sexta-feira, 26 de junho de 2020


DO DEFICIENTE SABER JURÍDICO E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS
João Eichbaum

Leia bem o que está escrito no art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal: “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

Leu? Vamos então dissecá-lo. Primeiro, do ponto de vista do vernáculo. Infração penal é o ato que atrai punição prevista no Código Penal e nas leis avulsas que contemplam matérial criminal. Nesse ato somente se envolve a pessoa ou as pessoas que o praticam, ou seja, quem comete o delito. Já ocorrência é outra coisa. Ocorrência penal é um fato do qual fazem parte o autor da infração e sua vítima.

Então, o presidente só poderá instaurar inquérito, em caso de infração penal ocorrida “na sede ou dependência do Tribunal”, cometida por “autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”. Se houver “ocorrência penal” de que seja vítima “pessoa sujeita” à jurisdição da Corte, só resta uma providência: noticiar o fato à autoridade competente. Viu que diferença faz, no Direito Penal, o conhecimento do vernáculo?

Mas, tem mais. O delito deve ser praticado na “sede ou dependência do Tribunal”. Assim, se alguém, de dentro de sua casa, no computador, ou na rua em frente ao Tribunal, ofender algum ministro, ou ameaçá-lo com bofetadas, não poderá ser submetido ao inquérito previsto no art. 43, por duas razões. A primeira delas: como autor do delito, não está submetido à jurisdição do Tribunal. A segunda: sede ou dependência é substantivo concreto. Não pode ser substituído por uma ideia, que é substantivo abstrato. Ah, e aqui uma coisa muito importante. Quando se trata de matéria penal, o único modo de interpretação permitido é a interpretação literal. Qualquer estudante do primeiro ano de Direito sabe disso: a analogia não é permitida como modo de interpretação.

Não sabe o que é analogia? Analogia é o mesmo que semelhança. E interpretação por analogia é um faz de conta. Assim: faz de conta que a rua, ou a casa de quem ofendeu e ameaçou ministros do STF, seja a “sede ou dependência do Tribunal”. Pois um dos princípios que regulam o Direito Penal em todo mundo é esse: só vale o que está escrito, e não o que o intérprete acha que está escrito.

Bom, se você não souber distinguir a diferença entre os substantivos “infração” e “ocorrência”, nem entendeu nada do que foi dito aí acima, não faça concurso para juiz:  será reprovado. Mas, em compensação, você terá chances melhores. Se tiver um padrinho político, seus deficientes saberes jurídicos e seu analfabetismo funcional poderão ser aproveitados nos mais altos cargos da República.

Aí você vai se achar a quintessência do ótimo: um deus, um intocável, com cuja presença o mundo se sente honrado. Você vai se considerar acima de tudo e de todos, com direito a pajens que lhe ajudem a ajeitar na cadeira a abundância de suas partes traseiras, etc, etc...

quinta-feira, 18 de junho de 2020


O INQUÉRITO ILEGAL DO STF
João Eichbaum

A atividade do médico pressupõe conhecimento de uma das áreas mais complicadas: a anatomia do ser humano. A do engenheiro, o domínio da intrincadíssima matemática. Mas, para ser bacharel, mestre, doutor em direito, juiz, desembargador e ministro de tribunais, basta conhecer a linguagem. Basta saber ler e escrever.

Entretanto, por incrível que pareça, há gente que, sem ter o pleno domínio desse instrumento, chega aos píncaros da glória com o diploma de bacharel ou doutor na mão, só porque sabe pronunciar palavras, ou seja, só porque sabe falar.

Está assim redigido o art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal: “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.

Baseado nesse artigo, Dias Toffoli instaurou inquérito para apurar “fake news”, ofensas ao STF, calúnias e  ameaças contra ministros e seus  familiares.

Quem sabe ler, não terá dificuldade em interpretar a expressão do artigo 43: “se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”. A conjunção “ou” tem dois sentidos. Um, de alternância, outro de exclusão. No caso, só pode ser de alternância. E isso, em outras palavras, quer dizer o seguinte: ocorrendo infração penal que atraia, para julgamento, a jurisdição do STF, o presidente da corte instaurará inquérito.

O vocábulo “autoridade” é uma excrescência que beira o absurdo. É como se “autoridade” não fosse uma pessoa como qualquer outra. Então, se for suprimida a palavra “autoridade” não mudará o sentido do texto. Basta que qualquer pessoa sujeita à jurisdição do STF, autoridade ou não, esteja envolvida em infração penal ocorrida “na sede ou dependência” daquele tribunal, para permitir que o presidente instaure o inquérito.

E isso já basta para desnudar a inconstitucionalidade do famigerado artigo 43, por uma simples razão: ele afronta o “caput” do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”

Acontece que a competência para “apurar infrações penais” é atribuída, no § 4º do art. 144 da Constituição Federal, às polícias civis. E a única exceção prevista naquele dispositivo é a das infrações penais militares. Absurdo dos absurdos, infame heresia jurídica, seria admitir que o Regimento Interno do STF pudesse alterar a Constituição Federal, incluindo outra exceção nela não prevista.

Mas, não é só isso. Quem é que “se envolve” em “infração penal”? Ora, só quem dela participa como autor. Portanto, o autor de infração penal é que teria de ser “pessoa sujeita à jurisdição do Tribunal”.

O inquérito das “fake news”, presidido por Alexandre de Moraes persegue pessoas que “não estão sujeitas à jurisdição” do STF e, se praticaram alguma infração, não o fizeram “na sede ou dependência do Tribunal”.

O STF extraiu o Direito do seu avesso, e isso só tem uma explicação: o mal-estar causado pelos impropérios ao Tribunal é bem maior do que a capacidade de seus membros para interpretação de textos.


quinta-feira, 11 de junho de 2020


O ARTIGO 142 (II)
João Eichbaum

O finado Ulisses Guimarães e a sua turma escreveram, no artigo 142 da Constituição: “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Usada indevidamente para ligar a oração principal a uma oração explicativa, a conjunção aditiva “e” (“e destinam-se”) agride as vistas e os ouvidos de quem tem intimidade com a língua portuguesa.

Do Direito mal escrito não se pode extrair raciocínio depurado pela lógica. As impropriedades gramaticais tiram a clareza da expressão. E aí cada jurista toma o rumo que lhe convém, ou que calha no tamanho de sua cultura.

Em artigo publicado no jornal Valor, as jornalistas Isadora Peron e Luíza Martins transcrevem trechos de uma entrevista com Gilmar Mendes. Segundo elas “o ministro não vê como papel das Forças Armadas avaliar quando um Poder invade a competência do outro. Ele rebateu uma declaração recente do procurador-geral da República, Augusto Aras, que defendeu que o artigo 142 da Constituição prevê que, em caso de interferência, os militares devem garantir o “funcionamento dos Poderes constituídos”. E mais disse o loquaz Gilmar: “Acho que se instalou no país uma grande loucura, uma grande confusão. Recentemente eu disse que essa tese é uma tese de lunáticos. É uma viagem de lunáticos. O artigo 142 tem uma discussão muito importante que é a missão das Forças Armadas para proteger poderes constitucionais e assegurar a lei e a ordem a pedido de um dos Poderes, mas é só isso”.

O que Gilmar Mendes não disse, mas deveria dizer, se conhece a fundo o Direito Constitucional, é que o artigo 142 não é autoexecutável. Ele precisa de uma lei que o  torne exequível, se e quando necessário for. E aí  se apresenta com tal finalidade a Lei Complementar nº 97.

No artigo 15 ela estabelece: “o emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República...”

E no §2º: “ a atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal”.

Lógico, sendo o Presidente da República a “autoridade suprema” das Forças Armadas, compete-lhe decidir sobre a atuação delas. Portanto, para  a garantir o exercício constitucional do Poder Executivo, que está sendo solapado acintosamente por decisões do Judiciário, cabe ao Presidente convocar seus comandados. Basta uma voz de comando máscula, intimorata, para mostrar que nos poderes constitucionais não há dança de cadeiras.

quinta-feira, 4 de junho de 2020


NÃO É BEM ASSIM
João Eichbaum

Esse tal de Covid 19, mais conhecido pelo apelido de coronavirus, tem deixado muita gente com cabeça de lelé de hospício. Os alcaides, que não aguentam meia sindicância por misturar seus dinheiros com os da prefeitura, querem voltar ao tempo em que alcaide era recheado de poder.

Vários deles pariram um monte de regras, enquadrando os contribuintes em parágrafos de decretos e portarias, ameaçando com multas: não pode isso, não pode aquilo, é proibido isso, é proibido aquilo. Como se não bastasse a pandemia, a vida está ficando cada vez pior, com os eles querendo meter a mão no bolso dos cidadãos.

Sem a menor consideração por Santo Arnulfo e seus fiéis devotos, aqueles que não dispensam um traguinho no fim do expediente, antes de irem para a casa aturar a patroa, alcaides há que mandaram fechar os bares! Logo os bares, onde os bebuns choram as mágoas, resolvem os problemas dos seus times e os da pátria, esquecendo os próprios.

Pior. Proibiram as peladas nos fins de semana, a única escapadinha possível para os maridos comprometidos e fiéis, aquela coisa gostosa de correr atrás da bola, dar e levar canelada, festejar o gol de letra, que nenhum profissional consegue fazer... Depois, os proveitos melhores do dia: a cerveja, o churrasco, uns derramando nos ouvidos dos outros as bravuras com bola, essa jogada, aquela jogada, fulano não joga porra nenhuma, et  cetera, et cetera.

Não bastasse isso, foram mais longe os alcaides. Expediram uma ordem que, pegando de chanfrada,  evita os pecados contra o nono mandamento. Para quem não se lembra, ou nunca ouviu falar, é aquele de não desejar a mulher do próximo. Pois os alcaides conseguiram o que Deus não conseguiu. Eles mandaram fechar os motéis, gente! Logo os motéis!

Então, olha o que aconteceu: todo o macho da espécie humana virou santo. Todos os machos passaram a ser fiéis esposos, dedicados namorados e namoridos, senhores de uma fidelidade de causar inveja a anjos, querubins e serafins.

Mas,  não é por aí, não. A sociedade, os munícipes, os contribuintes têm direitos maiores que o poder dos alcaides. Não é por decreto que se pode obrigar alguém a andar mascarado. A Constituição Federal, no inc. II do artigo 5º, reza com todas as letras: “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”.

As leis municipais, oriundas da Lei Orgânica, devem obediência à Constituição Federal, que preserva direitos fundamentais, como a intimidade e  a vida privada. Para os governos municipais, a Constituição reserva tão somente deveres e atribuições. E o alcaide não é legislador. O órgão legislativo é a Câmara de Vereadores. Dali é que saem as leis.

Decreto só foi lei no tempo do Getúlio. Hoje, para valer, precisa estar atrelado a uma lei. Já pensou, a prefeitura mandando em você, impedindo que você tome seus tragos, vá bater uma bola, ou dê uma esticadinha até o motel para variar o cardápio da quarentena?