terça-feira, 28 de novembro de 2023

 

UM CADÁVER NA BALANÇA DA JUSTIÇA

 

Cleriston Pereira da Cunha morreu. Ele estava preso na Penitenciária de Papuda por conta de um inquérito judicial, transformado em ação penal pelos próprios ministros que o instauraram. Assim: juízes instauram o inquérito, remetem-no para a Procuradoria Geral da República, recebem a denúncia e julgam os réus.

 

Por conta desse inquérito foram presas mil pessoas, acusadas de fazerem parte “de um grupo que invadiu o Congresso durante os ataques, quebrando vidraças, espelhos, móveis, lixeiras, computadores, obras de arte e câmeras de seguranças”.

 

Evidentemente, uma única pessoa não poderia fazer todo esse estrago de uma vez só, em pouco tempo, porque tem apenas dois braços e não tentáculos de polvo. Para introduzir essa barbaridade no mundo do Direito, o inquérito alugou uma teoria de que não se ocupa o Código Penal Brasileiro, porque não a permite a Constituição: a teoria da culpa coletiva.

 

A individualização da pena é um princípio constitucional. Por força desse princípio, a menos que seja o mandante, ninguém pode ser condenado, sem que a denúncia se ocupe de circunstâncias que permitam identificar a atitude individual de cada um dos participantes de atos criminosos. No caso acima narrado, se trata, evidentemente, de múltiplos atos que geraram danos materiais no patrimônio público, e nada mais.

 

Ora, a denúncia requer exatidão e não generalidades, exatamente porque não há outra forma que leve o procedimento judicial a desembocar na individualização da pena. Em razão disso, o artigo 41 do Código de Processo Penal determina que a denúncia especifique o fato delituoso, com todas as suas circunstâncias. Não é por melhor razão que, com relação à individualização da pena, uma evidência, escorraçando qualquer dúvida, deflui do artigo 29 e seus §§1º e 2º do Código Penal: “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas cominadas, na medida de sua culpabilidade; se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço; se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até a metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.

 

Por aí se vê: a face revelada desse procedimento a que se entregou o Supremo é de algo que está muito longe de ser reconhecido como o “devido processo legal”, consagrado na Constituição Federal como um dos direitos fundamentais dos seres humanos.

 

Esse é exatamente o lado forte da “teoria da culpa coletiva”: a preponderância do Poder do Estado sobre os direitos individuais, a anulação das necessidades individuais diante dos objetivos do Estado. Tudo na contramão da Constituição Federal brasileira, em cujo artigo 5º estão consagrados os direitos do indivíduo contra a prepotência do Estado, a começar com o direito à vida. E não há direito à vida, sem direito à saúde.

 

Cleriston Pereira da Cunha, clamou por esse direito, secundado pela Procuradoria Geral da República, titular da ação penal. Mas, no lôbrego espaço do Poder Judiciário, seu clamor foi tragado pelo silêncio.

 

 

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

 

A POLÍCIA, O PCC E O CV

 

“A tática é uma velha conhecida nos meios policiais: o bandido entregar o que a polícia deseja para tentar evitar uma reação que atrapalhe em demasia os negócios das organizações criminosas”. Assim, Marcelo Godoy iniciou sua crônica no Estadão. Assim, sem vírgulas e com o verbo “entregar” no infinitivo. Mas, mais importante do que esse deslize, é a revelação por ele feita: o exército e a polícia federal conseguiram recuperar as armas furtadas do Arsenal de Guerra, em Barueri, porque foram enviados recados aos bandidos, ameaçando tirar-lhes o sossego.

O colunista então deu a conhecer, para todo o Brasil, essa “tática”, que é “velha conhecida nos meios policiais”.

Daí se tira a seguinte conclusão: a polícia tem condições de entrar em contato com a bandidagem que domina o país, para trocarem figurinhas a serviço de mútuos interesses. Depois dessa conclusão, evidentemente, vêm as perguntas que todos os brasileiros gostariam de fazer: se a polícia tem esse poder, se tem hegemonia sobre os criminosos, se sabe como arrancar deles o que ela quer, por que o crime domina o país, exibindo maior organização do que a do Estado?  Se ela e o Exército tiveram condições de dominar o crime, por que a população fica entregue ao deus-dará? Se basta uma ameaça “aos negócios das organizações criminosas”, por qual razão o povo, que sustenta o Exército e a Polícia, não é contemplado com um mínimo de segurança? Por que será que o alto comando do crime está instalado no sistema carcerário, donde expede ordens para as facções a ele subordinadas, pinta, borda, organiza rebeliões, elimina inimigos, sem que até hoje tenha sido molestado? Por que, volta e meia, em audiências de custódia, ou por ordem escrita de juízes, desembargadores ou ministros, a grandes figurões do tráfico é concedida a regalia da liberdade? Por que cargas d’água o senhor Fachin proibiu, durante o governo Bolsonaro, atraques policiais nas favelas, estabelecendo espaços onde a polícia estava proibida de operar? Não vale mais esse salvo-conduto? Ou alguém acredita que as organizações criminosas ignoram esse selo de impunidade?

Lembrem-se: quem assaltou bancos, sequestrou embaixadores e foi preso no regime militar, desfruta hoje das benesses e regalias do Poder. Da Lava Jato, que condenou corruptos e conseguiu devolução do dinheiro mal havido, mas agora está desmoralizada, só ficou como boa lembrança o japonês da Federal. O Mensalão prendeu quem? Além do denunciante, Roberto Jefferson, só peixes pequenos cumpriram pena.

Para a GLO do Lula o perigo está nos portos e aeroportos, onde foi colocado o Exército: longe dos quartéis generais do tráfico.

Agora estoura a notícia de que a Primeira Dama do Comando Vermelho e Rainha do Tráfico Amazonense foi recebida no Ministério da Justiça do Lula. Fora dos autos, Gilmar Mendes já sentenciou: “o crime organizado encontrou meios e formas de se situar na sociedade brasileira”. Ora, quem molda o Estado é a sociedade. Então, a falta de segurança é fruto do ventre da democracia, emprenhada por múltiplos incestos.

 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

 

         A RELIGIOSIDADE DO HOMEM

 

A certeza de que um dia perderemos o papel de personagens nesse enredo de lágrimas e prazeres, que é a vida, levou o homem de antanho a buscar uma alternativa. Diante dos fenômenos violentos da natureza, como raios e trovões, para os quais não encontrava explicação, sua imaginação o levou a criar divindades, atribuindo-lhes o poder de domínio sobre os colossais estrondos e assombrosos riscos ígneos no céu. Daí a imaginar que o firmamento servia como morada para esses deuses, foi um pulo. Esse homem, claro, não tinha consciência de sua constituição química, que não só o sujeitava a mutações, como lhe determinava prazo de validade. Mas ele possuía o instinto de sobrevivência, comum a todos os animais e nele avivado pela inteligência, que o levava a ter  um grande amor por si mesmo: o egoísmo. De modo que o instinto e o egoísmo não lhe permitiam aceitar a ideia de que tudo termina com a morte.

Do deus Javé, que se comprazia com o sacrifício cruento de inocentes pombinhas e cordeiros, aos deuses que celebravam os prazeres da vida, como Baco e Vênus, foi imensa a constelação de divindades criadas pelo homem, frutos de uma obsessão coletiva, ao longo de toda a história da humanidade.

A primeira narrativa, da qual brota essa obsessão, é a que relata a construção do Bezerro de Ouro, levada a efeito pelos judeus. Enfastiados com a liderança de Moisés, na jornada que os conduzia à “terra prometida”, eles resolveram criar um deus palpável como objeto de sua adoração.

Hoje o ouro é coisa rara, valiosíssima, muito cara para se tornar simples objeto de veneração, quando empregado em massa representativa de deuses ou seres assemelhados a divindades. Para isso servem a pedra, o cimento, a mão cinzeladora dos mestres ou a inteligência artificial. O Cristo Redentor do Rio de Janeiro e de Encantado arrastam multidões para lá. Espalhadas pelo mundo, as múltiplas denominações, imagens e estátuas de Maria, a quem os dogmas cristãos atribuem o privilégio de ter sido portadora do óvulo que deu vida a Jesus Cristo, disputam com Meca a estatística das atrações religiosas.

Agora está em moda o “turismo religioso”, que faz a alegria das Fazendas Municipais e das tesourarias de dioceses católicas.

Mas, a gente que olha essas coisas com olhos de simples narrador das peripécias do homem de hoje, não pode deixar de se entregar à compaixão por criaturas ingênuas, que servem como inocentes úteis a tais organizações públicas ou religiosas. Como aquela humilde criatura, de 73 anos que, entrevistada em Santa Maria sobre a festa da Medianeira, para cuja quermesse trabalha como cozinheira voluntária, disse: “a gente se doa de coração, vem para cá às seis da manhã e sai às quatro da tarde, mas não cansa, tudo por Nossa Senhora”.

Dona de um sentimento íntimo, que é a fé, do qual deve dar conta no confessionário, a respeitável idosa ignora que está servindo realmente a outros senhores, porque a “Nossa Senhora” não precisa disso.

 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

 

NINGUÉM É MELHOR DO QUE NINGUÉM

Dias atrás, em Jaboatão dos Guararapes, na grande Recife, foi encontrado morto, ferido na cabeça, a 300 metros de sua casa, um juiz de Direito. A polícia ficou diante de um enigma, não só com relação à autoria do fato, como quanto aos motivos que levaram à morte dessa pessoa. Nada seria descartado, segundo a delegada que preside as investigações. Isso quer dizer que a morte poderia ter ocorrido por questões pessoais, por engano, por encomenda, ou em razão do exercício profissional da vítima. De imediato, tratava-se de mistério, um labirinto de hipóteses, do tipo que serviria muito bem para os enredos de Agatha Christie, sem descartar a regra das investigações policiais francesas: “cherchez la femme”.

Mas, do fundo dessa nebulosidade, desse baralho de indagações, já se adiantaram algumas manifestações que fornecem assunto para crônicas nada policiais.

Em nota, disse o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “O uso da violência contra integrantes do sistema de Justiça é inadmissível. As instituições constituídas estão firmes e vigilantes em defesa do Estado Democrático de Direito e prontas para, dentro de suas esferas de atuação, apurar os responsáveis e aplicar as punições cabíveis aos envolvidos neste crime bárbaro”.

Só é “inadmissível” a violência praticada contra os integrantes do sistema de Justiça? Como assim? Só os juízes são providos de valores? A violência praticada contra o cidadão comum, aquele de cujo salário ou rendimento, é descolada a grana para pagar juízes, desembargadores e ministros de tribunais, é admissível? A violência praticada contra os pobres diabos que morrem, esperando por uma Justiça que não lhes faz justiça, é admissível?  Não são todos iguais perante a lei?

Ah, e aproveitando o infeliz ensejo, o Tribunal de Justiça dos gaúchos mostrou que não desafina no estribilho da cantilena “Estado Democrático de Direito”, regida pelo Supremo Tribunal Federal, em cujas encenações procuram fazer performances vários solistas de toga.

Então, as “instituições constituídas” só estão “firmes e vigilantes” na defesa desse “Estado Democrático de Direito”. Será em razão dessa limitada vigilância que, volta e meia, “integrantes do Sistema de Justiça” soltam bandidos, por sentirem pena deles, coitadinhos, na audiência de custódia? Ou será também por isso, por estarem só “firmes e vigilantes na defesa do Estado Democrático de Direito,” eles prendem inocentes, abdicando da aplicação do devido processo legal?

A pressa é inimiga da perfeição. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul devia partir desse axioma, para se pronunciar, seja sobre o que for. Prejulgamentos não sentam bem para juízes. As circunstâncias da morte do juiz de Direito ainda não tinham sido apuradas pela única “instituição constituída” competente, que é a polícia, quando saiu a nota. A nenhuma outra “instituição constituída” o bom senso permite opiniões apaixonadas, movidas a espírito de corpo. “Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença”. E a adjetivação, como “crime bárbaro”, só fica bem entre baforadas de cigarro e tinir de copos de chope, na mesa de um bar.