O DESCONCERTO
Aconteceu o seguinte, segundo noticia o jornal Zero Hora: um
cidadão, acompanhado de sua mulher,
procurou certa clínica e agendou procedimento de vasectomia. No dia marcado
para a operação, o paciente não compareceu, nem deu explicações. Cobrado pela
ausência, o casal informou que havia desistido do procedimento, porque o
virtual paciente “não se sentiria confortável com a cirurgia”. Diante da
explicação, o médico teria enviado mensagem, na qual, junto com a foto do
casal, estava escrito: “ Até tento mudar meu pensamento de preconceito, mas
vocês não deixam! Taí a prova”.
A clínica, onde o médico trabalhava, foi condenada a pagar R$ 30.000,00
a título de indenização.
Aparentemente, tudo normal. Mas, não é bem assim. Para quem conhece o
Direito, não raros são os casos de desconcerto nessa ópera em que a Justiça
colhe apupos da plateia, porque desafina, erra a letra e improvisa, ao invés de
cantar segundo o libreto que lhe foi confiado pela lei.
Se a clínica foi condenada a pagar indenização, é porque se trata de
processo cível, não criminal, por dano moral, com base no princípio da
responsabilidade objetiva. Esse princípio, acolhido pelo artigo 932 do Código
Civil brasileiro, impõe, a quem não tem culpa, a obrigação de reparar danos
causados por outrem. Exemplo: o empregador responde pelos danos praticados por
seus empregados.
Mas, desgarrada das rédeas da “serenidade” e da “urbanidade”, impostas
pelo art. 35 da Loman, a sentença de primeiro grau se despe da roupagem de
juízo de valor, quando escorrega para adjetivação impertinente. É o que
transparece desse excerto publicado pelo jornal ZH: “essa frase, acompanhada de
fotos do casal e gargalhadas do tipo hahaha não teve outro objetivo a não ser
diminuir os autores em função da cor de sua pele, revelando-se oportunista e
covarde a tese da clínica...”
No tribunal, em jurisdição estritamente cível, o desembargador proferiu
juízo essencialmente criminal: “Não há dúvidas e nem qualquer controvérsia
acerca da injúria racial perpetrada pelo médico”.
Consoante o art. 186 do Código Civil,
“aquele que, por ação ou omissão voluntária, ou imprudência violar
direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito”. A expressão “violar direito e causar dano” comporta duas orações,
portanto duas ações, porque contém dois verbos: “violar” e “causar”. Sua
subsunção é impedida pela função copulativa da
conjunção coordenativa “e”.
Sendo ofensa personalíssima, os danos devem ser demonstrados. Tipo
assim: esmagado pela ofensa, surtou, beijou a sogra na boca, comeu a ração do
cachorro. A jurisprudência que vê danos “in re ipsa” desconhece latim e
português. A ação é designada pelo verbo, não pela “coisa”. A ofensa gera ação
penal; os danos, reparação. E se sobrevier sentença criminal transitada em
julgado, negando inexistência de crime,
com que cara fica a Justiça? Sábia, a lei se socorre do “e” com função
copulativa, para evitar tais disparates.
Todo jurista deveria dominar seu único instrumento de trabalho, o
vernáculo. Mal trabalhada, a linguagem compromete a justa aplicação do
Direito, expondo a Justiça como chamariz
de repúdios.
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