O ABSURDO DOS ABSURDOS
A estupidez do Código
Eleitoral se escancarou em São Leopoldo: o candidato mais votado para vereador
e o terceiro colocado na apuração não foram incluídos entre os eleitos. Não que
tenha havido irregularidades ou impugnações. Tamanho despautério se deve aos artigos
106 e 107 da Lei 4737, Código Eleitoral, de 15 julho de 1965, que pariu o
quociente eleitoral.
Para quem não sabe:
essa lei, do tempo do regime militar, elaborada especificamente para garantir maioria
legislativa ao governo, traz a assinatura do então presidente, marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco.
Tal lei deveria ter sido
limitada ao tempo necessário para garantir sua finalidade, dada a natureza do
regime de governo então vigente. Mas, quer por ignorância dos legisladores,
quer porque os governantes, seja em que regime for, são movidos pela embriaguez
do poder, ela foi mantida.
Em 1988, entre vivas e
foguetes, foi promulgada a Constituição do Ulysses Guimarães, como um
esplêndido modelo de democracia, trazendo de volta para o Brasil os valentes
prófugos que se borravam de medo do governo militar. Nela estabelece o
parágrafo único do artigo 1º: “todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
E, para completar e reforçar a ideia de que se trata de um regime democrático,
cujo titular é o povo, diz o artigo 14: “a soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos...”
Então surge a
pergunta: se, por ordem expressa da Constituição, o voto direto e secreto tem
“valor igual para todos”, a que se deve a distinção entre os que votaram com a
sigla do partido A e os que o fizeram com a sigla do partido B? Se o voto é o
único instrumento que serve para o exercício do poder, por que só se aproveitam
dele os partidos políticos, quando o titular da soberania é o povo?
A proporcionalidade da
representação legislativa não está prevista expressamente na Constituição de
1988. Em razão disso, os artigos 106 e 107 do Código Eleitoral perdem a razão
de ser, porque excluem uma parte do povo do exercício do poder, através de uma
diferenciação proibida. Além de desqualificarem o conceito de democracia,
estabelecido no parágrafo único do art. 1º e no artigo 14 da CF, aqueles
dispositivos constroem o absurdo dos absurdos. Assim: os votos conquistados
pelos candidatos mais votados são válidos para a formação do quociente
eleitoral, mas ao mesmo tempo têm o desvalor de nulos, se o partido deles não
alcançar aquele coeficiente, atingindo-os com uma inelegibilidade não prevista
no §4º do artigo 14 da Constituição Federal.
“In claris cessat interpretatio” reza um secular axioma latino. É desnecessária
a interpretação daquilo que está claro. Basta saber ler sob o ângulo
teleológico, quando se trata de dispositivo constitucional. Se o poder é do
povo, instrumentalizado pelo voto, “com valor igual para todos”, só a ganância
pelo poder, ou o analfabetismo funcional, explicam o “quociente eleitoral”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário