quarta-feira, 16 de outubro de 2024

           O ABSURDO DOS ABSURDOS

A estupidez do Código Eleitoral se escancarou em São Leopoldo: o candidato mais votado para vereador e o terceiro colocado na apuração não foram incluídos entre os eleitos. Não que tenha havido irregularidades ou impugnações. Tamanho despautério se deve aos artigos 106 e 107 da Lei 4737, Código Eleitoral, de 15 julho de 1965, que pariu o quociente eleitoral.

Para quem não sabe: essa lei, do tempo do regime militar, elaborada especificamente para garantir maioria legislativa ao governo, traz a assinatura do então presidente, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.

Tal lei deveria ter sido limitada ao tempo necessário para garantir sua finalidade, dada a natureza do regime de governo então vigente. Mas, quer por ignorância dos legisladores, quer porque os governantes, seja em que regime for, são movidos pela embriaguez do poder, ela foi mantida.

Em 1988, entre vivas e foguetes, foi promulgada a Constituição do Ulysses Guimarães, como um esplêndido modelo de democracia, trazendo de volta para o Brasil os valentes prófugos que se borravam de medo do governo militar. Nela estabelece o parágrafo único do artigo 1º: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. E, para completar e reforçar a ideia de que se trata de um regime democrático, cujo titular é o povo, diz o artigo 14: “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos...”

Então surge a pergunta: se, por ordem expressa da Constituição, o voto direto e secreto tem “valor igual para todos”, a que se deve a distinção entre os que votaram com a sigla do partido A e os que o fizeram com a sigla do partido B? Se o voto é o único instrumento que serve para o exercício do poder, por que só se aproveitam dele os partidos políticos, quando o titular da soberania é o povo?

A proporcionalidade da representação legislativa não está prevista expressamente na Constituição de 1988. Em razão disso, os artigos 106 e 107 do Código Eleitoral perdem a razão de ser, porque excluem uma parte do povo do exercício do poder, através de uma diferenciação proibida. Além de desqualificarem o conceito de democracia, estabelecido no parágrafo único do art. 1º e no artigo 14 da CF, aqueles dispositivos constroem o absurdo dos absurdos. Assim: os votos conquistados pelos candidatos mais votados são válidos para a formação do quociente eleitoral, mas ao mesmo tempo têm o desvalor de nulos, se o partido deles não alcançar aquele coeficiente, atingindo-os com uma inelegibilidade não prevista no §4º do artigo 14 da Constituição Federal.

“In claris cessat interpretatio” reza um secular axioma latino. É desnecessária a interpretação daquilo que está claro. Basta saber ler sob o ângulo teleológico, quando se trata de dispositivo constitucional. Se o poder é do povo, instrumentalizado pelo voto, “com valor igual para todos”, só a ganância pelo poder, ou o analfabetismo funcional, explicam o “quociente eleitoral”.


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