quarta-feira, 17 de agosto de 2022

 

O DESCONCERTO

Aconteceu o seguinte, segundo noticia o jornal Zero Hora: um cidadão,  acompanhado de sua mulher, procurou certa clínica e agendou procedimento de vasectomia. No dia marcado para a operação, o paciente não compareceu, nem deu explicações. Cobrado pela ausência, o casal informou que havia desistido do procedimento, porque o virtual paciente “não se sentiria confortável com a cirurgia”. Diante da explicação, o médico teria enviado mensagem, na qual, junto com a foto do casal, estava escrito: “ Até tento mudar meu pensamento de preconceito, mas vocês não deixam! Taí a prova”.

A clínica, onde o médico trabalhava, foi condenada a pagar  R$ 30.000,00  a título de indenização.

Aparentemente, tudo normal. Mas, não é bem assim. Para quem conhece o Direito, não raros são os casos de desconcerto nessa ópera em que a Justiça colhe apupos da plateia, porque desafina, erra a letra e improvisa, ao invés de cantar segundo o libreto que lhe foi confiado pela lei.

Se a clínica foi condenada a pagar indenização, é porque se trata de processo cível, não criminal, por dano moral, com base no princípio da responsabilidade objetiva. Esse princípio, acolhido pelo artigo 932 do Código Civil brasileiro, impõe, a quem não tem culpa, a obrigação de reparar danos causados por outrem. Exemplo: o empregador responde pelos danos praticados por seus empregados.

Mas, desgarrada das rédeas da “serenidade” e da “urbanidade”, impostas pelo art. 35 da Loman, a sentença de primeiro grau se despe da roupagem de juízo de valor, quando escorrega para adjetivação impertinente. É o que transparece desse excerto publicado pelo jornal ZH: “essa frase, acompanhada de fotos do casal e gargalhadas do tipo hahaha não teve outro objetivo a não ser diminuir os autores em função da cor de sua pele, revelando-se oportunista e covarde a tese da clínica...”

No tribunal, em jurisdição estritamente cível, o desembargador proferiu juízo essencialmente criminal: “Não há dúvidas e nem qualquer controvérsia acerca da injúria racial perpetrada pelo médico”.

Consoante o art. 186 do Código Civil,  “aquele que, por ação ou omissão voluntária, ou imprudência violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. A expressão “violar direito e causar dano” comporta duas orações, portanto duas ações, porque contém dois verbos: “violar” e “causar”. Sua subsunção é impedida pela função copulativa da  conjunção coordenativa “e”.

Sendo ofensa personalíssima, os danos devem ser demonstrados. Tipo assim: esmagado pela ofensa, surtou, beijou a sogra na boca, comeu a ração do cachorro. A jurisprudência que vê danos “in re ipsa” desconhece latim e português. A ação é designada pelo verbo, não pela “coisa”. A ofensa gera ação penal; os danos, reparação. E se sobrevier sentença criminal transitada em julgado, negando  inexistência de crime, com que cara fica a Justiça? Sábia, a lei se socorre do “e” com função copulativa, para evitar tais disparates.

Todo jurista deveria dominar seu único instrumento de trabalho, o vernáculo. Mal trabalhada, a linguagem compromete a justa aplicação do Direito,  expondo a Justiça como chamariz de repúdios.

 

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