quarta-feira, 30 de outubro de 2024

 

 O RIDÍCULO EM ÚLTIMA INSTÂNCIA

O único instrumento indispensável para a construção do Direito, através de juízos de valor, é o pleno domínio da linguagem. E isso, por uma razão muito simples: a interpretação da lei que, no silogismo jurídico, é a premissa maior, exige esse domínio. Assim, o conhecimento pleno da língua portuguesa está para o Direito brasileiro, como um instrumento deve estar para a orquestra: bem afinado.

Nos últimos tempos, considerado o idioma assim, como instrumento, tem ocorrido desafinação na orquestra do Supremo Tribunal Federal, que um dia foi chamado de Pretório Excelso por algum gongórico puxassaco.

Olhem essa publicação no site do STF: “O Supremo Tribunal Federal definiu, nesta quinta-feira (17), que a Declaração de Nascido Vivo (DNV) expedida pelos hospitais no momento do parto de uma criança nascida viva, deve utilizar termos inclusivos, para englobar a população transexual.”

Segundo o mesmo site, a decisão foi proferida na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ajuizada pelo PT, sob alegação de que transexuais com órgãos reprodutores femininos, mas nomes masculinos, não recebiam atendimento médico de ginecologia e obstetrícia, e a transexuais com órgãos reprodutores masculinos, mas nomes femininos, eram negados atendimentos em urologia e proctologia. O fundamento da ação foi violação dos direitos à saúde, à dignidade e à igualdade.

Em liminar, Gilmar Mendes ordenou ao Ministério da Saúde a substituição do termo “mãe”, pelo de “parturiente” no DNV. Em julho de 2024, a ação foi julgada procedente. Segundo o site do STF “no voto o ministro Gilmar Mendes observou que, após o ajuizamento da ação, o SUS mudou o cadastro do DNV, e, com isso, considerou inicialmente que o STF não teria mais de discutir esse ponto”. Mas, ainda conforme o site, “o ministro Edson Fachin ponderou que, como a troca se deu em caráter administrativo, poderia ser desfeita se não houvesse uma ordem judicial para torná-la obrigatória.”

Se Gilmar já havia ordenado em liminar a substituição do nome de “mãe” por “parturiente” no DNV, evidentemente “a troca não se deu em caráter administrativo”. E, para atender ao dislate do Fachin, Gilmar Mendes fez o pior: ordenou a inclusão das opções “parturiente/mãe” e “responsável/pai” naquele documento.

Ora, nenhum vocabulário registra outro significado para “parturiente”, que não seja “mãe”. O único modelo de filho que não foi parido por mãe, se perdeu. Javé não revelou o truque de produzir bípede falante com barro. E mais: ao nascer uma criança, o pai é, automaticamente, o “responsável” por ela, salvo se for desconhecido ou já falecido.

Será preciso avisar aos berros ao STF que ele não tem competência para modificar as leis 12.662/2012 e 6015/73, nas quais são regulados, respetivamente, o DNV e os Registros Públicos? Será preciso avisar que elas só exigem o nome do pai e da mãe como dados relativos à paternidade e à maternidade do recém-nascido? Outra coisa: ninguém está obrigado a apresentar certidão de nascimento para obter prestação de serviços de saúde do SUS.

Moral do acórdão: confundiram o cólon sigmoide com as têmporas...

 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

 

A FÉ NÃO REMOVE MONTANHAS, MAS MOVE MULTIDÕES

O homem criou a Internet à sua imagem e semelhança: somos uma rede, com chips próprios, denominados neurônios. Os quase 100 bilhões de neurônios, armazenados em nosso cérebro, se comunicam através de, aproximadamente, 100 trilhões de sinapses. As sinapses, etimologicamente formadas pelo prefixo “syn” (sigma, upsilonn, ni) do grego, que indica ligação, união, exercem a função de condutores das mensagens entre os neurônios, os impulsos nervosos.  Funcionam como roteadores, seja através de reações químicas, seja por estímulos elétricos, que movimentam fluxos de íons entre as células. É essa rede de neurônios, interligados por sinapses, a responsável por nossa consciência e nossos sentimentos. E nessa dinâmica neurobiológica está embutida a religiosidade, a crença, também chamada fé, de que não abre mão a maioria absoluta da humanidade.

Segundo pesquisas publicadas na Biological Psychiatry, o circuito cerebral que proporciona a manifestação da fé está localizado numa parte bastante primitiva do nosso cérebro. Donde se pode concluir que, antes de chegar ao estado atual de “homo sapiens”, no curso de sua evolução, o animal humano já tinha propensão para acreditar em algo que não conhecia, algo materialmente impalpável, criado por suas imaginações. Ou seja, antes mesmo de surgirem as “religiões”, que são instituições organizadas com vistas à regulamentação das crenças, o homem já reunia condições para aceitar doutrinas e produzir fantasias. Que o diga a riqueza da mitologia, fonte na qual algumas religiões se abeberaram.

Favorecida por essa matéria biológica, a religiosidade foi dominando o ser humano, sem muita dificuldade. Não é por outra razão que se acumulam multidões em Meca, na praça de São Pedro, em Fátima, em Lourdes e por aí afora. Não poucas vezes, a realidade da vida, a pesada soma dos acasos ou a impensada ousadia da criatura humana levam a tragédias, para as quais contribui, contraditoriamente, a fé. Não passa ano sem que se tenha notícias de pessoas que morrem a caminho de Meca. O calor escaldante da Arábia Saudita, com temperatura que pode chegar a mais de 50º à sombra, responde pelo excessivo número de mortes. Nesse ano, segundo a agência de notícias AFP, morreram pelo menos 922 pessoas.

No Brasil, volta e meia acontecem acidentes trágicos com ônibus transportando pessoas que se dirigem a eventos religiosos. Na semana passada, a caminho da romaria da “padroeira do Brasil”, pessoas morreram atropeladas na Via Dutra. No Santuário, onde se acumulavam cerca de 35 mil pessoas, o Arcebispo de Aparecida orou, nesse vernáculo parecido com o da Dilma: “ó Mãe, Mãe das flores, tornai o mundo um grande jardim, pela graça da ecologia, que és também a Mãe da Amazônia, e aqui estão os biomas esperando a própria terra a ser cuidada e respeitada”.

Sendo a fé um dispositivo cerebral primevo, nem todo “homo sapiens”, inspirado pela razão, a usa. É inexplicável a ineficácia dela na proteção aos devotos, como inexplicável é o motivo pelo qual a Senhora Aparecida esperaria a oração do arcebispo para, só então, começar a proteger a Amazônia...

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

           O ABSURDO DOS ABSURDOS

A estupidez do Código Eleitoral se escancarou em São Leopoldo: o candidato mais votado para vereador e o terceiro colocado na apuração não foram incluídos entre os eleitos. Não que tenha havido irregularidades ou impugnações. Tamanho despautério se deve aos artigos 106 e 107 da Lei 4737, Código Eleitoral, de 15 julho de 1965, que pariu o quociente eleitoral.

Para quem não sabe: essa lei, do tempo do regime militar, elaborada especificamente para garantir maioria legislativa ao governo, traz a assinatura do então presidente, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.

Tal lei deveria ter sido limitada ao tempo necessário para garantir sua finalidade, dada a natureza do regime de governo então vigente. Mas, quer por ignorância dos legisladores, quer porque os governantes, seja em que regime for, são movidos pela embriaguez do poder, ela foi mantida.

Em 1988, entre vivas e foguetes, foi promulgada a Constituição do Ulysses Guimarães, como um esplêndido modelo de democracia, trazendo de volta para o Brasil os valentes prófugos que se borravam de medo do governo militar. Nela estabelece o parágrafo único do artigo 1º: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. E, para completar e reforçar a ideia de que se trata de um regime democrático, cujo titular é o povo, diz o artigo 14: “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos...”

Então surge a pergunta: se, por ordem expressa da Constituição, o voto direto e secreto tem “valor igual para todos”, a que se deve a distinção entre os que votaram com a sigla do partido A e os que o fizeram com a sigla do partido B? Se o voto é o único instrumento que serve para o exercício do poder, por que só se aproveitam dele os partidos políticos, quando o titular da soberania é o povo?

A proporcionalidade da representação legislativa não está prevista expressamente na Constituição de 1988. Em razão disso, os artigos 106 e 107 do Código Eleitoral perdem a razão de ser, porque excluem uma parte do povo do exercício do poder, através de uma diferenciação proibida. Além de desqualificarem o conceito de democracia, estabelecido no parágrafo único do art. 1º e no artigo 14 da CF, aqueles dispositivos constroem o absurdo dos absurdos. Assim: os votos conquistados pelos candidatos mais votados são válidos para a formação do quociente eleitoral, mas ao mesmo tempo têm o desvalor de nulos, se o partido deles não alcançar aquele coeficiente, atingindo-os com uma inelegibilidade não prevista no §4º do artigo 14 da Constituição Federal.

“In claris cessat interpretatio” reza um secular axioma latino. É desnecessária a interpretação daquilo que está claro. Basta saber ler sob o ângulo teleológico, quando se trata de dispositivo constitucional. Se o poder é do povo, instrumentalizado pelo voto, “com valor igual para todos”, só a ganância pelo poder, ou o analfabetismo funcional, explicam o “quociente eleitoral”.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

 

O SILÊNCIO É OURO

Antigamente a gente pensava que da boca de um juiz só poderiam sair palavras sábias, torneadas pela circunspecção e pelo recato. O cargo por ele exercido impunha respeito. E o primeiro a respeitar esse cargo era ele, o juiz. O magistrado se considerava a si mesmo o melhor homem para exercer o múnus jurisdicional. Por isso tinha que zelar pela sua imagem, que era a imagem da Justiça. Quer dizer, o juiz, como todo o ser humano, era dotado de um ego que o fazia gostar de si mesmo, mas essa relação não se esgotava nele.

O silêncio sempre foi o melhor exercício para desenvolver a sabedoria. O sábio ouve, recolhe as palavras de seu interlocutor, e medita. Desse modo vai enriquecendo as premissas com as quais poderá formar juízos de valor inteligentes.

Sim, é bom lembrar que a missão precípua dos juízes é a de emitir juízos de valor que interessam à sociedade, porque outra não é a finalidade da Justiça, senão tornar harmônica a convivência social. Dessa missão os juízes tinham consciência e se haviam com a reserva e o recato necessários, para não manifestar opiniões que os pudessem comprometer, na hora de dizer o Direito. Daí nasceu aquele velho ditado: o juiz só fala nos autos.

Mas, a fila da vida anda e vai mudando o mundo. O que era ontem, hoje já não é mais. A força dos egos é o que, muitas vezes, movimenta a engrenagem social. E aí, certos valores vão se deteriorando.

Hoje, no comportamento de vários juízes, o ministério jurisdicional tem se revelado menos como missão institucional do que como estrato social distinto, com vantagens e direitos que não alcançam ao comum das pessoas. Essa condição ceva o ego de alguns togados de tal forma, que os faz se sentirem acima dos demais seres humanos.

Em entrevista ao Valor Econômico na semana passada, o senhor Luiz Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, abriu sua boca cheia de dentes, para dizer que “ a total recivilização do país” é o legado que ele pretende deixar para o seu sucessor.

Sim, senhores, temos aí um novo Messias. O senhor Barroso quer mudar o país, ao que parece, à sua imagem e semelhança.

“Recivilização”. Procurem essa palavra no dicionário. Não a encontrarão, porque a etimologia das palavras “civilizar” e “civilização” (do latim “civilitas”) constitui o núcleo de sua morfologia. A civilização é dinâmica, levada pelas mutações sociais. Mas, jamais pode voltar à estaca zero, para se recompor de outra forma.

O senhor Barroso não tem autoridade para mudar a raiz de conceitos pétreos, como o de “civilização”. A menos que ele tenha “incorporado” o espírito do seu guru, o curandeiro João de Deus, a quem ele atribui a qualidade de “extrair das pessoas o que de melhor elas têm”.

Exatamente, por tirado de mulheres indefesas o que de melhor elas tinham, o João de Deus foi parar na cadeia. Mas, ao que tudo indica, continua inspirando o senhor Barroso.

 

 

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

 

               RETRATO FALADO

Agora, para o Estadão, ficou bem claro quem é o Lula. O retrato do ex-torneiro mecânico, que trocou essa produtiva profissão pela ambição de carreirista, foi pintado com impiedoso realismo no editorial intitulado “O Umbigo do Lula”, na edição do dia 27 último.

Para compor literalmente a imagem do ambicioso político, a editoria pinçou substantivos e adjetivos que revelam a personalidade do doutor em filosofia do ridículo, com diploma conferido pela natureza.

Não são incomuns, na velhice, certas qualificações negativas que comprometem os seres humanos como integrantes do grupo social. Incomum é acúmulo de várias delas numa só pessoa. Principalmente quando essa pessoa é tida como líder numa nação. Do texto jornalístico transparece essa intenção: a de mostrar que o Brasil não pode ser exposto no concerto internacional como país dominado pela pobreza intelectual de um “envelhecido líder progressista”.

 Narcisismo, cinismo, sectarismo, demiurgo, megalomania, incapacidade de articulação, falta de humildade, quimeras irrealistas, cinismo em estado bruto são palavras usadas no editorial, que desembocam no “comportamento grotesco”, duma “leviana e irrelevante figura”.

Não se trata de execração pública, descompostura banal, ou de um xingamento de baixo calão, como a muitos poderia parecer, mas do puro e simples retrato social do Lula, tal como ele é. Trata-se da imagem de uma criatura, que é analisada e considerada estritamente do ponto de vista de sua representação na sociedade.

Qualquer cidadão pode acumular qualificações negativas, porque a perfeição não é um atributo imanente à natureza animal. Mas, todo o cidadão, escolhido que seja como representante de um grupo social com a relevância de uma nação, tem mais a obrigação de se comportar como modelo de virtude do que enxertar no cargo as fraquezas, as impropriedades e, sobretudo, as frustrações de seu ego.

Para fugir da pobreza, da fome, da miséria que o cercava em sua terra natal, Lula buscou lugar na romaria da esperança, que leva nordestinos para a cosmopolita São Paulo. Lá teve a sorte de ser brindado com um emprego que lhe deu a profissão de torneiro mecânico. Aí, se aproveitando disso, talvez por ser mais atilado do que seus colegas, viu no sindicalismo o caminho para sair do anonimato.

A inclinação natural pela verborragia o levou aos píncaros da associação sindical. Nessa posição, teve o privilégio de dialogar com a classe dos patrões. Foi o primeiro passo para trocar a profissão de torneiro mecânico pela de “carreirista”, da qual não desistiu, enquanto não se tornou presidente da república.

A verborragia lhe serviu de instrumento para que se sentisse o pai dos pobres, o exterminador da pobreza, a esperança dos necessitados, um demiurgo que desfila na passarela do universo, esbanjando graça e harmonia, capaz de terminar guerras na base da saliva. A imagem que fazia de si mesmo o encheu de vaidade.

Mas dessa vez não deu certo. Ao regressar da Assembleia da ONU, onde produziu previsíveis disparates e torrou o dinheiro dos contribuintes com um cortejo de acompanhantes inúteis, o pai dos pobres deu com seu retrato no Estadão.