sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

 

ATO BÍBLICO EM VÉSPERAS DE NATAL

A mitologia cristã criou o Natal. Os governos criaram o décimo terceiro salário, e as empresas inventaram as férias coletivas. Juntando tudo isso, dá praia.

Por essas e por outras, o Natal é quase um sinônimo de praia. E praia significa ajuntamento. Pobres, remediados, ricos e bilionários, ingênuos, safados, santos e bandidos se juntam lá. E cada um faz o que sabe e o que gosta.

A madame tinha ido para a praia como essa gente toda, e lá testemunhou aquele ato bíblico que Deus, embora não gostando, mandou botar no livro sagrado. Está em Gênesis, capítulo 38, versículos 9 e 10, para quem quiser ver. Pois a referida madame não fez nada diferente de Deus: não gostou do ato bíblico, mas postou no facebook.

Caminhava a mui distinta senhora pela rua silenciosa, que só permitia ouvir os raivosos bramidos do mar. A postagem do facebook não diz que roupa ela vestia: se apresentava uma discreta aparência, ou se estava metida à força num shortinho, desses que causam arrepios e podem comprometer até a castidade do Santo Padre, o Papa.

Ela não prestou atenção no veículo que trafegava na direção contrária à que ela tomava. Só se deu conta, quando ele parou perto dela. Antes de abrir o vidro, o motorista sorriu um sorriso amável e fez um aceno para que a senhora se aproximasse. Solícita, supondo que o desconhecido fosse um turista errante, perdido por ali, atendeu ao aceno, pronta para dar as informações que lhe fossem solicitadas. É o que ela diz ter pensado: o motorista queria lhe pedir o favor de prestar alguma informação, certamente.

Mas, quando se aproximou do veículo ela viu, através do vidro aberto, o ato bíblico. Com a mão esquerda, o motorista levantou a camisa para mostrar a mão direita empregada em domar a concupiscência pelo método manual. Digamos assim, para não usar literalmente a expressão da queixosa no facebook, que  calha mais em BBB da Globo do que em crônica respeitosamente bíblica.

Então, tanto Deus como a madame postaram para o público um ato do qual não gostaram. E ambas as postagens merecem reparos. Deus se vingou do pobre do Onan, porque odeia desperdício de esperma. Sua vingança foi maior do que o pecado.

A madame que, ao invés de chamar a polícia, preferiu contar seu estupro virtual no facebook, passou a atrair sobre si apimentada bisbilhotice. E no próximo encontro com as amigas, certamente terá que debulhar pormenores de que não se ocuparia o delegado. Algumas vão perguntar sobre o visual do motorista: se era um garotão sarado, desses a quem mulher nenhuma nega sorriso, ou se era um velho babão, com ralos cabelos brancos sobre a careca reluzente, queimada pelo sol. Entre sorrisinhos e piscar de olhos iluminados, outras vão perguntar pelo diâmetro e pela dimensão do instrumento manejado pelo cidadão. E ninguém vai se lembrar do Onan, que Deus matou por questões de espermatozoides desperdiçados. Afinal, é Natal, tempo de amor e praia.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

              NO COLISEU DO JÚRI

Luiz Fux se despiu da toga e foi fazer parte da plateia do circo forense. Mas, não pensem que ele ficou na arquibancada, judiando aquele traseiro onde a mamãe passava Hipoglós. Nada disso. Ele tratou de estabelecer sua excelentíssima pessoa, como era de se esperar, no camarote presidencial. E lá ele participou do coro dos que só sabem cantar o estribilho: “quem com ferro fere, com ferro será ferido”.

Só assim se pode encarar a decisão que juntou Luiz Fux aos que, no “coliseu” do júri, confundem Justiça com justiçamento.

Ao que parece, ele não conhece latim. Não estudou  Direito Romano no idioma original, e por isso ignora o conceito de Justiça plasmado pelos jurisconsultos da Roma antiga: “suum cuique tribuere”.

“Dar a cada um o que é seu”. Esse é o conceito de Justiça do qual não se desprende quem conhece latim. A Lei do Talião, que atualmente vem sendo aplicada largamente pelo Supremo Tribunal Federal, através do Inquérito “do fim do mundo”, tem outra fonte, que não o Direito Romano. E ela respinga na decisão de Fux, mandando prender os réus que o júri condenou pelo incêndio da Kiss.

Há excertos do despacho do Luiz Fux, que lembram muito a linguagem da Dilma. Como esse: "a altíssima reprovabilidade social das condutas dos réus, a dimensão e a extensão dos fatos criminosos, bem como seus impactos para as comunidades local, nacional e internacional".

Se o presidente do STF conhecesse Direito Penal, ele saberia que existe um princípio chamado “individualização da pena”, vinculado ao conceito de Justiça de “dar a cada um o que é seu”. A frase à la Dilma, usada por ele, não passa de um amontoado de palavras que, além de mostrar imperdoáveis atropelos ao vernáculo, medem todos os réus com a mesma régua, sem distinguir condutas, caracteres, formação individual, status social, e a carga volutiva distinta na ação de cada um deles.

E, afogado na falta de argumentos, Fux ainda se agarrou à tábua da incongruência: "a decisão impugnada do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul causa grave lesão à ordem pública ao desconsiderar, sem qualquer justificativa idônea, os precedentes do Supremo Tribunal Federal e a dicção legal".

Quais são os “precedentes” do Supremo Tribunal Federal, senhor Luiz Fux? Os que acolheram o princípio constitucional da inocência presumida ou os que a desacolheram”? Ou os “habeas corpus” distribuídos a mancheias pelo  Gilmar Mendes ?

Todo mundo sabe que a maior fonte de insegurança jurídica é o próprio Supremo, que hoje decide assim e amanhã,  “assado”, dependendo do réu. Então, não venha o senhor  Luiz Fux com essa de que a soltura dos réus “causa grave lesão à ordem pública”. Jurisprudência volúvel não merece respeito.

Antes de decidir de afogadilho outra vez, que Fux se debruce sobre a lição de    deontologia judiciária que lhe deu o Estadão: “a prestação jurisdicional não é exercício de popularidade, tampouco teste da sagacidade do juiz, para avaliar se é capaz de fazer prevalecer sua opinião pessoal”.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

 

O JÚRI

O incêndio da boate Kiss ganhou manchetes no mundo, mexeu com muita gente, fez rolar muita lágrima. Por longo tempo, os meios de comunicação, que acamparam em Santa Maria, colhendo notícias na fonte, mantiveram milhares de pessoas tensas, aflitas, incrédulas, revoltadas. Era impossível ficar indiferente diante de uma tragédia que roubou tantas vidas de um modo cruel, engendrado pela tortura da sufocação, do desespero e de outros tormentos que a morte enviou, antes de chegar.

Primeiro vieram as faíscas. Depois a fumaça e em seguida o pânico desencadeado pelo berro “fogo”. E a multidão que lá se aglomerava, tratou de fugir, mas foi acossada pela fumaça. Gritos e empurrões eram gerados pelo pavor de encontrar a morte, entre pessoas caídas e pisoteadas, antes de achar a única porta que permitiria a fuga para a vida.

Esse quadro, de um pavor infernal, que nem pela fértil imaginação de Dante Alighieri passaria, foi levado às manchetes, despertando a sensibilidade coletiva que está presente sempre, em qualquer desgraça. Imagine-se então quem foi mergulhado na dor, dominado pelo desespero da perda, dando de ombros para o mundo, para a vida, para tudo aquilo que não diga respeito ao ser amado que tombou sem ar, foi pisoteado e transformado em número, ficou exposto seminu, ou sem identidade, debaixo duma lona, no chão de uma praça de esportes...

De lá para cá se passaram oito anos, um tempo insuficiente para relegar ao esquecimento o tamanho da tragédia e da impressão por ela causada a quem quer que seja. Então, sobreveio o julgamento de pessoas diretamente envolvidas na tragédia: os donos da boate e dois participantes da banda, cujo show pirotécnico foi o aceno para o comparecimento da morte naquela casa de diversão.

Para muita gente, o espetáculo do julgamento foi outro show: o do quem com ferro fere, com ferro será ferido. Parentes das vítimas armaram barracas nos arredores do local do julgamento, para reavivar as cenas que atiçaram o pavor, a aflição e a comiseração em um número quase ilimitado de pessoas. E a um corpo de jurados a má interpretação do direito entregou o destino dos réus.

Juízos e tribunais, esquecidos de que ao Direito se empresta o apelido de “ciência”, confiaram a um grupo de leigos o deslinde de uma questão fundamentalmente técnica: o dolo eventual.

A incompetência do legislador, ao definir as atribuições do espetáculo teatral do júri, incluiu nelas essa questão, que transcende o fato, afasta a evidência do acontecimento e se aninha na peneira do raciocínio. Cabia ao Judiciário sanar o mal feito, interpretando restritivamente o dolo eventual.

Mas, não. A magistratura, que é paga para fazer justiça, se descartou do problema, dando uma de Pôncio Pilatos: botou a bronca no colo do povo. E aí, no  espetáculo do circo forense montado para o povo, não faltaram xingamentos, que lembravam guris prometendo se pegar na saída, nem um inacreditável depoimento de alma do outro mundo. Ao final, o que sobrou para povo foi dar palpites, que viraram “Justiça”.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

 

     E AGORA UM REVERENDÍSSIMO MINISTRO

André Mendonça foi indicado por Bolsonaro e aprovado por escassa maioria de senadores para vestir a toga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Mendonça é um ser definido pelo presidente Jair Messias Bolsonaro como “terrivelmente evangélico”. Ele, segundo noticia a imprensa, é pastor da Igreja Presbiteriana da Esperança de Brasília.

A tal de Igreja da Esperança, segundo a definição capenga do Google, é uma “denominação protestante de orientação reformada e continuista”. Não foi fundada por Jesus Cristo, mas pelo pastor Guilherme de Carvalho, em 19 de setembro de 2008, quer dizer, mais de dois mil anos depois de haver o Cristo voado para o céu sem asas, mas em corpo e alma.

Deve ser uma dessas muitas igrejas que usam o cristianismo como capital inicial para multiplicar dinheiro, inoculando na turba a crença de que milagres divinos resolvem qualquer draminha humano. Ou seja, dessas que aprenderam com Jesus Cristo o truque de multiplicar pães e peixes, mas o aplicam nas almas, através das quais conseguem o milagre da multiplicação do dinheiro, e na política a milagrosa multiplicação de políticos evangélicos.

Agora, a abstinência pastoril de um bacharel em teologia, formado pela Faculdade Teológica Sul Americana, tempera a última instância judiciária. Um pastor para apascentar suas ovelhas... Ovelhas? Haverá ovelhinhas no Supremo? Haverá lá esses pacíficos bichinhos, que se deixam estuprar por bodes safados e são devorados por lobos maus?

Mas se o Supremo Tribunal Federal, para onde foi encaminhado o pastor André Mendonça, é um rebanho de mansas ovelhas, onde andarão os lobos? Ou será lá que os lobos maus se disfarçam de vovozinhas para sacanear os brasileiros, sendo para lá mandado o reverendo pastor, a fim de proteger as ditas vovozinhas contra os lobos, erguendo ameaçadoramente o seu terrível cajado?

É bom não esquecer que André Mendonça é um pastor terrível: “terrivelmente evangélico”, como o definiu Jair Bolsonaro, já que anunciara previamente um ministro assim, pendurado num advérbio que pode impor medo aos lobos.

O reverendíssimo André Mendonça, de agora em diante, vai se dividir entre sermões e acórdãos, cultos e soporíferas sessões no Supremo Tribunal Federal. Vai ouvir cantos de louvor a Jesus Cristo e glória a Deus nas alturas, mas também votos vociferados pelo indignado Gilmar Mendes, quando tiver sua jurisprudência contrariada. Vai ouvir balidos e balelas, uivos e preces. Vai ouvir a voz soturna de madre superiora da Carmen Lúcia e a cantilena monocórdica da Rosa Weber, recitando jurisprudências. Mas, poderá ouvir também destemperadas locuções engasgando o “vossa excelência”, aquele pronome de tratamento imposto pela hipocrisia oficial.

O que não se sabe é se André Mendonça terá ouvidos para ouvir, e olhos para ler, nos lábios do sistema, a frase provocante, na qual irá soar o repto: “se não me absorveres, vou te devorar”. E não se sabe também se o reverendíssimo presbítero dará ouvidos à sustentação oral dos advogados do diabo, catequizados pela “Lava a Jato”, ou à “teologia da libertação” aplicada aos ricos, na qual se inspira Gilmar Mendes.

 

 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

 

 

UMA NEGRA MUITO COBIÇADA

Ouvir o farfalho dela sobre o corpo, sentir sua textura fina e reluzente, arrancando suspiros e despertando desejos, era, em tempos idos, o sonho de poucos machos. Só homens talhados pela cultura, pelo raciocínio correto, pelo domínio do idioma, pela riqueza da síntese, pela circunspecção e pela reserva que apenas os sábios sabem cultivar, ousariam manifestar o desejo de tê-la consigo.

Ela não servia de prêmio para qualquer um. Não tinha sido criada para saciar desejos de mal intencionados, de homens que batiam em mulheres, de plagiários, de recalcados  pela reprovação em exames de qualidade para o exercício de grandes cargos públicos, de gente que diz que mata no peito, mas depois afrouxa o garrão. Não era confiada a homens de baixo teor intelectual, de homens que pintam cabelo, usam peruca, retocam as unhas e as sobrancelhas para aparecer bem no vídeo.

Poucos, sim, muito poucos seriam os machos que, ao recebê-la em seus braços, poderiam dizer: “sempre sonhei com você”.

Ela  não se encostaria no corpo de um macho que não soubesse argumentar sem agredir, no de um pscicopata com cara de fantasma carrancudo ou no de um vaidoso de voz macia que ousa falar como se conhecesse os segredos do universo.

Ela só cairia bem no corpo de um macho que soubesse respeitá-la. O brilho hipnotizante que ela irradia estava só destinado à embriaguez dos sábios.

Assim era ela. Mas, aos poucos a foram mudando. Começaram a lhe emprestar características ou a lhe anexar valores totalmente irrelevantes. Ao invés da sabedoria, que não tem distinções, os critérios para sua entrega começou a incluir aparências: cor e sexo. Tipo assim: hoje ela vai se aninhar no corpo do fulano, para prestigiar a cor dele; amanhã será a vez da sicrana, que não tem pênis e só faz xixi sentada.

E com tantas mudanças, seus orgasmos múltiplos de glória e poder passaram a enfeitiçar qualquer um que se submetesse à humilhação de beijar os pés dos políticos inescrupulosos, que têm cacife de semvergonhice suficiente para comprar almas e revendê-las ao diabo. E foi se expondo como objeto de ignomínia. Para tê-la, para encostar o pescoço em sua gola de rendas, até a farra de uma noite em iate de luxo já chegou a ser o bastante.

Todas as pessoas de boas intenções, neste país, querem que ela seja o que deve ser, mostrando um recato que imponha respeito e submissão.

Mas, para que isso aconteça, os políticos terão que deixar de tratá-la como quenga, como um objeto de leilão em prostíbulo, como prazer de aluguel que vai para os braços de quem promete mais, de quem  só contribui com sua vaidade para o mau uso do poder. Sim, ela precisa realmente ser respeitada para impor respeito, ela merece reconfiguração para aquele estilo que atraía confiança, poder e discrição, ela,  a negra formosa, cobiçada, que provoca orgasmos de poder, glória e vaidade em quem a tem sobre o corpo: a toga de ministro do Supremo Tribunal Federal.