O PODER DO CRIME
Alguém já disse - e com muita propriedade - que
o crime não é organizado, mas o Estado é que é desorganizado. E a explicação
para isso é de natureza antropológica. É o caráter da pessoa, seus dotes
pessoais, propensões e desejos que a
levam a decidir sobre os rumos que tomará seu destino.
Nem todo o mundo é mentiroso. Nem todo mundo
tem cara de pau, para prometer mundos e fundos, sabendo que nada pode fazer.
Nem todo mundo consegue adquirir poder, através de apadrinhamento ou de cruzinhas
em questionários sobre Direito. Pois o Estado é desorganizado por isso, porque
na sua composição ingressa gente de todos os tipos e propensões, carregados por
um ego que não abre mão dos seus desejos. Resultado: o Estado não é uma
instituição abstrata, mas um ajuntamento de egos, cujas idiossincrasias repelem
sua subsunção pelo cargo e pelas funções. Muitos até se julgam superiores ao
cargo que ocupam.
Então, se os fatores da multiplicação são egos,
o produto não pode ser senão uma desorganização chamada Estado.
O caráter e as propensões das pessoas que se
tornam criminosos profissionais são os mesmos. O crime, em si, é o plasma
social que os identifica. Por isso eles se tornam fortes, e muitas vezes
superiores ao Estado. Esse, diluído em egos e propensões divididas, mostra suas
faces contraditórias: concede direito de liberdade ao criminoso, negando,
ao mesmo tempo, à sua vítima, o direito
à segurança.
Na semana passada foram divulgados artifícios
usados pelo crime para enganar o Estado. Moradores de um condomínio em Canoas
entregaram à polícia um áudio, no qual
um chefe de quadrilha, programando o afastamento de policiais militares
por acusações de violência, exorta seus comparsas a se autolesionarem. Essa
notícia levou a pensar que tais artifícios sejam usados na “audiência de
custódia”, uma pantomima processual criada
“por recomendação” do Conselho Nacional de Justiça, mercê da qual criminosos são
libertados.
Chamado a se pronunciar, o Tribunal de Justiça
do RS se manifestou através do Presidente do Conselho de Comunicação. Para
começar, o desembargador exaltou a “audiência de custódia” como “uma conquista
da sociedade”. A seguir, confirmou, com espantosa naturalidade, o que já se
esperava: nas 4. 836 audiências de custódia realizadas, foram mantidos presos
2.112, e soltos 2.724. Isso, em números estatísticos, representa maioria
absoluta, demonstrando o percentual de 44% de prisões e 56% de solturas.
O desembargador não disse em nome de que
sociedade ele falava. Não apresentou procuração. De boas, más e mornas
sociedades, o país está cheio. Com toda certeza, não foi em nome da sociedade
que banca os gordos salários, a que se atrelam penduricalhos com cifrão, para
Judiciário. Essa sociedade, composta por cidadãos desarmados, quer se ver livre
de criminosos, e não criminosos livres.~
Mas, enfim, num país que para contemplar políticos com subvenções bilionárias, se serve do suor, do trabalho e das privações dos pagadores de imposto, nada mais natural do que o poder do crime sobre o Estado, revelado em chocantes números.