O DIREITO DE RESPIRAR
Perdi o direito de respirar, de respirar o ar da
rua, de sentir o fedor de estrume de cavalo no asfalto, dos lodaçais
apodrecidos que são trazidos pela mensagem do vento, e de outros fedores,
fermentados pela poluição da cidade, não perfeitamente identificados pelo meu
olfato.
Perdi o direito de sentir o perfume da moça de
corpo bem apanhado e cabelos recém lavados, que passa por mim apressada, na
direção da estação do trem, sem se dar conta de que eu existo e de que me sinto
feliz com perfume dela. Por decretos, fui privado do direito de sentir as
sobras de felicidade que ela deixa por onde passa, de respirar seu cheiro
sedutor, próprio para despertar instintos adormecidos. Não tenho mais o direito
de respirar esse olor que seu corpo exala, enquanto o toc-toc do salto de seus
sapatos tira a calçada do silêncio e serve como metrônomo para o compasso do
meu coração.
Perdi o direito de sentir o cheiro da brisa
humana, o cheiro das rosas dos jardins por onde passo, o vago cheiro que não
tem endereço, nem destino. Só tenho o direito de respirar o meu próprio cheiro,
que não tem cheiro nenhum, porque, em razão da intimidade que meu olfato tem
com ele, um não dá bola para o outro. Então só respiro o que me sai pelas
ventas e fecho a boca, para não me engasgar com o meu próprio cheiro. Nem ao
cheiro úmido dessas névoas opressivas de agosto eu tenho direito.
Perdi também o direito de tomar cachaça com
catuaba no bar, o direito de me aglomerar, de cair na gandaia. Perdi a chance de
levar pisão no pé, de ser empurrado pelo mal educado apressado que não respeita
os velhinhos e, consequentemente, o direito de me expressar com palavrão entre
dentes ou com boa dicção, na rua.
Sim, senhores, perdi o direito de respirar, por
conta dos cofres públicos. Porque do meu direito de respirar depende a vida de
outras pessoas, pelas quais o Poder estatal é responsável, como está bem escrito
no artigo 196 da Constituição Federal. Da minha respiração depende o número de
leitos ocupados, pelos quais se devem responsabilizar a União, o Estado e os
Municípios. E como eles não se responsabilizam, resolveram responsabilizar a
minha respiração. Eu é que, para aliviar a responsabilidade dos governantes,
sou privado de respirar o ar que a natureza me fornece de graça, e do qual o
mundo está saturado.
Agora, quem manda no meu olfato são as trevas do
poder. Principalmente os governos estaduais e municipais, que me ameaçam com
multa e até com prisão, se eu me atrever a respirar o ar da rua. O que, em
outras palavras, significa imposto sobre a respiração do ar.
E assim vou andando, isolado, de máscara, esperando
que o mundo pós-apocalipse me encontre ainda vivo, vacinado pelos chineses, com
a boca cheia de dentes, o cabelo cortado, e com altíssima taxa de testosterona,
desencadeada pelos decretos de isolamento.
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