PARTO
DE UMA LEI DEBAIXO DA TOGA
João
Eichbaum
Se o juiz precisa citar Simone de Beauvoir para cimentar sua decisão, é
sinal de que ele não tem argumentos jurídicos para armar o silogismo do qual
nasce o juízo de valor. Sentença judicial não se constrói com devaneios
vestidos de adjetivos e advérbios.
A sentença judicial é decorrência da lógica jurídica e não mera poesia,
comprometida com insatisfações pessoais. Juízo de valor que é, toda a decisão
judicial deve estar atrelada às regras primárias do silogismo: premissa maior,
premissa menor, e conclusão.
Banhadas em soporífera prolixidade, as cento e cinquenta e cinco páginas
que compõem o voto de Celso de Mello na equiparação da “homofobia” e da
“transfobia” com crime de racismo, e levaram mais sete ministros a
acompanhá-lo, não passam disso: devaneios gongóricos.
Dona Carmen Lúcia, por exemplo, viaja no etéreo,
recitando misericordiosos salmos de sua lavra: “ Todo preconceito é violência.
Toda discriminação é forma de sofrimento”. E, de tão enlevada em sua oração
pelos desgraçados, a ministra esquece a gramática, escondendo o sujeito nessa
ambiguidade: “mas, aprendi que alguns preconceitos causam mais sofrimento
porque alguns castigam desde o seu lar, pela só circunstância de tentar ser o
que é ...”
A diatribe com que Celso de Mello inicia seu voto,
invadindo o espaço destinado à prestação jurisdicional com vociferação contra
“corifeus e epígonos (nossa!) de sectárias doutrinas fundamentalistas”, já
retira da decisão a aura científica do Direito: sentença não é lugar para desabafos
pessoais do juiz.
E “quem começa mal, termina mal”, diz o velho
ditado. O Direito, que está no campo das ciências e não no etéreo dos
devaneios, da poesia e dos discursos movidos a insatisfações pessoais, tem
regras. Nessas regras reside a matriz das premissas maiores, que dão suporte às
sentenças judiciais. As decisões que as não respeitam, acabam no escoadouro dos
desmandos.
O voto de Celso de Mello e seus acompanhantes
avilta a ciência do Direito, ao desdenhar um princípio fundamental, uma regra
básica, a que se submetem os ordenamentos jurídicos do mundo inteiro, porque é verdadeiro
dogma na ciência penal: a proibição da analogia como fonte de hermenêutica. O
direito alemão, que prima pela síntese na linguagem jurídica, assim define esse
dogma: “Analogieverboten”.
A proibição da analogia preside à regra milenar do
direito penal, “nullum crimen sine lege”: não há crime sem lei. Pois a maioria
do STF, seguindo o voto de Celso de Mello, criou outra regra, a tipificação
penal mediante jurisprudência. E o fez, desrespeitando literal e acintosamente aquele princípio: equiparou
homofobia a racismo.
Que eles tenham esquecido regras primárias de
Direito Penal até se compreende. Isso faz parte das fraquezas humanas. Mas que
se omitam diante da Constituição Federal não se perdoa. E lá está escrito com
todas as letras, no inc. XXXIX do art. 5º: “não há crime, sem lei anterior que
o defina...”.
Não é por menos que o STF se submete ao ultraje,
pela inclemência das críticas. São decisões como essa que transformam sua
luxuosa sala de sessões em palco de tristes espetáculos judiciários, onde morre
o personagem principal: o Direito.
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