ELES DEVIAM SER A LEI
Aturdido por inconsolável sentimento de solidão, o
homem vagava pelas ruas vazias de Roma, dominadas pelo silêncio sinistro da
alta madrugada. Sentia-se como um verme perdido, desolado, em meio àquela
grandeza arquitetônica que varara séculos, dando testemunho de talentos humanos
que jamais encontraram quem os superasse. Michelangelo, Bernini, e outros
tantos viviam mais do que suas obras majestosas, porque elas não falavam, e
outra coisa não revelavam senão o insuperável talento de quem as criou. Então,
não adiantava colocar diante daquelas
esculturas magníficas, ainda que mal debruadas
por luzes mortiças, um olhar radiante de admiração, porque elas, com sua
magnificiência, o diminuiriam mais – pensava o perdido viandante.
Ele precisava conversar com alguém. Ele sentia
necessidade de ouvir uma voz humana, tinha necessidade de encontrar alguém que
o ouvisse, que escutasse, paciente e misericordioso, seus desconsolos e mágoas.
Mas, o silêncio da madrugada de Roma era pesado, amargurado, torturante.
De repente, ouviu vozes. Seu espírito se encheu de
esperança, a esperança de encontrar um semelhante disposto a lhe dar ouvidos e
lhe oferecer, em troca, o som de uma voz humana. Era um grupo de carabineiros,
que tagarelavam menos do que mexiam os braços, com aquele movimento de
expressão, que é um talento de berço dos italianos. O viandante, num primeiro
momento, se sentiu impelido a ir ao encontro deles, para fugir da própria
solidão e encontrar um abrigo, onde pudesse se livrar dela. Finalmente havia
encontrado criaturas humanas, naquela cidade reduzida a um estado cataléptico
pelo deserto negro da noite. Mas, logo travou suas esperanças. “I carabinieri
non sono uomini – pensou – sono la legge”.
Esse conto, escrito com outras palavras, há mais de
três quartos de século por um desconhecido escritor italiano, soa, nos dias de
hoje, como as badaladas de um sino percucientemente pedagógico: “os
carabineiros não são homens, eles são a lei”. Isso quer dizer: eles não falam por
eles, porque mais não representam do que a voz da lei. E a lei não tem
sentimentos, nem ressentimentos. A lei não é vingativa, não é sujeita a maus
humores, a descargas de raiva. Ela é inflexível, porque não muda ao sabor das
circunstâncias. A lei não tem amigos, nem inimigos, não tem capangas, nem
guarda-costas. E não está serviço de homens, porque ela representa o Estado de
Direito.
“Non sono uomini, sono la legge”. Não só os
carabineiros, ou seja, não só policiais civis ou militares. Juízes, desembargadores,
ministros de tribunais superiores deviam ser a lei. Isso é, deviam se portar
como a lei, com inflexibilidade, mas sem arrogância, com severidade, mas sem
truculência, sem amor e sem ódio. Deviam só agir como instrumentos da lei, ao
invés de a usarem como instrumento de suas frustrações, ao invés de se servirem
dela como desaguadouro de suas mágoas, de seus insucessos pessoais, da própria
incapacidade de encarnarem o poder legal, sem dele extrair sortimentos de
histeria, na contramão da lei, que respeita direitos humanos.
E tudo isso, tanto em Brasília, como em São Gabriel.
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