quinta-feira, 27 de agosto de 2020

 

A RACHADINHA

Que Deus, quando criou o homem, estragou sua tranquila eternidade por toda a eternidade, não há dúvida. Mas, sabe-se lá porque fez isso. Para sair da rotina, talvez. E aí, deu no que deu. A história está na bíblia, para quem quiser ver. Mas, cronista nenhum está livre de escrever um evangelho particular, para botar nele o que os exegetas não botaram na bíblia. Detalhes, coisas do cotidiano, da vida.

Por exemplo: ao ver o Adão deitado, sem fazer nada, naquele paraíso que lhe fornecia tudo de graça, com abundância e fartura, peladão, coçando a bolota dependurada debaixo duma estrovenga que jazia, mole e inglória, entre as virilhas, Deus deve ter dito para si mesmo: hum...

Mas na bíblia os exegetas escreveram que Deus tinha dito “não é bom que o homem fique só”. E daí lhe veio a ideia de criar também a mulher. Era preciso dar mais uma finalidade para a dita estrovenga do Adão, criada nele a serviço da bexiga. Então Deus aproveitou um dia que o Adão estava na sesta, com o traseiro pra cima: tirou-lhe uma costela, para nela esculturar a mulher. E enquanto botava esmero naquela arte, matutava o que fazer, para tudo se encaixar como ele havia planejado. E a ideia não demorou porque, afinal, Deus é Deus, mal pensou já está feito: a rachadinha.

Aí,  minha gente, nem precisa contar mais nada. Se o mundo está saturado de povo é por causa do encaixe aquele, para o qual foi necessário criar a rachadinha.

Por causa da rachadinha, muito serviço já foi dado para a polícia. E agora os políticos inventaram outro tipo de rachadinha, que está dando não só serviço para a polícia, como manchetes para a grande imprensa, que se alimenta de cochichos e fuxicos. Prenderam o Queiroz, por causa da tal de rachadinha. E a mulher dele também. Alguém deve ter pensado: deve ter mulher se aproveitando da rachadinha.

Bom, para que não se fique confundindo uma rachadinha com outra, é preciso explicar que a rachadinha dos políticos consiste em se apossar de parte dos salários de seus assessores.

Pois, agora sobrou também para a dona Michelle Bolsonaro. O diz-que-diz lhe imputa benefícios extraídos da rachadinha que levou para a cadeia o Queiroz. Isso calhou no gosto daquela imprensa intoxicada por fuxicos, que procura armar palcos em todos os recintos da pátria, para exibir os escândalos da família Bolsonaro. Então, escolheram um mártir capaz de provocar incômodos piores do que cólicas no Bolsonaro.

 O cobra mandada não fez pergunta direta ao presidente, mas enrolada num jeito que implicava o envolvimento da primeira dama com a rachadinha da mulher do Queiroz e do próprio. Desnessário é dizer que o Bolsonaro subiu nas tamancas e ameaçou meter sua munheca de capitão nas ventas do desaforado.

Em cima dessa rusga, os palcos de escândalos serviram para encenar nova peça. A ópera do “Ataque à Imprensa” foi recriada e passou a ser entoada nos entreatos da pantomima principal, que é a “Rachadinha”.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

 

A GANGORRA DA JUSTIÇA

Os homens criam seus deuses, elegendo as próprias tendências e engenhos como modelo do caráter dessas divindades. A mitologia, gerada por crenças e religiões, tem suas balizas nas limitações do animal humano. Como esse não conhece deuses, só pode imaginá-los dentro dos limites de suas fantasias.

A deusa Têmis, criada pela mitologia grega, tinha ascendência divina. Seu pai era o deus Urano, com o qual a mãe-terra, Gaia, se envolvera, para criar o lar eterno dos deuses. Mas Gaia também teve casos com Ponto e Éter. E Urano, um deus lascivo, acabou sendo castrado pelo filho Kronos e teve os testículos jogados no mar.  Têmis, crescida dentro dessa família intrincada e ricamente fantasiosa da mitologia grega, casou-se com o sobrinho Zeus, filho do malvado Kronos.

Essa foi a deusa adotada no mundo inteiro como símbolo da Justiça. Em Brasília lá está, esculpida em pedra, vendada, com os escondidos de cima meio à mostra, estabelecida na frente do Supremo Tribunal Federal. Logo ela, que não teve modelos de convivência com equilíbrio, está servindo de paradigma para a justiça. Resultado: mais é usada sua espada para castrar, do que a balança para equilibrar direitos, dando a cada o que é seu. É dentro de si que, atiçado por suas inclinações e tendências, por impulsos momentâneos de conveniência, cada juiz busca razões para decidir.

Vejam o caso do Queiroz e a mulher dele. O Ministério Público instaurou inquérito a partir de movimentações bancárias “atípicas” de Fabrício Queiroz. Quis interrogá-lo, mas Queiroz não compareceu ao interrogatório. Então oferecida denúncia, ao que parece, por crime de “rachadinha”, foi decretada a prisão não só do Queiroz como de sua mulher. Com relação a essa, não se tem a menor ideia de que crime tenha ela cometido.

O juiz Flávio Nicolau, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, usando do poder que a lei lhe concede, gastou quarenta e seis páginas, copiando a denúncia oferecida pelo Ministério Público para decretar a prisão de Fabrício Queiroz e da mulher dele.

Luiz Otávio Noronha, presidente do STJ, concedeu Habeas Corpus a Fabrício Queiroz, em razão das condições de saúde do paciente, alegamente precárias, outorgando-lhe a prisão domiciliar. Na carona, a mulher de Queiroz foi para casa também.

Mas, recebendo os autos, o ministro relator original da causa, Félix Fischer, como diz a imprensa, “derrubou a prisão domiciliar” do casal.

Por último, Gilmar Mendes, “derrubando” a ordem de prisão determinada por Fischer, concedeu ao casal a graça inconcebível de permanecer no remanso do lar com tornozeleira. Para isso, meteu o dedo na fragilidade dos argumentos unilaterais do Ministério Público, usados pelo juiz Flávio Nicolau.

Hoje, no Brasil, a justiça não passa de um repositório de vaidades, cujo agente é o poder. No espetáculo forense, os réus servem como gangorra para a deusa: um juiz ora está por cima, ora está por baixo. E quem necessita dessa justiça precisa suportar a certeza de que o ego deles, juízes, é o filtro pelo qual passa a lei.

 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

 

O DIREITO DE RESPIRAR

Perdi o direito de respirar, de respirar o ar da rua, de sentir o fedor de estrume de cavalo no asfalto, dos lodaçais apodrecidos que são trazidos pela mensagem do vento, e de outros fedores, fermentados pela poluição da cidade, não perfeitamente identificados pelo meu olfato.

Perdi o direito de sentir o perfume da moça de corpo bem apanhado e cabelos recém lavados, que passa por mim apressada, na direção da estação do trem, sem se dar conta de que eu existo e de que me sinto feliz com perfume dela. Por decretos, fui privado do direito de sentir as sobras de felicidade que ela deixa por onde passa, de respirar seu cheiro sedutor, próprio para despertar instintos adormecidos. Não tenho mais o direito de respirar esse olor que seu corpo exala, enquanto o toc-toc do salto de seus sapatos tira a calçada do silêncio e serve como metrônomo para o compasso do meu coração.

Perdi o direito de sentir o cheiro da brisa humana, o cheiro das rosas dos jardins por onde passo, o vago cheiro que não tem endereço, nem destino. Só tenho o direito de respirar o meu próprio cheiro, que não tem cheiro nenhum, porque, em razão da intimidade que meu olfato tem com ele, um não dá bola para o outro. Então só respiro o que me sai pelas ventas e fecho a boca, para não me engasgar com o meu próprio cheiro. Nem ao cheiro úmido dessas névoas opressivas de agosto eu tenho direito.

Perdi também o direito de tomar cachaça com catuaba no bar, o direito de me aglomerar, de cair na gandaia. Perdi a chance de levar pisão no pé, de ser empurrado pelo mal educado apressado que não respeita os velhinhos e, consequentemente, o direito de me expressar com palavrão entre dentes ou com boa dicção, na rua.

Sim, senhores, perdi o direito de respirar, por conta dos cofres públicos. Porque do meu direito de respirar depende a vida de outras pessoas, pelas quais o Poder estatal é responsável, como está bem escrito no artigo 196 da Constituição Federal. Da minha respiração depende o número de leitos ocupados, pelos quais se devem responsabilizar a União, o Estado e os Municípios. E como eles não se responsabilizam, resolveram responsabilizar a minha respiração. Eu é que, para aliviar a responsabilidade dos governantes, sou privado de respirar o ar que a natureza me fornece de graça, e do qual o mundo está saturado.

Agora, quem manda no meu olfato são as trevas do poder. Principalmente os governos estaduais e municipais, que me ameaçam com multa e até com prisão, se eu me atrever a respirar o ar da rua. O que, em outras palavras, significa imposto sobre a respiração do ar.

E assim vou andando, isolado, de máscara, esperando que o mundo pós-apocalipse me encontre ainda vivo, vacinado pelos chineses, com a boca cheia de dentes, o cabelo cortado, e com altíssima taxa de testosterona, desencadeada pelos decretos de isolamento.

 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

QUANDO O ARGUMENTO É O SENTIMENTO 

 João Eichbaum

Não se sabe se Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski tiveram, alguma vez na vida, pruridos de sobriedade, sensatez, equilíbrio e circunspecção, que os ajudassem a distinguir os argumentos dos sentimentos. O que se sabe é o que todo mundo espera: que todos os juízes sejam senhores desses qualificativos. É pena que tais virtudes não sejam exigidas dos candidatos a ministro do Supremo Tribunal Federal.

Sim, porque, não lhes tendo sido exigidas essas qualidades de seres provectos, certamente aqueles dois senhores se dispensam da obrigação de exibí-las quando, vestidos de toga e recobertos de pompas e circunstâncias, comparecem perante as câmeras da TV Justiça para emitir juízos de valor.

Certamente por se sentirem assim desobrigados, até porque nunca tinham sido juízes antes do apadrinhamento para o Supremo, saíram completamente fora do tom ao emitirem seus votos, no julgamento da última terça-feira. Tratava-se de um pedido da defesa do Lula, para o desentranhamento da delação de Pallocci, no processo sobre o Instituto Lula. A delação teria sido juntada por determinação do então juiz Sérgio Moro, de ofício.

A sentença do processo nem foi proferida por Moro. Mas, Lewandowski e Gilmar Mendes se aproveitaram da ocasião para alfinetar o ex-juiz. Para Lewandowski, houve “inequívoca quebra de imparcialidade”. Para Gilmar Mendes, indicativos de “quebra de imparcialidade” de Sérgio Moro.

Isso quer dizer que eles já adiantaram publicamente seus votos, quando for julgado o pedido, propriamente, de suspeição daquele magistrado.

Ora, se a questão se limitava a desentranhar o documento, por ter sido ele juntado no processo ex-officio, era só mostrar a ilegalidade. Nada mais que isso. Acontece, porém, que não houve ilegalidade. A lei não proíbe que o juiz aja de ofício no processo penal. Pelo contrário, o art. 156 do Código Penal a admite, até antes mesmo de ser desencadeada a ação penal.

Longe dos focos da lei andaram, sim, os votos de Lewandowski e Gilmar Mendes, pelo menos nessa parte que os levou para as manchetes do jornal Estado de São Paulo. Mas parece que, a essa altura dos acontecimentos, o desconhecimento ou o desprezo da lei já faz parte da rotina dos julgamentos do Supremo. Ou a pobreza da hermenêutica leva a confundir sentimentos com argumentos.

Seja como for, porém, mais uma vez ministros do STF dão vazão para o descrédito na instituição. E isso, sim, faz mal para a democracia, porque nada é pior do que a insegurança jurídica, numa nação que mal se equilibra à beira de um abismo político, social e econômico.