A MORTE SORRATEIRA
A mudez da caixa preta
do avião tristemente despedaçado em Vinhedo, provavelmente dirá tudo: não houve
comunicação de pouso de emergência. A tragédia não se fez anunciar. A trama dos
acasos, que urdem fatalidades, não permitiu qualquer tentativa de salvação.
Ninguém teve tempo,
nem consciência, para sofrer a pressão torturante do pavor, a gélida agonia do
fim. A morte chegou sorrateira, de improviso. Veio para colocar um ponto final
inesperado em histórias de amor ou de ódio. Nem ela, a morte, se concedeu o
tempo de aguçar em suas vítimas o terror diante de uma dor física inevitável e
da certeza de que estava tudo acabando.
Ninguém teve tempo,
nem consciência, para se desfazer de todas as preocupações, traumas, carências,
culpas e medos porque, antes desses, o que os levara para aquela viagem tinham
sido sentimentos impulsionados pela razão de viver. E foram esses sentimentos que os acasos
reuniram numa viagem, cujo ponto final seria a morte.
Ninguém teve tempo,
nem consciência, para notar que a razão começava a se embotar, ao impulso de
uma vertigem. Ninguém teve tempo, nem consciência, para se sentir asfixiado.
Ninguém teve tempo, nem consciência de se sentir entorpecido com a indiferença
pela vida ou pela morte.
Todos, até aquele
momento, só se ocupavam de alegrias, expectativas, sonhos, planos, desejos e
esperanças. Como a menina, de apenas três aninhos, embalada na alegria de ficar
ao lado do pai, no dia dele. Como o menino que viajava com a mãe, a avó e o
cachorrinho. Como as médicas, que ali estavam, seduzidas pelo aperfeiçoamento
em pesquisas para escorraçar a morte de pacientes seus, que depositavam nelas a
esperança de viver. Eram médicas especializadas em oncologia, o mais temível e
terrível anúncio do fim da vida. Todos estavam no mesmo avião, mas cada qual
com o seu destino, seu objetivo e suas razões para fazer da vida um instrumento
de alegria.
O avião, aquela
potência metálica gerada pela inteligência humana para encurtar distâncias na
busca de conhecimentos científicos, negócios, encontros sentimentais e tantas
outras necessidades humanas, se transformara, num átimo, em mísera folha de
papel que, desgovernada pelo vento, girava em torno de si mesma, envolta em chamas,
destruindo vidas, das quais sobraram apenas saudades que só as lágrimas conseguem
descrever.
A súbita mudança de
posição da aeronave, de horizontal para vertical, em altíssima velocidade,
despencando em parafuso na direção do solo, deve ter desencadeado vertigem em
todos seus ocupantes, independentemente da despressurização. A consciência de
estarem vivos deve tê-los abandonado, desaparecendo em frações de segundos, sem
lhes dar tempo para qualquer sensação física ou psíquica.
Ninguém teve tempo de
pedir perdão ou de dizer adeus. Ninguém teve medo e nem consciência, para
recitar sequer uma oração suplicante, resumida em duas palavras, ainda que
fossem ditadas mais pelo impulso do desespero do que por fé: “meu Deus”!
Ninguém teve tempo e nem
consciência para saber que estava morrendo. Esse é o único consolo, que a dor
de quem os perdeu para sempre deixa escapar.
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