A RELIGIOSIDADE DO HOMEM
A certeza de que um dia perderemos o papel de
personagens nesse enredo de lágrimas e prazeres, que é a vida, levou o homem de
antanho a buscar uma alternativa. Diante dos fenômenos violentos da natureza,
como raios e trovões, para os quais não encontrava explicação, sua imaginação o
levou a criar divindades, atribuindo-lhes o poder de domínio sobre os colossais
estrondos e assombrosos riscos ígneos no céu. Daí a imaginar que o firmamento
servia como morada para esses deuses, foi um pulo. Esse homem, claro, não tinha
consciência de sua constituição química, que não só o sujeitava a mutações,
como lhe determinava prazo de validade. Mas ele possuía o instinto de
sobrevivência, comum a todos os animais e nele avivado pela inteligência, que o
levava a ter um grande amor por si
mesmo: o egoísmo. De modo que o instinto e o egoísmo não lhe permitiam aceitar
a ideia de que tudo termina com a morte.
Do deus Javé, que se comprazia com o sacrifício
cruento de inocentes pombinhas e cordeiros, aos deuses que celebravam os
prazeres da vida, como Baco e Vênus, foi imensa a constelação de divindades
criadas pelo homem, frutos de uma obsessão coletiva, ao longo de toda a
história da humanidade.
A primeira narrativa, da qual brota essa obsessão, é
a que relata a construção do Bezerro de Ouro, levada a efeito pelos judeus.
Enfastiados com a liderança de Moisés, na jornada que os conduzia à “terra
prometida”, eles resolveram criar um deus palpável como objeto de sua adoração.
Hoje o ouro é coisa rara, valiosíssima, muito cara
para se tornar simples objeto de veneração, quando empregado em massa
representativa de deuses ou seres assemelhados a divindades. Para isso servem a
pedra, o cimento, a mão cinzeladora dos mestres ou a inteligência artificial. O
Cristo Redentor do Rio de Janeiro e de Encantado arrastam multidões para lá.
Espalhadas pelo mundo, as múltiplas denominações, imagens e estátuas de Maria,
a quem os dogmas cristãos atribuem o privilégio de ter sido portadora do óvulo
que deu vida a Jesus Cristo, disputam com Meca a estatística das atrações
religiosas.
Agora está em moda o “turismo religioso”, que faz a
alegria das Fazendas Municipais e das tesourarias de dioceses católicas.
Mas, a gente que olha essas coisas com olhos de
simples narrador das peripécias do homem de hoje, não pode deixar de se
entregar à compaixão por criaturas ingênuas, que servem como inocentes úteis a
tais organizações públicas ou religiosas. Como aquela humilde criatura, de 73
anos que, entrevistada em Santa Maria sobre a festa da Medianeira, para cuja
quermesse trabalha como cozinheira voluntária, disse: “a gente se doa de
coração, vem para cá às seis da manhã e sai às quatro da tarde, mas não cansa,
tudo por Nossa Senhora”.
Dona de um sentimento íntimo, que é a fé, do qual
deve dar conta no confessionário, a respeitável idosa ignora que está servindo
realmente a outros senhores, porque a “Nossa Senhora” não precisa disso.
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