segunda-feira, 29 de agosto de 2022

 

             ELES ACREDITAVAM NA CONSTITUIÇÃO

Dia 25 último foi o Dia do Soldado, mas quem marchou foi um grupo de empresários mal informados. São pessoas expertas que sabem negociar, têm talento para vender seus produtos, suas marcas, sua confiança e, com isso, sabem ganhar dinheiro. Conhecem tudo sobre o povão que embarca em propaganda e adora ídolos. Mas, não conhecem as raposas da política. Não conhecem também os homens que, se confundindo com as próprias instituições a que deviam servir, delas se servem com “auxílio-moradia”, “auxílio-saúde”, “refeições institucionais” e outras mordomias que se autoconcedem. Em razão disso, não precisam  se misturar ao povão que, para viver, tem que se submeter às leis do mercado, pelas quais são responsáveis a indústria e o comércio.

Os empresários, agora assolados pelo inquérito do ministro Alexandre de Moraes, pensavam viver num país onde “é livre a manifestação do pensamento”, onde “são invioláveis a intimidade e a vida privada”, onde “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”, onde não há “juízo, nem tribunal de exceção”, onde é “assegurada a competência para o julgamento dos crimes dolosos”.

Imaginando-se titulares desses direitos, e sob o pálio da segurança jurídica, já que a Constituição assegura sobretudo que ninguém será  “privado de direitos por motivos de crença religiosa, ou de convicção filósofica  ou política”, eles passaram a trocar correspondência, externando pensamentos políticos. O convívio privado entre colegas lhes permitia expressões que mais soavam como simplórias confidências do que como proposições. Mas, essas manifestações, sabe-se lá como, nem através de quem, foram levadas até a Polícia Federal e, naturalmente, divulgadas pela imprensa. “Golpe é o supremo agir fora da Constituição”- teria dito um dos participantes das rodas de conversa. “Prefiro o golpe do que a volta do PT” - dissera outro. “Mais 4 anos de Bolsonaro e mais 8 de Tarcísio aí não terá mais espaço para os vagabundos” – foi a frase atribuída a um terceiro.

Dessas três frases, das quais se tem conhecimento pela imprensa, a conclusão é de que uma exclui o “golpe”, por ser atentado à Constituição, outra expressa um pensamento alternativo sobre o resultado das eleições, e  a terceira revela um pensamento volitivo quanto ao futuro político. A que manifesta preferência pelo “golpe” como alternativa, usa o verbo adequado para exprimir esse pensamento, o verbo “preferir”. Em nenhuma conduta penal definida pela legislação específica dessa área jurídica, tal verbo é usado. E isso, pela simples razão de que “preferir” é a designação de um pensamento volitivo.

Gramaticalmente falando, o verbo é a essência, o substrato, a “conditio sine qua non” do fato criminoso, porque somente ele pode definir uma ação. A palavra “fato” deriva do verbo  latino “facere”, que significa “fazer”. O “fato”, portanto, é uma ação realizada, uma coisa feita.

Os empresários acreditavam na Constituição Federal de seu país, escrita “sob a proteção de Deus”, em 1988. Mas o preço dessa crença foi o cadafalso de um inquérito judiciário-policial, que lhes mutilou o exercício de direitos fundamentais.

 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

 

QUEM MERECE RESPEITO É O POVO

A sabedoria dos romanos já dizia, em tom didático: “poeta nascitur, orator fit”. Isso significa: o poeta já nasce com o talento literário, mas, para ser orador, é necessário o exercício. Um exemplo foi Diógenes, gago de nascença, que se tornou respeitável orador, depois de muitos e incontáveis exercícios, dentro de um tonel.

Hoje, no Brasil, entre os que se têm por cultos, não se encontra um sequer que tenha tido a oportunidade de mostrar talento, analisando, no original, os discursos de Cícero, o célebre orador político de Roma. Nem mesmo à suntuosa retórica literária  do Padre Antônio Vieira parece que foram apresentados os mandões que se apoderaram dos destinos do país, nos dias atuais.

O que se ouve todos os dias por aí são palavrórios burocráticos, lidos com ênfase teatral, para colher palmas em plateias forradas de analfabetos funcionais.

Nos ouvidos de quem conhece retórica, o vocabulário ardente do ministro Alexandre Moraes, em seu pronunciamento de posse como presidente do TSE, despeja só uma dialética de valores democráticos invertidos.

“A cerimônia de hoje simboliza o respeito pelas  instituições como único caminho de crescimento e fortalecimento da República e a força da democracia como único regime político, onde todo o poder emana do povo e deve ser exercido pelo bem do povo. É tempo de respeito, defesa, fortalecimento e consagração da democracia” – disse ele, segundo a imprensa.

Cerimônias de posse não simbolizam coisa nenhuma. Não passam de solenidades meramente burocráticas, sem finalidade prática, sem nada que represente uma resposta satisfatória ao desembolso compulsório de meios de pagamento, impostos aos contribuintes.

“Respeito pelas instituições”? Não, senhor, nada disso. O “único caminho de crescimento e fortalecimento da República” é o respeito pelo povo, sem o qual não haveria “instituições”. É o povo que, com o dinheiro arrancado do seu trabalho, do seu suor, sustenta as  “instituições” e suas cerimônias protocolares. Por isso, é o povo que tem o direito exigir  delas o respeito.

Ora, bolas, se “o poder emana do povo e deve ser exercido pelo bem do povo”, as instituições não teriam poder, se não fosse o povo. Então, elas é que devem, em primeiro lugar, respeitar o povo, prestando contas dos deveres de que são incumbidas por lei. E que não sirvam de valhacouto para quem, eleito pelo povo, ou apadrinhado por quem o povo elegeu, as usa em benefício próprio.

O povo necessita de comida na mesa, por exemplo. Mas, lautos banquetes, as chamadas “refeições institucionais”, com que se regalam membros de certas “instituições”, estão bem longe de representar o exercício do poder “pelo bem do povo”.

O povo necessita de saúde, e paga para isso, mas não tem “auxílio-saúde”. Justamente o povo, que banca planos de saúde vitalício para quem deveria exercer o poder “pelo bem do povo”, só tem direito à saúde, à custa de filas e esperas intermináveis.

Enfim, só fortalece  a democracia o poder exercido pelo bem do povo. Mas esse fenômeno social não se constrói com panegíricos vazios.

 

 

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

 

O DESCONCERTO

Aconteceu o seguinte, segundo noticia o jornal Zero Hora: um cidadão,  acompanhado de sua mulher, procurou certa clínica e agendou procedimento de vasectomia. No dia marcado para a operação, o paciente não compareceu, nem deu explicações. Cobrado pela ausência, o casal informou que havia desistido do procedimento, porque o virtual paciente “não se sentiria confortável com a cirurgia”. Diante da explicação, o médico teria enviado mensagem, na qual, junto com a foto do casal, estava escrito: “ Até tento mudar meu pensamento de preconceito, mas vocês não deixam! Taí a prova”.

A clínica, onde o médico trabalhava, foi condenada a pagar  R$ 30.000,00  a título de indenização.

Aparentemente, tudo normal. Mas, não é bem assim. Para quem conhece o Direito, não raros são os casos de desconcerto nessa ópera em que a Justiça colhe apupos da plateia, porque desafina, erra a letra e improvisa, ao invés de cantar segundo o libreto que lhe foi confiado pela lei.

Se a clínica foi condenada a pagar indenização, é porque se trata de processo cível, não criminal, por dano moral, com base no princípio da responsabilidade objetiva. Esse princípio, acolhido pelo artigo 932 do Código Civil brasileiro, impõe, a quem não tem culpa, a obrigação de reparar danos causados por outrem. Exemplo: o empregador responde pelos danos praticados por seus empregados.

Mas, desgarrada das rédeas da “serenidade” e da “urbanidade”, impostas pelo art. 35 da Loman, a sentença de primeiro grau se despe da roupagem de juízo de valor, quando escorrega para adjetivação impertinente. É o que transparece desse excerto publicado pelo jornal ZH: “essa frase, acompanhada de fotos do casal e gargalhadas do tipo hahaha não teve outro objetivo a não ser diminuir os autores em função da cor de sua pele, revelando-se oportunista e covarde a tese da clínica...”

No tribunal, em jurisdição estritamente cível, o desembargador proferiu juízo essencialmente criminal: “Não há dúvidas e nem qualquer controvérsia acerca da injúria racial perpetrada pelo médico”.

Consoante o art. 186 do Código Civil,  “aquele que, por ação ou omissão voluntária, ou imprudência violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. A expressão “violar direito e causar dano” comporta duas orações, portanto duas ações, porque contém dois verbos: “violar” e “causar”. Sua subsunção é impedida pela função copulativa da  conjunção coordenativa “e”.

Sendo ofensa personalíssima, os danos devem ser demonstrados. Tipo assim: esmagado pela ofensa, surtou, beijou a sogra na boca, comeu a ração do cachorro. A jurisprudência que vê danos “in re ipsa” desconhece latim e português. A ação é designada pelo verbo, não pela “coisa”. A ofensa gera ação penal; os danos, reparação. E se sobrevier sentença criminal transitada em julgado, negando  inexistência de crime, com que cara fica a Justiça? Sábia, a lei se socorre do “e” com função copulativa, para evitar tais disparates.

Todo jurista deveria dominar seu único instrumento de trabalho, o vernáculo. Mal trabalhada, a linguagem compromete a justa aplicação do Direito,  expondo a Justiça como chamariz de repúdios.

 

terça-feira, 9 de agosto de 2022

 

A NOVELA DA KISS

A dor, a tristeza, a consternação e o desconsolo infinito, que são causados pela perda de entes queridos, são reações próprias da nossa natureza de animal racional. Ninguém se conforma com a perda de quem ama.

Essas forças dominadoras que subjugam a quem sofre a perda, porém, ninguém as divide com outrem, porque elas têm um enorme poder sobre os pensamentos e as decisões, e são capazes de quebrar até o elo da convivência social. A amargura é tanta e tão desoladora, que  desata, pelo menos nos primeiros momentos, a sensação de que o mundo acabou.

Mas, as desgraças provocadas pelo incêndio da Boate Kiss em Santa Maria romperam as barreiras desse círculo de intimidade da dor. O sensacionalismo absorveu as dores individuais, criou uma dor coletiva, e invadiu as instituições, levando muitos de seus agentes a mergulharem de corpo e alma na causa, como se fosse ela a única a exigir o exercício das funções dos cargos públicos. O incêndio provocado pelo fogo se transformou num fogaréu de emoções sociais.

Há dez anos se arrasta um processo judicial, ao som de clamores que soam como vingança e movido a direitos morais. E na justiça os réus foram transformados em petecas: ora estão presos, ora estão soltos. O que era para ser uma dor para sempre lamentada, está servindo como cena em palcos judiciários, provocando apupos e aplausos.

No ato mais recente dessa cena, aparecem como personagens o Ministério Público gaúcho e o ministro do STF Luiz Fux. Por decisão de uma Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram soltos os réus que o Fux mandara prender. Então, os autores da ação penal correram a reclamar para o Fux que a decisão dele não está sendo respeitada. Para isso, evocaram as palavras do próprio Fux. Segundo dizeres do referido togado, nenhuma decisão do tribunal gaúcho “teria o condão de sustar, direta ou indiretamente, os efeitos da decisão suspensiva prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível inversão de instâncias”. E isso porque “a autoridade desse pronunciamento apenas pode ser alterada ou revogada no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal”.

Em que lei Luiz Fux foi buscar força para trancar o curso do “devido processo legal”, suspendendo o exercício da jurisdição do TJRGS, ele não disse. Mas, isso é o que menos conta, quando se vê o Direito se espatifar nos baixios rochosos das “decisões monocráticas”, que emprestam “autoridade” para “pronunciamentos”. Isso ocorre quando a justiça abandona a escala de valores, para tomar a forma humana.

Mas, enfim: até um concurso de beleza de egos parece fazer parte do espetáculo em que se transformou aquela deplorável mortandade de seres humanos na Boate Kiss.

Enquanto isso, presos em trêmula e revoltada expectativa diante das cenas judiciárias, que giram em vaivéns de roda de sorte, os que perderam entes queridos na catástrofe buscam uma recompensa para a ferida, seja de que natureza for, um consolo qualquer, que substitua a dor e a saudade.

                         

 

terça-feira, 2 de agosto de 2022

 

PISANDO NA BOLA

Os efeitos da mentira não diferem dos efeitos da ocultação da verdade. As fontes de uns e de outros é que são distintas. A mentira é produzida pela má intenção, pela finalidade definida e propositada de enganar alguém. Já a ocultação da verdade não passa de um modo de fingir ignorância. Mas ambas carregam armaduras frágeis e nenhuma escapa àquele sábio ditado das vovós de antigamente: “a mentira tem pernas curtas”.

Na secção denominada “Política”, o jornal Zero Hora, numa das edições da semana passada, informa que “dois documentos de teor semelhante circulam no mundo virtual, com a assinatura de milhares de pessoas representativas do que se poderia chamar de PIB econômico e intelectual do Brasil”. Sobre o conteúdo dos referidos documentos diz que “na essência defendem os mesmos valores: a democracia, o sistema eleitoral e as instituições da República”. E revela quem são os signatários: “empresários, banqueiros, artistas, ex-ministros, ex-presidentes do Banco Central, profissionais liberais”.

O júbilo pela referida manifestação escapa numa expressão de louvor: “o manifesto gestado pelos empresários e que já tem mais de 6 mil assinaturas é um primor de concisão”. Para ilustrar o encômio, transcreve o texto, que qualifica  como “o recado mais contundente”. Ali dizem os signatários que “o princípio chave de uma democracia saudável é a realização de eleições e a aceitação de seus resultados por todos os envolvidos”. Segue-se a recitação de um credo na “Justiça Eleitoral brasileira” e “no sistema de votação eletrônico”.

Nada disso surpreende, quando se sabe quem são os signatários dessa manifestação política. São órfãos do governo Lula que, desmamados das tetas da República, evidentemente, não poderiam ficar calados em vésperas de uma eleição que lhes pode permitir mamar deitados outra vez. O que surpreende é a chamada do jornal para  o texto. “PIB entendeu: democracia corre perigo” é o título da matéria.

Ora, os interessados por economia  colherão nesse título a ideia de que o PIB brasileiro está a desandar, graças ao desmonte da democracia. E a própria autora da texto não permite que se afaste essa ideia, perguntando: “quem haverá de querer investir no Brasil se houver risco de um golpe de Estado, disfarçado ou explícito?”

Mas, as vovós antigas sempre estarão cobertas de razão. Acontece que o jornal pisou na bola não só quando se desmanchou em elogios sobre uma capenga manifestação, cujos signatários conseguem a proeza de pespegar   na democracia um fantasioso adjetivo: “saudável”. Ora, o substantivo “democracia” só comporta dois adjetivos: direta ou indireta. Suscetíveis de julgamentos, avaliações e qualificações são os governos ou a convivência social, mas não o sistema. Esse poroso conceito de “democracia”, reduzido à “realização de eleições” e despido de um atributo de natureza axiológica, que é  a irresignação dos vencidos, revela um baixo índice do “PIB intelectual”.

O desastre maior do texto jornalístico, porém, não foi esse, mas as “pernas curtas” da notícia, desmoralizada pela manchete  do mesmo jornal, algumas páginas adiante: “FMI eleva projeção para o PIB do Brasil de 0,8 % para 1,7%”.