terça-feira, 29 de abril de 2025

 

                                  DESTINOS OPOSTOS

 

Não vi seu rosto. Ele dormia debaixo do viaduto, enroscado em plásticos, jornais e panos que, um dia, foram cobertores. Eram dez da manhã, o sol brilhava, as pessoas passavam rente dele, correndo, fazendo exercícios, para espantar a morte ou para ficarem mais elegantes. Mas, ele dormia. Um sono solto, indiferente à vida, indiferente ao céu azul, indiferente às nuvens que quebravam a monotonia desse azul, com seus enormes flocos de algodão. Ele dormia, plácido, surdo, nem aí para o voluteio dos pássaros que comemoravam a beleza do dia.

Ah, a propósito, bem perto de sua cabeça jazia um pássaro morto, já em estado de decomposição. Mas, pouco se lhe dava: ele dormia o sono dos justos, o sono daqueles que foram condenados pelos deuses e pelos homens a viverem à margem da sociedade, sem passado, sem futuro, tendo como presente apenas o dia  que estão vivendo, e vivendo quer dizer dormindo ou pedindo alguma coisa para comer.

Ninguém sabe o que lhe gerou essa culpa pela qual está pagando. Nem mesmo ele sabe. Ninguém sabe por qual razão está cumprindo essa sentença de fome, de frio, de sono ao relento, ao lado de um pássaro morto. Ninguém sabe por que foi condenado a ficar exposto à indiferença dos passantes, que lá vão correndo, ou caminhando em passos esportivos, com bonés, óculos, tênis e abrigos ou calções de marca.

Não vi seu rosto, repito.  Mas sei que era negro, porque os pedaços de cobertor, de que ele se servia, não eram suficientes para lhe tapar o corpo todo. E as pernas eram de negro. Pernas finas, por sinal, ossos cobertos por uma pele escura.

Então me ocorreu a abissal diferença que existe entre os destinos de bilhões de criaturas. Por que alguns têm muito e muitos nada têm?

Exatamente naquele dia, nas grandes manchetes só aparecia a notícia da morte do Papa. Páginas e páginas foram lavradas para falar, não propriamente sobre o argentino Jorge Bergoglio, mas sobre o Papa, seu reinado, suas falas, suas tendências políticas. Aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, o jornal Zero Hora gastou nada menos do que 16 páginas sobre o pontífice.

Mas, há que se admitir: a imprensa, numa hora dessas, mais não faz do que emprestar eco às emoções e crendices da maioria do povo. Foi o povo que construiu a glória do Papado. Foi o povo que criou e alimentou essa fantasia de que o Papa não é uma simples pessoa, um ser de carne e osso, sujeito a todas as exigências da natureza animal, das mais humilhantes às mais excitantes. E, como todo e qualquer ser vivo, tem seu prazo de validade.

Infelizmente é assim. Mas só a certeza de que ninguém administra o planeta, nem traça destinos, só ela explica a existência de seres humanos que nem uma vida de cachorro levam, com direito à saúde, ao banho, ao perfume, à tosa, à internação, ao colo fofo da madame... Enquanto outros chegam à glória do Vaticano.

 

 

quarta-feira, 16 de abril de 2025

 

DA IMORALIDADE E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS

O vídeo que circula nas redes sociais mostra a figura de um homem de cenho cerrado, aquela cara que todo mundo faz quando tem incômodos com os intestinos, o boné puxado até o meio da testa e vestido com a camiseta do Corinthians. Dizem que é Alexandre de Moraes, vendo o jogo Corinthians x Palmeiras.

A notícia que saiu nos jornais é de que o dito senhor Alexandre teria se utilizado de um avião da FAB para assistir àquele jogo. Nenhum desmentido apareceu da parte dele ou da instituição a que ele pertence, o Supremo Tribunal Federal. A única notícia conhecida, referente ao assunto, é de que a Procuradoria Geral da República arquivou o pedido de investigação, formulado por um advogado, a fim de ser apurado uso de avião da FAB, para se submeter a catarses futebolísticas.

No artigo 2º do Decreto 10.267, de 5 de março de 2020, que dispõe sobre transporte aéreo de autoridades em aeronaves do comando da Aeronáutica, não constam como beneficiários dessa mordomia os ministros do STF. Só seu presidente poderá requerer o transporte, nos casos especificados no artigo 3º do referido decreto: emergência médica, segurança, viagem em serviço. Esse Decreto, assinado por Bolsonaro, revoga decretos anteriores e proíbe uso de aeronaves para viagens aos municípios de residência das autoridades.

Mas, segundo informação de Marina Verenicz do InfoMoney 25, desde 2023 Lula autoriza ministros do STF a se utilizarem de aeronaves da Força Aérea Brasileira, apesar de não estarem eles incluídos na regulamentação vigente, “para deslocamentos frequentes, principalmente entre São Paulo e Brasília”. Acrescenta a jornalista que “parte da lista de passageiros permanece sob sigilo por até cinco anos, com a justificativa de proteger a integridade dos magistrados”.

Para quem não sabe: decreto não é lei. O decreto não passa de mero ato administrativo. E, nos termos do artigo 37 da Constituição Federal, os atos da administração direta da União, Estados e Municípios devem obedecer aos princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade.

Até hoje ninguém arguiu a inconstitucionalidade dessa mordomia, desse repulsivo privilégio. E se foi arguida, provavelmente  obteve recusa imediata, por motivos que só a imoralidade poderia explicar.

“Todos são iguais perante a lei”. Para esse “todos” a que se refere o artigo 5º da Constituição, não há, nem pode haver, diferenças. O cargo público não transfigura o animal humano, não o torna superior. “Emergência médica” e “segurança” são problemas inteiramente pessoais, sem qualquer distinção:  todo e qualquer cidadão está sujeito a tais necessidades. E não pode haver “imoralidade” maior do que se servir do dinheiro do contribuinte para resolver problemas pessoais.

A imoralidade que está no Decreto contamina a conduta de quem o aproveita em benefício próprio.

Na escala descendente do “ruim” só existe o “pior”. Foi o que o Lula fez: além da impessoalidade, ele varreu a transparência, tapando a imoralidade com o sigilo.

Isso só acontece num país onde, por causa de suposto golpe revolucionário com batom, crianças são condenadas à dor da ausência da mãe.

 

sexta-feira, 4 de abril de 2025

 

O DOUTOR DAS EXCLAMAÇÕES

O único brasileiro que avacalhou desassombradamente um ministro do STF, chamando-o de juiz de me*da,  foi Saulo Ramos. Mas nem por isso foi xingado, ameaçado de prisão, ou processado.

Nesse momento de indignação, vivido por milhões de brasileiros em razão do tratamento dado por Alexandre de Moraes e seus acompanhantes a Débora dos Santos, a cabelereira que pichou com batom o monumento de Thêmis, vem à tona a lembrança do livro “Código de Vida”, onde Saulo Ramos deixou registrada a fétida qualificação de Celso de Mello como juiz. Para deixar claras as razões dessa lembrança: Saulo Ramos foi quem apadrinhou Celso de Mello, indicando-o para o STF.

Na semana passada, Celso de Mello, lançou purulento desabafo, recebido como “artigo” por alguns órgãos de imprensa, no qual ele festeja a imposição de 14 anos de prisão para aquela senhora.

Para quem não sabe, o mencionado senhor, cuja personalidade foi comparada àquela matéria expulsa dos intestinos através do cólon, sempre foi tido como respeitabilíssima figura e honorável mentor das demais Excelências do STF.

Ora, segundo práticas e opiniões prevalecentes, os discípulos são formados à feição de seu mentor. Então certamente foi para confirmar a ascendência sobre os pupilos, que ele fez jorrar na tela do seu computador um desperdício de pontos de exclamação, que acabaram transformando seu rançoso desafogo numa chuva de frases e orações exclamativas: 21 pontos de exclamações e apenas 2 pontos finais, num texto de 702 palavras...

O texto desse senhor permite supor seu desconhecimento de regras primárias de redação, como a de que, numa oração afirmativa, o enunciado se encerra com ponto final, e não com ponto de exclamação. Vejam só: “é totalmente falaciosa (e absolutamente divorciada da realidade do processo penal contra ela instaurado) a afirmação de que a punição a 14 anos de prisão se deveu, unicamente, ao fato de a ré haver passado batom em uma estátua!!!”

Ele está contradizendo uma versão, ou seja, está desenvolvendo uma objeção, e não exprimindo um sentimento. A finalidade do ponto de exclamação é a de reforçar, reproduzir, por meio de um sinal, a emoção registrada na frase.

Além de ignorar as funções do ponto de exclamação, ele desconhece também a finalidade do parêntesis. A expressão “e absolutamente divorciada da realidade do processo penal contra ela instaurado” é, ou deveria ser, para não empobrecer seu discurso dialético, o argumento que lhe sustenta a tese de falácia. Quer dizer, a base de sua refutação foi tratada como mera referência explicativa. Mas é refutação falsa. A “realidade do processo penal” consiste apenas em operações genuinamente processuais, através das quais se desenvolve o processo. A realidade do processo é uma; a realidade dos fatos que o desencadearam, é outra.

Para demonstrar a falsidade da versão que atribui unicamente ao uso de batom a condenação de Débora a 14 anos, Mello deveria mencionar pelo menos algumas das infrações por ela praticadas. Mas, de seu cérebro o que mais vasou foram exclamações...