segunda-feira, 5 de setembro de 2022

 

ELES DEVIAM SER  A LEI

Aturdido por inconsolável sentimento de solidão, o homem vagava pelas ruas vazias de Roma, dominadas pelo silêncio sinistro da alta madrugada. Sentia-se como um verme perdido, desolado, em meio àquela grandeza arquitetônica que varara séculos, dando testemunho de talentos humanos que jamais encontraram quem os superasse. Michelangelo, Bernini, e outros tantos viviam mais do que suas obras majestosas, porque elas não falavam, e outra coisa não revelavam senão o insuperável talento de quem as criou. Então, não adiantava colocar diante  daquelas esculturas magníficas, ainda que mal  debruadas por luzes mortiças, um olhar radiante de admiração, porque elas, com sua magnificiência, o diminuiriam mais – pensava o perdido viandante.

Ele precisava conversar com alguém. Ele sentia necessidade de ouvir uma voz humana, tinha necessidade de encontrar alguém que o ouvisse, que escutasse, paciente e misericordioso, seus desconsolos e mágoas. Mas, o silêncio da madrugada de Roma era pesado, amargurado, torturante.

De repente, ouviu vozes. Seu espírito se encheu de esperança, a esperança de encontrar um semelhante disposto a lhe dar ouvidos e lhe oferecer, em troca, o som de uma voz humana. Era um grupo de carabineiros, que tagarelavam menos do que mexiam os braços, com aquele movimento de expressão, que é um talento de berço dos italianos. O viandante, num primeiro momento, se sentiu impelido a ir ao encontro deles, para fugir da própria solidão e encontrar um abrigo, onde pudesse se livrar dela. Finalmente havia encontrado criaturas humanas, naquela cidade reduzida a um estado cataléptico pelo deserto negro da noite. Mas, logo travou suas esperanças. “I carabinieri non sono uomini – pensou – sono la legge”.

Esse conto, escrito com outras palavras, há mais de três quartos de século por um desconhecido escritor italiano, soa, nos dias de hoje, como as badaladas de um sino percucientemente pedagógico: “os carabineiros não são homens, eles são a lei”. Isso quer dizer: eles não falam por eles, porque mais não representam do que a voz da lei. E a lei não tem sentimentos, nem ressentimentos. A lei não é vingativa, não é sujeita a maus humores, a descargas de raiva. Ela é inflexível, porque não muda ao sabor das circunstâncias. A lei não tem amigos, nem inimigos, não tem capangas, nem guarda-costas. E não está serviço de homens, porque ela representa o Estado de Direito.

“Non sono uomini, sono la legge”. Não só os carabineiros, ou seja, não só policiais civis ou militares. Juízes, desembargadores, ministros de tribunais superiores deviam ser a lei. Isso é, deviam se portar como a lei, com inflexibilidade, mas sem arrogância, com severidade, mas sem truculência, sem amor e sem ódio. Deviam só agir como instrumentos da lei, ao invés de a usarem como instrumento de suas frustrações, ao invés de se servirem dela como desaguadouro de suas mágoas, de seus insucessos pessoais, da própria incapacidade de encarnarem o poder legal, sem dele extrair sortimentos de histeria, na contramão da lei, que respeita direitos humanos.

E tudo isso, tanto em Brasília, como em São Gabriel.

 

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