terça-feira, 9 de agosto de 2022

 

A NOVELA DA KISS

A dor, a tristeza, a consternação e o desconsolo infinito, que são causados pela perda de entes queridos, são reações próprias da nossa natureza de animal racional. Ninguém se conforma com a perda de quem ama.

Essas forças dominadoras que subjugam a quem sofre a perda, porém, ninguém as divide com outrem, porque elas têm um enorme poder sobre os pensamentos e as decisões, e são capazes de quebrar até o elo da convivência social. A amargura é tanta e tão desoladora, que  desata, pelo menos nos primeiros momentos, a sensação de que o mundo acabou.

Mas, as desgraças provocadas pelo incêndio da Boate Kiss em Santa Maria romperam as barreiras desse círculo de intimidade da dor. O sensacionalismo absorveu as dores individuais, criou uma dor coletiva, e invadiu as instituições, levando muitos de seus agentes a mergulharem de corpo e alma na causa, como se fosse ela a única a exigir o exercício das funções dos cargos públicos. O incêndio provocado pelo fogo se transformou num fogaréu de emoções sociais.

Há dez anos se arrasta um processo judicial, ao som de clamores que soam como vingança e movido a direitos morais. E na justiça os réus foram transformados em petecas: ora estão presos, ora estão soltos. O que era para ser uma dor para sempre lamentada, está servindo como cena em palcos judiciários, provocando apupos e aplausos.

No ato mais recente dessa cena, aparecem como personagens o Ministério Público gaúcho e o ministro do STF Luiz Fux. Por decisão de uma Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram soltos os réus que o Fux mandara prender. Então, os autores da ação penal correram a reclamar para o Fux que a decisão dele não está sendo respeitada. Para isso, evocaram as palavras do próprio Fux. Segundo dizeres do referido togado, nenhuma decisão do tribunal gaúcho “teria o condão de sustar, direta ou indiretamente, os efeitos da decisão suspensiva prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível inversão de instâncias”. E isso porque “a autoridade desse pronunciamento apenas pode ser alterada ou revogada no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal”.

Em que lei Luiz Fux foi buscar força para trancar o curso do “devido processo legal”, suspendendo o exercício da jurisdição do TJRGS, ele não disse. Mas, isso é o que menos conta, quando se vê o Direito se espatifar nos baixios rochosos das “decisões monocráticas”, que emprestam “autoridade” para “pronunciamentos”. Isso ocorre quando a justiça abandona a escala de valores, para tomar a forma humana.

Mas, enfim: até um concurso de beleza de egos parece fazer parte do espetáculo em que se transformou aquela deplorável mortandade de seres humanos na Boate Kiss.

Enquanto isso, presos em trêmula e revoltada expectativa diante das cenas judiciárias, que giram em vaivéns de roda de sorte, os que perderam entes queridos na catástrofe buscam uma recompensa para a ferida, seja de que natureza for, um consolo qualquer, que substitua a dor e a saudade.

                         

 

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