A NOVELA DA KISS
A dor, a tristeza, a consternação e o desconsolo infinito, que são
causados pela perda de entes queridos, são reações próprias da nossa natureza
de animal racional. Ninguém se conforma com a perda de quem ama.
Essas forças dominadoras que subjugam a quem sofre a perda, porém,
ninguém as divide com outrem, porque elas têm um enorme poder sobre os
pensamentos e as decisões, e são capazes de quebrar até o elo da convivência
social. A amargura é tanta e tão desoladora, que desata, pelo menos nos primeiros momentos, a
sensação de que o mundo acabou.
Mas, as desgraças provocadas pelo incêndio da Boate Kiss em Santa Maria
romperam as barreiras desse círculo de intimidade da dor. O sensacionalismo
absorveu as dores individuais, criou uma dor coletiva, e invadiu as
instituições, levando muitos de seus agentes a mergulharem de corpo e alma na
causa, como se fosse ela a única a exigir o exercício das funções dos cargos
públicos. O incêndio provocado pelo fogo se transformou num fogaréu de emoções
sociais.
Há dez anos se arrasta um processo judicial, ao som de clamores que soam
como vingança e movido a direitos morais. E na justiça os réus foram
transformados em petecas: ora estão presos, ora estão soltos. O que era para
ser uma dor para sempre lamentada, está servindo como cena em palcos
judiciários, provocando apupos e aplausos.
No ato mais recente dessa cena, aparecem como personagens o Ministério
Público gaúcho e o ministro do STF Luiz Fux. Por decisão de uma Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram soltos os réus que o Fux
mandara prender. Então, os autores da ação penal correram a reclamar para o Fux
que a decisão dele não está sendo respeitada. Para isso, evocaram as palavras
do próprio Fux. Segundo dizeres do referido togado, nenhuma decisão do tribunal
gaúcho “teria o condão de sustar, direta ou indiretamente, os efeitos da
decisão suspensiva prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de
inadmissível inversão de instâncias”. E isso porque “a autoridade desse
pronunciamento apenas pode ser alterada ou revogada no âmbito do próprio
Supremo Tribunal Federal”.
Em que lei Luiz Fux foi buscar força para trancar o curso do “devido
processo legal”, suspendendo o exercício da jurisdição do TJRGS, ele não disse.
Mas, isso é o que menos conta, quando se vê o Direito se espatifar nos baixios
rochosos das “decisões monocráticas”, que emprestam “autoridade” para
“pronunciamentos”. Isso ocorre quando a justiça abandona a escala de valores,
para tomar a forma humana.
Mas, enfim: até um concurso de beleza de egos parece fazer parte do
espetáculo em que se transformou aquela deplorável mortandade de seres humanos
na Boate Kiss.
Enquanto isso, presos em trêmula e revoltada expectativa diante das
cenas judiciárias, que giram em vaivéns de roda de sorte, os que perderam entes
queridos na catástrofe buscam uma recompensa para a ferida, seja de que
natureza for, um consolo qualquer, que substitua a dor e a saudade.
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