmo quando, durante toda a vida você sempre quis ser a melhor das pessoas e tentou cultivar os melhores sentimentos?
Felicidade...felicidade?
A vida é uma sucessão de falhas que os acertos eventuais não acobertam. O que nos impede de relevar as falhas e aproveitar os acertos? Que triste concepção é esta que nos torna imperdoáveis, quando falhamos? E que nos faz comuns, quando acertamos?
Por que o bom não pode prevalecer sobre o ruim? O que, ou quem nos atribui o papel permanente de críticos, pedagogos constantes do comportamento alheio? Quem, ou o que determina que o erro de lá seja a vergonha daqui e que somos o permanente objeto da observação alheia?
Quem estabeleceu que, nas coisas comuns do dia a dia, simples e suburbanas, idéias diferentes não podem co-existir?
Por que ceder é uma fraqueza?
Tantas perguntas e não tenho nenhuma resposta, só me resta constatar e, como vitima e algoz simultâneo, querer baixar a cabeça e deixá-la para baixo até o fim.
Felicidade? Felicidade!
É ela o que queremos tanto? Paz de espírito é felicidade? Dever cumprido é felicidade? Amar e ser amado é felicidade? Conviver em bom nível é felicidade? Compreensão mútua é felicidade? Respeito é felicidade? Riqueza é felicidade?
Felicidade...
Eu seria feliz com estas coisas? Não iria querer outras que me faltariam e apagassem a felicidade anterior?
Se eu apostasse na mega-sena quanto iria querer ganhar? Cinqüenta milhões? Com todo esse dinheiro, teria que mudar minha vida, abandonar coisas que gosto – e são muitas – deixar de lado amigos que amo – e são muitos – reconsiderar minhas prioridades, que são muitas?
Não. Eu ganharia uns cinco milhões para resolver alguns problemas financeiros e para comprar algumas coisinhas que não tenho, por exemplo um piano de caudas, internet sem fio e computadores para toda casa, talvez um ipod, alguns quadros do Carlos Scliar e a coleção integral da antiga Coleção Catavento de Ficção Científica que, em algum lugar de Portugal, certamente ainda se acha. Ah, e uma linda personal trainer que iria lá em casa me treinar até extinguir a barriga que me assola.
Nada de mais, nada de grandioso.
Felicidade, felicidade.
A vida é um firmamento triste, recheado de choques e explosões, onde pode fulgurar a luz boa de um cometa radioso e vez que outra brilhar a intensidade feliz de um sol azul, iluminando o universo de alegria e dando a sensação, fugaz , de que pode ser assim para sempre.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

CONSULTÓRIO JURÍDICO

A dra. L.S.A faz a seguinte consulta:

“ ajuizei uma revisional dia 15/5 de uma criatura que comprou um veiculo q estava alienado, ele tinha procuração do antigo proprietário justamente para ajuizar ação revisional, porém agora em 28/5 o antigo proprietário revogou a procuração ... e agora como fica a minha ação???”

Resposta:

Ajuizada que foi em nome do mandante, a ação propriamente dita não sofre qualquer modificação com a revogação do mandato. O que se altera são as relações entre mandante e mandatário. Se esse último se achar prejudicado com a revogação do mandato poderá ingressar com ação indenizatória contra o mandante.
João Eichbaum

PORQUE NÃO ACREDITO NA JUSTIÇA

QUE SAÚDE!

João Eichbaum

Palavras comedidas, prenhes de modéstia, da juíza de Santa Maria ao jornal Zero Hora, em reportagem publicada no dia de ontem:

“Não sou eu que estou ali, é a instituição. Eu apareço como a Justiça Federal. Se tivesse escolha, pessoalmente, não gostaria de aparecer”

Ah, bom, então tá! Não é aquela senhora, ou senhorita, de olhos verdes, segundo se diz na reportagem, que veio de Três de Maio para fazer faculdade de direito em Santa Maria, a que apareceu na matéria do mesmo jornal uns dias antes, para receber a denúncia, numa modalidade não prevista no Código de Processo Penal. Quem apareceu ali foi a “instituição”, isto é, a justiça, aquela que usa venda, balança e espada, tem um vestido comprido e não mostra os peitos. Só que a “instituição”, dessa vez, desceu do olimpo, se encarnou numa recatada, circunspecta e comedida senhora, ou senhorita, tirou a venda, jogou a espada e a balança para o lado, entrou no clima da imprensa, e se esbaldou mais do que japonês no samba, dando ruidosas explicações.
A gente entende, porque a justiça, quer dizer, a “instituição”, realmente, precisa dar explicações. A justiça precisa de propaganda, publicidade, matéria nos jornais, porque é a única forma de se saber que ela existe e o que faz com o nosso dinheiro. Essa senhora, ou senhorita, que é juíza em Santa Maria, foi ferida em sua modéstia, porque “não teve escolha”, sendo, portanto, constrangida a aparecer “como a Justiça Federal” nos jornais, nas televisões e nos microfones, para emprestar ao ato processual do recebimento da denúncia uma estridência que não encontra eco no princípio constitucional da inocência presumida (art. 5º, inc. LVII da Constituição Federal). Se dependesse dela, pessoalmente, como ela diz, “não gostaria de aparecer” – ressalte-se. Afinal, ela não é como a sua vizinha, a Gisele Bündchen, que não só gosta disso, como não se peja de mostrar aquela magreza brochante para todo o mundo.
Pobre senhora, ou senhorita, juíza! A “Justiça Federal”, ou seja, a “instituição” que gosta de aparecer, ou precisa disso, se valeu da juíza de Santa Maria, uma pessoa de confessada modéstia, para satisfazer seus caprichos, para mostrar ao povo que ela existe. A juíza, essa senhora, ou senhorita, que – tudo dito pelo jornal - é atleta, corre pelas ruas da cidade, onde pratica as artes do direito, e leciona em duas faculdades, ainda tem que percorrer mais de trezentos quilômetros até São Leopoldo, onde o comércio educacional dos jesuítas oferece cursinho de doutorado. Apesar de todos esses afazeres, foi usada, “ut serva”, pela “Justiça Federal”, a “instituição” que apareceu pomposamente na mídia.
E através de tudo quanto disse a senhora, ou senhorita, juíza, os contribuintes ficaram sabendo onde vai parar o dinheiro que pagam pelos serviços dessa morosa e incerta, mas erudita “justiça”.
Ah, um detalhe! A senhora, ou senhorita, que deve gozar de uma saúde de ferro para fazer tanta coisa ao mesmo tempo, tem – segundo diz o jornal – três mil processos para julgar. Mas, isso é de somenos importância.