terça-feira, 24 de maio de 2022

 

CAINDO NA REAL

Parece que o Estadão começou a retroceder, em seus propósitos de defender o Supremo Tribunal Federal. Antes havia conclamado “a sociedade brasileira” a “se erguer contra esses ataques à autoridade do Supremo”.

Mas, alguém deve ter soprado nos ouvidos dos editorialistas algumas questões. A primeira delas: a sociedade não apita coisa nenhuma, o povo não passa de um joão-ninguém e só tem um direito, neste país, que é a obrigação de votar. O povo, chamado de sociedade, essa coisa amorfa, que na realidade não passa de um substantivo abstrato, pode berrar, que nunca será ouvido pelas autoridades, a menos que seja tempo de eleição. Outra: o povo não ta nem aí pro Supremo, a maioria não sabe que ele existe, ou para quê ele existe. Só se lembra do Supremo quem tem alguma causa lá, mas lá só chegam causas de ricos, políticos e famosos, e o povo não é nada disso.

Sem o povo não existe “sociedade”. A menos que se considere “sociedade” a casta que vive bem às custas do povo: as autoridades e aqueles que detêm o poder econômico e podem comprar os seus direitos, venham eles donde vierem.

É verdade que, de uns tempos para cá, uma porção do povo faz uso do “facebook” e de outros instrumentos oferecidos pela internet, para dizer o que pensa. Mas não é todo o povo. Apenas uma parte dele usa a internet para falar sobre a vergonheira da política e das autoridades que, embora não devam ser políticas, usam de seus altos cargos como se políticos fossem. Nessa parte do povo se incluem aqueles que sentam a lenha no STF, sem dó nem piedade, achincalham os ministros, debocham das decisões da chamada Suprema Corte. E parece que ninguém se atreve a elogiar.

É de se supor que o quadro pintado aí acima tenha passado pela cabeça dos editorialistas do jornal Estado de São Paulo. Depois daquela conclamação à “sociedade”, o jornal mudou de tom: “O Supremo tem enfrentado um cenário inédito de resistência e oposição em amplos setores da sociedade. Todos, especialmente os ministros do STF, devem zelar pela autoridade da Corte”.

Então, já não é mais a “sociedade”, mas “amplos setores” dela que vociferam contra o STF. E o respeito pela referida instituição deve começar pelos próprios ministros.

Caiu na real”, como diz o povo. Ao abandonar a ópera na qual assumira o papel de Joãozinho do Passo Certo, o jornal deixa escapar severa repreensão aos membros da Suprema Corte brasileira. “No caso dos ministros do STF  cumpre-se esse dever observando as obrigações próprias de juiz: ser o primeiro cumpridor da lei, falar apenas nos autos, ser consciencioso com os limites de sua jurisdição, não buscar os holofotes, não usar do cargo para promover ideias e convicções pessoais” – diz o editorial.

Mudando sua retórica, o jornal falou às claras para aqueles senhores que vestiram a toga por serem, supostamente, cidadãos de “ilibada conduta”, e não por serem deuses de seletas inspirações, que precisam de incenso.

 

 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

 


E O TRF4 FICOU DEVENDO...

“Paul Ricoeur reconhece intersecções entre narrativa ficcional e histórica, mas adverte que há diferença entre explicar narrando e problematizar a própria explicação para submetê-la à crítica dos recipientes”.

Entenderam? Alguém conseguiu destrinchar o sentido desse ajuntamento de palavras? Alguém conseguiu decifrar o enigma contido atrás desses vocábulos agrupados num artigo de jornal?

Para quem espera que a obscuridade se dissipe, e permita a entrada de luz sobre o sentido do texto, se transcreve o período que segue.

“Conceitualização, objetividade e repetição crítica estão na base da historiografia, a pressupor atuação sem preconceitos na análise dos fatos. Como no artigo "Aqueles Três" (ZH, 7-8/5), as vestes historiográficas foram removidas, restou a narrativa unilateral, baseada em idiossincrasias e convicções. Não falou o historiador, mas o emissor pautado em juízos apriorísticos. Irrelevante seria o desvelamento - toda opinião merece respeito - não fossem a causticidade e, principalmente, os aleives direcionados contra a instituição e os seus juízes”.

Piorou, não é mesmo? As frases subsequentes, que deveriam servir como lanterna para iluminar o caminho obscuro, onde as frases antecedentes colocaram as ideias, prestaram o desserviço de aumentar a escuridão. Umas e outras armaram um encadeamento de palavras que mais servem para enredar o vernáculo, do que para usá-lo como expressão de pensamento.

A impressão que se tem é de que o autor do artigo lacrou a porta de uma caverna onde escondeu suas ideias. Essa caverna, como a do Ali Babá e seus quarenta ladrões, precisa de senha para ser aberta. Mas, esquecida a senha, vão sendo escolhidas palavras ao léu. Pode ser que uma delas dê certo. 

Mas, se não encontrou as palavras exatas para expressar seu pensamento, o autor do texto, desembargador Ricardo Teixeira do Valle Pereira, pelo menos deu uma pista: “Aqueles três”. Esse é o título de outro artigo, com a assinatura de Fernando Marshall, publicado na edição dos dias 8 e 9 deste mês do jornal Zero Hora. Marshall não poupa o TRF4 e se desmancha em azedas críticas pela condenação do Lula. Entre outras coisas, diz o articulista: “Aquele rito grotesco foi antecedido pela vexatória e delituosa declaração do presidente do TRF4, de que a sentença mal escrita seria "irretocável": o colégio local, cálido amigo do juiz então contestado, atuou em incestuosa sincronia, deixando entreverem-se arranjos áulicos agredindo a defesa e o réu e resultando na ratificação e ampliação da pena iníqua”.

Invocando o direito de resposta, na condição de presidente da instituição atacada, o desembargador Ricardo Teixeira do Valle Pereira conseguiu a façanha de não responder. Sua pretendida resposta acabou desembocando  num labirinto, onde se perdeu a pureza da linguagem. O magistrado quis ser cortês, para não usar o mesmo tom da crítica ferina. Procurou esconder qualquer sinal de indignação atrás do véu da elegância. Quis fugir do trivial, do bate-boca pelo jornal. Quis evitar a linguagem do povo, estilo “quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Mas, os vocábulos catados no dicionário falharam, na hora de combinar erudição com clareza.

 

quarta-feira, 11 de maio de 2022

 

O ADVOGADO DO SUPREMO

Em duas semanas consecutivas, o Estadão usou seu editorial para defender o STF. Textos jornalísticos, movidos a frenesi pela inglória tarefa de defender o indefensável, atraem não menos frenéticas indagações: quem está precisando de quem? O Estadão precisa do Supremo e nele se agarra para não ser enforcado? Ou o Supremo, vendo que está perdendo a confiança em suas eructações de erudição e seu poder de prender,  se sentindo apequenado, se vale do jornal para defender a moral da pensão?

Na semana retrasada o jornal disse que “cumprindo suas funções constitucionais, o STF julgou uma ação penal proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), que, em função do cargo tem foro privilegiado”.

No mesmo texto, porém, a dialética do editorial mudou de curso, deixando a Constituição para falar em confusão: “mas Jair Bolsonaro viu, no caso, uma oportunidade para criar confusão”.

 O STF teria cumprido “suas funções constitucionais”, ao julgar o deputado Daniel Silveira. Já Bolsonaro, ao conceder indulto para o mencionado réu,  se serviu do caso “para criar confusão”. Supostamente, sem cumprir suas “funções constitucionais”.

Essa abissal diferença, encontrada pelo Estadão, entre as atitudes do Presidente e a do Supremo Tribunal Federal, dá pano para manga, a partir de uma pergunta: há dispositivos constitucionais que só se prestam para provocar confusão?

Qualquer analfabeto funcional que der com os olhos na Constituição, lá encontrará, no inciso XII, como decorrência do disposto no respectivo  artigo 84, os seguintes dizeres: “compete privativamente ao Presidente da República conceder indulto e comutar penas...”

Ora, se, ao conceder o indulto para o deputado Daniel Silveira, o Presidente da República “não cumpriu suas funções constitucionais”, mas só criou confusão, donde lhe adveio a inspiração dessa desfeita para com o Supremo Tribunal Federal?

Em editorial da semana passada, a lengalenga continuou nesse mesmo tom de discurso com premissas falsas. Diz o jornal: “a Constituição, em seu artigo 102, delega sua guarda ao Supremo. Do ponto de vista prático, “guardar” a Constituição significa interpretar o seu texto e ter a palavra final diante de conflitos em torno de nosso pacto social. Quando o Supremo é desqualificado como última instância com poder para dirimir esses conflitos e pacificar a sociedade, rui a própria ideia da Justiça como um avanço civilizatório”.

Aviso aos redatores do Estadão:  o sinônimo não se presta para visões distintas em teoria e prática. “Guardar” nunca foi sinônimo de “interpretar”. E no caso do deputado não se tratava de “conflitos em torno de nosso pacto social”. A denúncia teve como causa o comportamento pessoal do réu, com insultos e ameaças a ministros, além de outras patacoadas. Nada a ver com o “nosso pacto social”.

Nem se tratava, portanto,  de “interpretar” texto constitucional. Bastava conhecer e respeitar escrupulosamente o Código de Processo Penal.

A “ideia da Justiça” ruiu, sim, mas minada por estranho procedimento, desencadeado pelo próprio tribunal julgador, no qual se aninharam duas inextricáveis circunstâncias: o ego ferido dos ministros e a questão por eles examinada.