quinta-feira, 13 de agosto de 2020

 

O DIREITO DE RESPIRAR

Perdi o direito de respirar, de respirar o ar da rua, de sentir o fedor de estrume de cavalo no asfalto, dos lodaçais apodrecidos que são trazidos pela mensagem do vento, e de outros fedores, fermentados pela poluição da cidade, não perfeitamente identificados pelo meu olfato.

Perdi o direito de sentir o perfume da moça de corpo bem apanhado e cabelos recém lavados, que passa por mim apressada, na direção da estação do trem, sem se dar conta de que eu existo e de que me sinto feliz com perfume dela. Por decretos, fui privado do direito de sentir as sobras de felicidade que ela deixa por onde passa, de respirar seu cheiro sedutor, próprio para despertar instintos adormecidos. Não tenho mais o direito de respirar esse olor que seu corpo exala, enquanto o toc-toc do salto de seus sapatos tira a calçada do silêncio e serve como metrônomo para o compasso do meu coração.

Perdi o direito de sentir o cheiro da brisa humana, o cheiro das rosas dos jardins por onde passo, o vago cheiro que não tem endereço, nem destino. Só tenho o direito de respirar o meu próprio cheiro, que não tem cheiro nenhum, porque, em razão da intimidade que meu olfato tem com ele, um não dá bola para o outro. Então só respiro o que me sai pelas ventas e fecho a boca, para não me engasgar com o meu próprio cheiro. Nem ao cheiro úmido dessas névoas opressivas de agosto eu tenho direito.

Perdi também o direito de tomar cachaça com catuaba no bar, o direito de me aglomerar, de cair na gandaia. Perdi a chance de levar pisão no pé, de ser empurrado pelo mal educado apressado que não respeita os velhinhos e, consequentemente, o direito de me expressar com palavrão entre dentes ou com boa dicção, na rua.

Sim, senhores, perdi o direito de respirar, por conta dos cofres públicos. Porque do meu direito de respirar depende a vida de outras pessoas, pelas quais o Poder estatal é responsável, como está bem escrito no artigo 196 da Constituição Federal. Da minha respiração depende o número de leitos ocupados, pelos quais se devem responsabilizar a União, o Estado e os Municípios. E como eles não se responsabilizam, resolveram responsabilizar a minha respiração. Eu é que, para aliviar a responsabilidade dos governantes, sou privado de respirar o ar que a natureza me fornece de graça, e do qual o mundo está saturado.

Agora, quem manda no meu olfato são as trevas do poder. Principalmente os governos estaduais e municipais, que me ameaçam com multa e até com prisão, se eu me atrever a respirar o ar da rua. O que, em outras palavras, significa imposto sobre a respiração do ar.

E assim vou andando, isolado, de máscara, esperando que o mundo pós-apocalipse me encontre ainda vivo, vacinado pelos chineses, com a boca cheia de dentes, o cabelo cortado, e com altíssima taxa de testosterona, desencadeada pelos decretos de isolamento.

 

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