O POVO E O ESTADO
O Informe Especial da Zero Hora é um espaço que
funciona como caleidoscópio. Ali giram notícias, comentários, gratuitos encômios,
alguma cantilena poética ou filosófica, e até preleções sobre o comportamento
humano.
Na semana passada, a responsável pela referida página
se debruçou sobre procedimentos da plebe no curso da avassaladora enchente que
desgraçou o Rio Grande do Sul. “Assim que a água subiu, cobrindo áreas extensas,
inclusive zonas urbanas populosas nunca antes atingidas, duas frases
viralizaram no mundo virtual e no mundo real: “civil salva civil” e “o povo
pelo povo”- escreveu ela, à guisa de premissa para uma dissecação do comportamento do povo nas redes sociais.
Como não poderia criticar as ações de solidariedade às
quais se entregou considerável parcela da população, a jornalista acenou
primeiro com ligeira apologia. Assim: “O heroísmo e a força dos voluntários
foram e continuam sendo imensos. Sem o apoio dessas pessoas, em sua maioria
gente anônima movida pelo desejo genuíno de ajudar, a tragédia que vivemos
seria, com toda a certeza, muito pior”. Mas, a seguir, travestida de preceptora,
considerou os frequentadores das redes sociais como um povo que se deixa
governar pelo juízo de sofismas mal colocados: “só que, por trás das frases
lacradoras, que fazem tanto sucesso nas redes sociais, há uma armadilha
retórica”. E advertiu: “palavras têm força”. A partir daí, a comentarista se entrega
a um raciocínio exegético certamente mais consentâneo com a linha editorial ou
financeira do jornal: “quando alguém repete, de peito estufado, em uma live, ou
seja lá onde for, que ‘civil salva civil’ está, de certa forma, dizendo que o
Estado não é só desnecessário como não é bem-vindo”.
Qualquer pessoa ligeiramente alfabetizada sabe que
“civil” é uma denominação usada em oposição a “militar”. E ninguém ignora as
reflexões desafáveis, que pululam nas redes sociais, sobre as Forças Armadas. Como
consectário, a expressão “civil salva civil” significa que as Forças Armadas não
eram tidas como efetivas, entre os que procuravam salvar os arruinados na sorte.
Só alguém banido do controle de suas faculdades mentais,
diria que o Estado é “desnecessário” ou “não é bem-vindo”. Em lugar nenhum do
planeta se dispensa o Estado, seja qual for o regime que o sustenta. A interpretação
enviesada da jornalista a impede de ver, na manifestação mencionada, candente
crítica à incapacidade do Estado em administrar uma catástrofe de tamanhas
proporções, como essa. Tanto assim é que os cidadãos desarmados foram os que,
desde a primeira hora, se empregaram na espinhosa missão de salvar o próximo.
Com eles, bombeiros voluntários e bombeiros de outras regiões do país aqui
aportaram com a técnica e os instrumentos adequados para tal missão, porque os
bombeiros mal remunerados do Estado gaúcho não seriam suficientes em número
para prestar assistência plena a todas as vítimas.
O Estado
propriamente dito, essa instituição representada por pessoas eleitas com a
finalidade explícita de administrar o bem comum, fez somente o que tais pessoas
sabem fazer sempre: discursos, promessas de verbas, abraços e beijos...
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