quarta-feira, 27 de setembro de 2023

 

CRIME IMPOSSÍVEL

Está na hora de botar em pratos limpos o tão comentado assunto dos “atos antidemocráticos” ocorridos em 8 de janeiro em Brasília. Comecemos pela Constituição Federal. Ali está escrito com todas as letras, no inciso XLIV do artigo 5º, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de direito”.

Mas, a Constituição não é a sede adequada para decidir sobre a tipicidade e a punição de fatos tidos como crimes. Se está escrito na Constituição que isso ou aquilo é crime, de nada valerá a norma constitucional, se não houver lei penal descrevendo a ação delituosa e as respectivas penas.

Quando foi promulgada a Constituição do senhor Ulysses Guimarães, em 1988, vigorava a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983, cujo artigo 17 descrevia como crime “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente, ou o Estado de Direito”. Era a Lei de Segurança Nacional do governo João Figueiredo.

Essa Lei vigorou sob os auspícios da Constituição de 1988 durante 33 anos, só sendo revogada pela Lei 14.197/21, cuja sanção traz, por ironia do destino, as assinaturas de Jair Bolsonaro e Anderson Torres. Ela passou a integrar o   Código Penal, nele incluindo o Título XII: “DOS CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO”. Entre esses crimes figura, no artigo 359 L, o de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes institucionais”.

Consta em diversos noticiários da imprensa que no dia 8 de janeiro do corrente ano “houve ataques à sede dos três Poderes e à democracia, com terroristas quebrando vidraças e móveis, vandalizando obras de arte e objetos históricos, invadindo gabinetes de autoridades, rasgando documentos e roubando até comida”.

Com base nesses fatos assim noticiados, foram presas centenas de pessoas e algumas delas até já condenadas em processo instaurado e julgado pelo STF.

A hermenêutica existe para evitar que a leitura isolada de um dispositivo legal, como esse artigo 359 L, sirva à desincumbência dos encargos judiciários. Ora, ele integra um conjunto legal orgânico, do qual faz parte outro dispositivo, o artigo 17 do Código Penal, indispensável na exegese criminal: “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.

Seria o Estado Democrático de Direito tão frágil, tão insignificante, desamparado de qualquer sustentáculo, a ponto de ser abolido mediante vidraças e obras de arte quebradas, invasões de gabinetes institucionais, supressão de documentos...?

Não é necessário ser altamente letrado, nem possuir o máximo de QI, para concluir que tais patacoadas não são dotadas de potencial ínsito, capaz de anular regimes de Estado, quaisquer que eles sejam.

Gente destrambelhada, sem juízo, iludida, embriagada por delírios, merece punição por danos causados ao patrimônio público; mas, não através de decisões que se aproveitem da cegueira da Justiça, para usá-la como justiceiro de cadafalso.

 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

 

                                                      ERA UMA VEZ UMA DEUSA

A pobreza intelectual, entalada em certas decisões judiciais, só surpreende a quem não sabe como são feitas as leis, a salsicha e as indicações para os cargos de ministro dos tribunais superiores.

Esse fenômeno tem origem numa mudança de costumes que  vem se operando na sociedade, não da forma lenta e gradual que é própria da evolução humana, mas pela força da tecnologia. As chamadas “redes sociais” são as principais responsáveis por essa rapidez de mudanças que alcançam várias gerações ao mesmo tempo. E foi assim, graças à força de uma comunicação sem limites, que a clausura da Justiça, onde se abrigavam provectos senhores antigamente, foi aberta.

Foi o próprio Supremo Tribunal Federal que, por primeiro, deu ouvido a certos clamores, para dar impulso às mudanças no próprio sistema de governo, usurpando as funções do Legislativo. Sustentado em arremedos de filosofia importada por um juiz gaúcho, o ministro Luiz Fux lançou mão de um expediente não reconhecido no Direito como modo de interpretação: ignorou o sentido das palavras “homem e mulher” no §3º do artigo 226 da Constituição Federal, para permitir a união estável a pessoas do mesmo sexo. Ou seja, reformou Constituição, função que é exclusiva do Poder Legislativo. Foi uma decisão de natureza política, porque a ciência do Direito não a autorizava.

A apatia do Poder Legislativo foi um dos fatos que promoveram a transformação da clausura do Judiciário em palco de cortinas levantadas, com apresentações imunes à censura e à proibição para “menores”. Mas, o surgimento do então juiz Sérgio Moro como figura pública foi, provavelmente, o ponto de partida mais palpável para a popularização do Judiciário, transformando-o em assunto preferido para manchetes na imprensa e tema para mesas de bar, comentários de taxistas e barbeiros.

Não foi preciso muito tempo para que o então magistrado fosse guindado ao posto de herói nacional, munido de escudo e espada para atacar a corrupção na política brasileira. Era tudo o que o povo via nele: o seu representante para materializar o desejo de botar na cadeia políticos que enriquecem com o dinheiro do contribuinte. A fama e o poder do ídolo criado pelo imaginário popular lhe emprestaram coragem para ultrapassar limites na interpretação da lei, como fizera Fux. E a chamada operação “Lava Jato” passou a ser usada como forma coercitiva de obter provas, através da delação premiada. Eram presos supostos corruptores, para entregarem os corrompidos.

Arrastado pelo caudal da “Lava Jato”, Lula foi parar na cena judiciária, como o anti-herói que alimentava a fama crescente de Sérgio Moro. E esse acabou embretado: se absolvesse Lula, despencaria para o abismo da repulsa popular; se o condenasse, teria consolidada sua imagem como ídolo. Um drama que juiz nenhum gostaria de viver.

A condenação sobreveio como um trançado inextricável, entretecido com fios de delação. Desde então o Brasil se dividiu, porque a trança, não podendo ser desenleada na forma da lei, foi decepada pela espada da Justiça. E a deusa Têmis perdeu sua divindade em Brasília.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

 

                                              AS DESGRAÇAS E OS POLÍTICOS

À fúria com que a natureza se abateu sobre o Rio Grande do Sul, na semana passada, ninguém poderia se manter alheio, frio, indiferente. Em momentos como esse, se aguça em muitas pessoas o sentimento gregário do animal humano, e a solidariedade se concretiza das mais diversas formas, dependendo das disponibilidades de cada um. Na imprensa, a pura e simples divulgação das notícias, principalmente as atinentes a desgraças que roubaram vidas, destruíram famílias, deixaram gente ao relento, têm o seu lado positivo, despertando a vontade de ajudar.

Mas, há também o lado opinativo da imprensa, do qual não se desvincula uma alta dose de subjetividade. A jornalista Rosane Oliveira, da Zero Hora, é conhecidíssima pelo seu talento em analisar política. A impressão que se tem é de que, mesmo que ela queira, não consegue se abstrair da política, diante de fatos que não são políticos por natureza, como esses que, movidos pela fúria das águas, com um horror de mitologia bíblica, causaram tragédias no Estado.

Em sua coluna, diz a referida jornalista que “a presença do prefeito, do governador ou do presidente em locais que enfrentam uma tragédia climática é menos importante do que as medidas concretas que os governos adotam”. Mas, depois dessa verdade dogmática, ela envereda para o lado que seu filão jornalístico não dispensa: a política. Então, afirma: “levar conforto aos que perderam parentes e mostrar que está ao lado deles é próprio dos líderes”.

Nada disso. A solidariedade das “lideranças” se concretiza com a transformação dos impostos em proveito do povo – e não no estelionato do abraço eleitoral patrocinado pelo infame fundo partidário. O povo paga impostos pelo direito à vida, com pontes, estradas e previsões climáticas seguras, desassoreamento de rios – e não para ouvir palavras de consolo. A dor de ninguém sumirá com a presença de um político. A perda de um ente querido não encontra consolo em abraços, apertos de mão, batidinha nas costas. O desespero de quem ficou apenas com a roupa do corpo, tiritando de frio e de medo, à espera de socorro, jamais será uma lembrança apagada ou um trauma debelado pelos afagos de gente que só é movida por ambições políticas.

O Lula, é claro, foi também foco das considerações políticas. Ele “poderia descer em Lajeado e ali fazer ao vivo uma manifestação de conforto”, assinala a colunista.

Dado o tom, o coral da grande imprensa entoou um clamor, pela ausência do Lula, como se a presença dele pudesse realizar o milagre da reposição de todas as coisas no lugar, devolvendo ao povo, machucado pelas perdas e lutos, a paz e a reconciliação com a vida. Como se Lula fosse o arco-íris em pessoa, ou encarnasse Moisés, recuando os rios para dentro de seus leitos.

Só aos verdadeiros analistas pode acudir a evidência de que, embriagado pela exacerbação de seu ego, Lula se sentia mais importante entre os tiranos que apoiam o bandido Putin, do que no cenário de uma das maiores desgraças deste país.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

 

        O RAP SEM REBOLADO DA JUSTIÇA ELEITORAL

Sob o slogan “na hora da verdade, a democracia fala mais alto”, a Justiça Eleitoral agora está aparecendo na televisão em ritmo de “rap”. Para quem não sabe: “rap” é um discurso com trilha sonora, coalhado de insatisfações e antíteses, inventado por afrodescendentes nos Estados Unidos. No “rap” da Justiça eleitoral, porém, não aparece a deslumbrante paisagem de traseiros rebolando ao ritmo dos quadris. E, embora o discurso seja sobre “democracia e respeito de diferenças” lá também não aparecem loiras de cabelos compridos, soltos, sacudidos pelo embalo forte da percussão.

O discurso é cantado por atores cujo rosto estampa uma expressão fechada, onde não há espaço para um sorriso, porque a cena do vídeo expedido pela Justiça Eleitoral sugere desavença entre um casal e soa como um “justiciamento de las brujas”: “liberdade de expressão não é licença pra espalhar mentira, ódio, golpe, desavença; democracia é conquista, não é sorte; pode recuar que a consciência aqui é forte”.

Além de não transmitir, quer por expressões cênicas, quer no seu conteúdo, uma conclamação à concórdia, ao apaziguamento dos ânimos, o discurso da Justiça Eleitoral investe na força dos mais poderosos: “democracia é conquista: pode recuar que a consciência aqui é forte”. Da expressão “pode recuar” soa um sentido de imposição, de autoridade, de força. Aliada ao substantivo “conquista”, a referida expressão sugere guerra, domínio, e não paz.

E toda essa toada fora de lugar se explica pela simples razão de que a Justiça Eleitoral não tem competência legal para fazer o que fez. O vídeo divulgado como se fosse da Justiça Eleitoral outra coisa não é senão obra do Tribunal Superior Eleitoral. Esse tem sua competência definida no artigo 22 do Código Eleitoral, instituído pela Lei nº 4737, de 15 de julho de 1965, e nessa competência se ressaltam os verbos “processar e julgar”, no que diz respeito à função jurisdicional.  No artigo 23 do mesmo Código estão definidas suas funções administrativas, atinentes à organização e ao desenvolvimento dos serviços exigidos pela finalidade principal do tribunal que é somente “processar e julgar”.

O dispositivo que permite interpretação extensiva da competência do TSE é o inciso XVIII do referido artigo 23: “tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral”. Mas, nenhum artigo da “legislação eleitoral” confere ao referido Tribunal a faculdade de usar dinheiro do povo, para pagar publicidade arvorada em intérprete dos direitos desse mesmo povo.

A obediência aos “princípios da legalidade e da moralidade” é imposição do artigo 37 da Constituição Federal à “administração pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e dos Municípios”. O que legal não é, não pode ser patrocinado pelos cofres públicos.

A democracia que fala mais alto é essa: o povo escolheu seus representantes, os constituintes, e esses, em nome dele, promulgaram uma Constituição que, “comprometida com a solução pacífica das controvérsias”, lhe concede liberdade, não lhe tapa a boca, não o amordaça. Diante dessa Constituição, o rap do TSE perde o rebolado.