terça-feira, 31 de dezembro de 2024

 

        LIÇÕES DE UMA TRAGÉDIA

Por mais que a vida lhes ensine, a maioria dos humanos ignora sua compleição animal, sua insignificância perante o universo, diante do qual eles valem tanto quanto uma mosca ou um bichinho de goiaba.

Da genialidade de um Michelangelo à execração social de um morador de rua, nada é aproveitado como valor pelo sistema planetário, responsável pela vida na terra. Os valores sociais e morais são invenções do animal humano, na tentativa de harmonizar as diferenças produzidas pela convivência no grupo: riqueza e pobreza; sabedoria e ignorância; as celebridades e o povo desimportante que as sustenta.

A sorte, proporcionada por favores gratuitamente prestados pela vida, desperta diferentes reações nas pessoas que ela alcança. Só uma coisa nivela esses bem aventurados: a de se sentirem diferenciados, desiguais, liberados dos esforços, das necessidades e dos incômodos que perseguem a maioria absoluta da humanidade, nos mais variados estratos sociais. Por exemplo, utilizando transporte marítimo ou aéreo próprios. Mas, quando esse privilégio se transforma em meio de transporte da própria morte, os outros, ou seja, os triviais, os azarados, os não diferenciados, sentem alguns segundos de felicidade, por não terem sido contemplados com aquela sorte.

Tratados de filosofia, livros de autoajuda ou encíclicas papais não conseguem fazer o homem parar e refletir. Mas esse poder o têm as tragédias. O consternador acidente aéreo ocorrido em Gramado, às vésperas do Natal, foi uma dessas tragédias. Ninguém ficou indiferente. Ninguém deixou de sentir um mínimo de emoção, diante das diversas facetas que o triste acontecimento ofereceu.

Por obra de um único homem, a desgraça estendeu seus tentáculos, ceifando vidas, semeando dor, pavor, destruição e agudas preocupações.

Há uma cena que tão cedo não abandonará a memória de quem a viu.  As câmeras do aeroporto de Canela registraram com nitidez o embarque da família do piloto e proprietário do avião. O que poderia ter sido fato comum, ficou para a história como um momento pungente. Uma senhora, certamente a mãe, levava pela mão uma criança. De repente pararam, enquanto os outros já embarcavam. Em seguida, deixando a criança ali parada, a senhora seguiu apressada para embarcar. Então, o que se viu foram os derradeiros passos, vagarosos, parecendo vacilantes, de um inocente se dirigindo à aeronave.  

Um casal, vindo de Minas Gerais para viver o Natal Luz, teve o café da manhã interrompido, na pousada onde estavam:  um clarão, seguido de aterrador estrondo que sacudiu o prédio. Às pressas deixaram o local, vendo o reboco se desprendendo do teto.  Na saída do prédio, viram duas pessoas, saindo da cozinha, envoltas em fogo. O casal tirou os próprios casacos para abafar aquelas chamas. E foi tudo o que puderam fazer, correndo apenas com o que lhes restou no corpo.

Nesse quadro de desgraças, que apagam as diferenças entre valores humanos, o exaustivo e doloroso trabalho dos operadores do IML apresentou o mais lancinante testemunho: um braço decepado de criança, perdido entre os escombros e outros corpos esquartejados. Era o bracinho abandonado pela mão da mãe...

 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

 

O NATAL

Haverá algum motivo racionalmente explicável para as emoções que envolvem o mundo cristão em tempos natalinos? O que leva um cristão a se aliviar de todas as culpas e se mostrar boa pessoa, espalhando sorrisos e desejando felicidades a quem quer que entre em contato com ele, quando o Natal está chegando? Por que se tornam mais agudas a alegria, a tristeza, a saudade, e a facilidade de chorar, nesse tempo? Por que se acentua coletivamente o sentimento gregário, nessa parcela considerável da humanidade? Por que, enfim, tudo isso só acontece no Natal e nas festas que seguem, mas depois, retomada a normalidade da vida, nessas criaturas volta o egoísmo a prevalecer sobre a filantropia?

O homem, como toda a fauna, a flora e a concentração mineral no planeta terra, é composto por produtos e reações químicas comandados pela natureza. Do bichinho da goiaba aos vulcões, passando pelas estrelas cadentes, raios, trovões, dinossauros extintos, nada escapa às mutações proporcionadas pela bipolaridade dos fenômenos astronômicos. Se o espermatozoide fértil se encontra com o óvulo estéril, nada acontece. Esse mesmo nada resulta também do contrário, quando o óvulo fecundo se deixa pegar pelo espermatozoide estéril.

Os fenômenos astronômicos são os verdadeiros deuses de cujos humores dependem as reações emocionais das criaturas. E somente eles são os responsáveis pelas mutações que tornam a vida diversificada na terra e pelos costumes que se enraízam na sociedade.

Graças a esses fenômenos, o animal humano acumula em seu ânimo uma gama de emoções. A alegria contamina, se torna coletiva, se transforma até em alegria sem felicidade, causada por doença, perdas, pelo amor que se foi, pelo amor que acabou.

As emoções natalinas são atávicas na espécie humana. Há milhares de anos antes de Cristo, segundo a historiadora Joelza Ester Domingues, a humanidade já se entregava a comilanças, troca de presentes, cultos, celebrações e orgias, em comemoração ao nascimento do deus Mitra, em 25 de dezembro. A festa era chamada Natalis Solis Invicti pelos romanos, em razão do solstício de inverno, quando se comemorava a fertilidade da terra, proporcionando a colheita.

O solstício de inverno é um fenômeno astronômico em que o sol atinge a posição mais baixa ao meio-dia, tornando as noites mais longas e os dias mais curtos. No hemisfério norte isso acontece entre os dias 22 e 25 de dezembro. No hemisfério sul se tem como o dia 21 de junho a ocorrência do fenômeno.

A alegria coletiva proporcionada pelas festas alusivas ao nascimento do deus Mitra se entranhou enfaticamente na sociedade, obrigando o império romano a ceder aos sentimentos do povo. Em 25 de dezembro de 274 d.C. Aureliano, o imperador que governava Roma, adotou oficialmente o culto àquele deus originário da Pérsia, introduzindo-o no olimpo das outras divindades cultuadas pelos romanos.

Nem a Igreja Católica resistiu ao influxo da milenar alegria: o papa Júlio, pontífice entre 337 e 352, estabeleceu o dia 25 de dezembro como a data do nascimento de Cristo, tornando o natal feliz para crentes e ateus.

 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

 

                  UMA NUDEZ QUE A TOGA NÃO TAPA

As criaturas humanas não têm virtudes eternas. E mais contaminam com vícios do que com virtudes, as instituições de que fazem parte.

A história do Supremo Tribunal Federal comporta uma grande divisão: antes e depois da Constituição Federal de 1988. E logo a seguir apresenta indisfarçável subdivisão: antes e depois do PT.

Jamais, antes da Constituição de 1988, alguém ousou levantar a voz contra algum membro da referida instituição judiciária, cuja dignidade exige excesso de compostura.

O primeiro escândalo aconteceu com a nomeação de Celso de Mello, apadrinhado por Saulo Ramos, durante o governo de José Sarney. Findo seu mandato, Sarney resolvera ser senador pelo PMDB de Maranhão, que lhe negou legenda. Então se candidatou pelo Amapá. Mas, sua candidatura foi impugnada sob o argumento de que ele não tinha domicílio eleitoral lá.

O caso desembocou no STF. Consultado por Saulo Ramos acerca de seu ponto de vista sobre a questão, Mello respondeu que era indiscutível o domicílio eleitoral de Sarney no Amapá. Sorteado como relator foi Marco Aurélio Melo, que concedeu a liminar, mantendo a candidatura de Sarney. Em votação no plenário, a maioria confirmou a liminar de Marco Aurélio, mas Celso de Mello votou contra. Depois, ligou para Saulo Ramos, a fim de dar explicações sobre seu voto. Disse que, na véspera do julgamento, a Folha de São Paulo dera como certo seu voto a favor de Sarney. Então, para desmenti-la, resolveu votar contra, visto que a maioria confirmara o direito de Sarney. Indagado por Saulo Ramos, o que ele faria em caso contrário, Mello respondeu que votaria a favor de Sarney. Reagindo, Saulo Ramos dispensou metáforas para desdenhar da toga emporcalhada por excremento humano: “você é um juiz de me**da”.

Esse fato se tornou público através da autobiografia de Saulo Ramos em seu livro “O Código da Vida”. Foi a cortina do ridículo que se abriu naquela casa, onde se acreditava que a Justiça era exercida como um sacerdócio, por homens de compostura pessoal, social e funcional irreprochável. Aberta uma vez, ninguém mais conseguiu fechá-la.  Então, através dessa abertura o povo ficou sabendo que a história de um juiz não é diferente da história de qualquer um. Principalmente, a partir da era Lula, quando a toga de ministro do STF passou a ser tecida segundo os critérios do ex-torneiro mecânico.

Na semana passada, um desses ministros, chegadíssimo do Luiz Inácio, conseguiu a proeza de transformar seu casamento em  espetáculo histriônico. Nunca, na história desse país – como gosta de dizer o Lula – um ministro foi alvo de tantos apupos e avacalhações nas redes sociais, como foi o recém-casado. Nem mesmo a intimidade dele foi poupada, com a postagem de uma fotografia em trajes de banho, mostrando o quanto uma proeminente circunferência abdominal deforma a criatura humana.

A falta de escrúpulo, para separar as atribuições do cargo da voluptuosidade pessoal, atiçou mais a indignação popular, quando se ficou sabendo que um ministro deu presença no histrionismo teatral, voando em avião da FAB.

 

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

 

A DEUSA VENDIDA

Ela se venda, mas não se vende. Quem a vende são os corruptos, que negociam em nome dela. Eles se aproveitam de seu templo, de seu poder, de seu esplendor, da venda, que a torna cega, para se tornarem rufiões: fazem dela uma prostituta de luxo e disso tiram proveito.

Na última semana a imprensa noticiou investigações sobre venda de sentenças no Tocantins, na Bahia, no Mato Grosso e – nossa!– no Superior Tribunal de Justiça. A interjeição entre hifens se deve ao inusitado: o Superior Tribunal de Justiça, que é o órgão investigador da venda de sentenças nos Estados, tornou-se investigado pelo Supremo Tribunal Federal.

É claro que o nome dos ministros que compõem a Turma, onde foi descoberto o comércio de decisões judiciais, já desapareceu das manchetes. No lugar deles apareceu o nome do comprador das sentenças, chamado de “lobista”, Andreson Oliveira Gonçalves.

Segundo a imprensa, Andreson não só comprava decisões, como conhecia de antemão o teor delas. Mas, quem as vendia? Quem lhe fornecia as informações?

Por enquanto, bico calado. Onde há gente de alto coturno envolvida, qualquer oração tem o sujeito oculto. Por ora, ao que se sabe, as investigações têm em mira as assessorias dos ministros.

Mas, o que se sabe provém de notícia fornecida pela revista Oeste: “dos 31 ministros do STJ metade tem parentes que atuam em Tribunal”. São sobrinhos, enteados, mulheres... Ou seja, o número e a condição de pessoas que possuem credenciais para ter acesso às decisões judiciais, naquele tribunal, formam uma teia quase inextrincável.

Outra coisa muito sabida, porque não é segredo para ninguém, neste país onde corruptos confessos são perdoados, é que a chave de muitos tesouros se obtém através da senha “você sabe com quem está falando”?

A deusa Themis, criada pela mitologia grega para encarnar a justiça como representação axiológica e moral da verdade, da equidade e de um protótipo ideal de criatura superior às paixões humanas, no Brasil não passa de uma escultura de pedra.

Aqui, os tribunais superiores se consideram, em primeiro lugar, compostos por seres humanos, sujeitos a fraquezas, como o estresse, o esgotamento físico e mental. Mas, para que as partes não se sintam no direito de recorrer, assim aliviando o trabalho de suas excelências, a terapia de que eles fazem uso, não vem de laboratórios. Eles têm fórmulas próprias que provocam a soltura dos deveres constitucionais. Ruminam “súmulas” desdenhando da axiologia jurídica que sustenta o “direito fundamental” aos recursos, consagrado no artigo 5º inc. LV da Constituição Federal.

Além disso, o parlamento lhes fornece a lei, da qual eles se socorrem para compor uma selecionada equipe de assessores, com cargos em comissão ou função gratificada.

Assim, a função jurisdicional não sofre solução de continuidade, quando ditas excelências se afastam do país para flanar em quermesses jurídicas patrocinadas por empresários, advogados, e partes envolvidas com a Justiça.

Afinal, a Deusa Themis é uma simples figura, esculpida para enfeitar o STF. Verdade, moral e equidade não passam de paramentos da liturgia mitológica...