PALAVRAS FORA DE LUGAR
“A mentira espalhada pelo poderoso ecossistema digital
das plataformas é um desaforo tirânico contra a integridade das democracias. É
um instrumento de covardes e egoístas. Se não rompermos o cativeiro digital, chegará
o dia em que as próprias mentiras nos matarão”.
Não. Não é o que vocês estão pensando. Não se trata de
um poema de metáforas mórbidas, obra de um poeta sorumbático, abatido por
vertigem que o deixa de mal com o mundo. Não são exortações de algum tipo que se
alimenta de gafanhotos e mel silvestre, um novo João Batista, anunciando o fim
dos tempos. Nem são expressões de terror extraídas de alguma obra de reflexões
apocalípticas, da lavra de algum profeta. Não. Nada disso.
Por mais cândida que seja a interpretação do leitor,
jamais lhe ocorrerá tenham sido tais palavras caídas da boca de uma pessoa de
peso, colocada em posição preponderante nos píncaros do Judiciário brasileiro.
Pois quem excluiu tal hipótese, se enganou
redondamente. Essa diatribe partiu de ninguém menos do que de uma senhora chamada
Cármen Lúcia Antunes Rocha. Dona Cármen, professora de Direito Constitucional,
foi colocada no Supremo Tribunal Federal, por obra e graça do torneiro mecânico
por profissão e político por eleição Luiz Inácio Lula da Silva. Na semana
passada, a referida madame foi empossada, pela segunda vez, como presidente do
Tribunal Superior Eleitoral. O excerto que encabeça o presente texto, embora
nada tenha a ver com eleições, faz parte do seu discurso naquela solenidade.
Mas, não se pode ignorar o teor condenatório, encharcado de exaltação, que o
estigmatiza como uma sentença antecipada: “desaforo tirânico... instrumento de
covardes e egoístas”. Trata-se de um juízo de valor exarado em instância
desapropriada e sem a temperança que, mesmo fora da jurisdição, é exigida por
ordem da credibilidade do Poder Judiciário.
O alvo dessa contundência, ou seja, as rés, fora do processo,
do tempo e das circunstâncias que uma solenidade exige, são as chamadas
plataformas digitais. O tema que diz respeito a tais empresas está sujeito a
disputas judiciais. Dona Cármen Lúcia já antecipou o seu voto, salpicando-o com
adjetivos que ninguém gostaria de ouvir: “covardes, egoístas”...
Mas, além do teor do discurso, o que surpreende a
qualquer leitor com conhecimentos mínimos de Teoria do Estado, é a relação da “mentira”
com a “integridade das democracias”.
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