sexta-feira, 21 de junho de 2019

PARTO DE UMA LEI DEBAIXO DA TOGA

João Eichbaum
Se o juiz precisa citar Simone de Beauvoir para cimentar sua decisão, é sinal de que ele não tem argumentos jurídicos para armar o silogismo do qual nasce o juízo de valor. Sentença judicial não se constrói com devaneios vestidos de adjetivos e advérbios.
A sentença judicial é decorrência da lógica jurídica e não mera poesia, comprometida com insatisfações pessoais. Juízo de valor que é, toda a decisão judicial deve estar atrelada às regras primárias do silogismo: premissa maior, premissa menor, e conclusão.
Banhadas em soporífera prolixidade, as cento e cinquenta e cinco páginas que compõem o voto de Celso de Mello na equiparação da “homofobia” e da “transfobia” com crime de racismo, e levaram mais sete ministros a acompanhá-lo, não passam disso: devaneios gongóricos.
Dona Carmen Lúcia, por exemplo, viaja no etéreo, recitando misericordiosos salmos de sua lavra: “ Todo preconceito é violência. Toda discriminação é forma de sofrimento”. E, de tão enlevada em sua oração pelos desgraçados, a ministra esquece a gramática, escondendo o sujeito nessa ambiguidade: “mas, aprendi que alguns preconceitos causam mais sofrimento porque alguns castigam desde o seu lar, pela só circunstância de tentar ser o que é ...”
A diatribe com que Celso de Mello inicia seu voto, invadindo o espaço destinado à prestação jurisdicional com vociferação contra “corifeus e epígonos (nossa!) de sectárias doutrinas fundamentalistas”, já retira da decisão a aura científica do Direito: sentença não é lugar para desabafos pessoais do juiz.
E “quem começa mal, termina mal”, diz o velho ditado. O Direito, que está no campo das ciências e não no etéreo dos devaneios, da poesia e dos discursos movidos a insatisfações pessoais, tem regras. Nessas regras reside a matriz das premissas maiores, que dão suporte às sentenças judiciais. As decisões que as não respeitam, acabam no escoadouro dos desmandos.
O voto de Celso de Mello e seus acompanhantes avilta a ciência do Direito, ao desdenhar um princípio fundamental, uma regra básica, a que se submetem os ordenamentos jurídicos do mundo inteiro, porque é verdadeiro dogma na ciência penal: a proibição da analogia como fonte de hermenêutica. O direito alemão, que prima pela síntese na linguagem jurídica, assim define esse dogma: “Analogieverboten”.
A proibição da analogia preside à regra milenar do direito penal, “nullum crimen sine lege”: não há crime sem lei. Pois a maioria do STF, seguindo o voto de Celso de Mello, criou outra regra, a tipificação penal mediante jurisprudência. E o fez, desrespeitando literal e  acintosamente aquele princípio: equiparou homofobia a racismo.
Que eles tenham esquecido regras primárias de Direito Penal até se compreende. Isso faz parte das fraquezas humanas. Mas que se omitam diante da Constituição Federal não se perdoa. E lá está escrito com todas as letras, no inc. XXXIX do art. 5º: “não há crime, sem lei anterior que o defina...”.
Não é por menos que o STF se submete ao ultraje, pela inclemência das críticas. São decisões como essa que transformam sua luxuosa sala de sessões em palco de tristes espetáculos judiciários, onde morre o personagem principal: o Direito.


  


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