sexta-feira, 13 de março de 2020


 SUZY, A GLOBO, O DOUTOR E O POVO
João Eichbaum
Aparelhado de óculos pequenos, que lhe deixam os olhos enormes, Suzy tem uma estrovenga entre as virilhas como qualquer macho, mas faz beicinho de dondoca, ou qualquer outra coisa para parecer mulher. Deve andar com passinhos estudados, cuidando para não largar ventosidades e abanando o traseiro estofado de silicone.
O doutor Drauzio é um senhor de voz macia, dessas pessoas que convencem só pelo jeito de ser. Mas ele, além disso, escreve. Gosta de romancear realidades estrepitosas, e quem lê seus escritos sobre medicina cai no direito de achar que, nessa área, o doutor sabe tudo, e mais do que ninguém. Sua especialidade é a generalidade.

A Globo é uma empresa de comunicação, que fez nome e fortuna, apresentando dramalhões e historinhas românticas para boi dormir, para  madames verterem lágrimas e varões cabecearem de sono na frente da televisão, além de patrocinar macaquices em auditório e mulheres sensuais para distrair crianças.

Povo é povo. Povo é aquela massa informe, imprevisível, apaixonada, que, assim como ama, odeia; assim como abraça, repele; é guiada por humores variados, serve como rebanho de cordeiros para espertalhões, ou pode virar lobo voraz de uma hora para a outra.

Pois, num programinha apresentado pela Globo, apareceu o doutor Drauzio, que é tido como estrela polar da medicina, e pinta na televisão mais como astro do que como médico. Acostumada a arrancar lágrimas do povo por dá cá aquela palha, a comunicadora se valeu da veia artística do doutor Drauzio para colocá-lo como figura de proa de uma reportagem romanceada: a parte miserável da humanidade trancafiada num presídio.

Não deu outra. O doutor Drauzio cumpriu à risca o script que tinha decorado, emprestando para o seu personagem uma figura terna, dobrada pela compaixão, subjugada pelo amor ao próximo. A câmera tomou a direção do rosto acabrunhado de um presidiário encolhido, onde avultava sua expressão de coitadinho, porque não recebia visita há oito anos. Então aconteceu a cena de desencravar lágrimas em madames e repuxões de peito nos barbados, derretidos pela pantomina: o doutor Drauzio, botando amor ao próximo pelo ladrão, abraçando carinhosamente  Suzy.

Menos de 24 horas depois, rolavam pelas sarjetas as máscaras dos atores. Suzy não passava de um abusador de criança. Ele se servira sexualmente de um menino de nove anos de idade e, depois de matar o garoto, escondera o cadáver. E o doutor Drauzio, contratado pela Globo para fazer o povo chorar, tinha abraçado e chorado no ombro, não de um coitadinho, mas de um monstro.

Aí então, se sentindo ultrajado em seus valores e usado como plateia para uma farsa que engrandecia um vilipêndio, o povo reagiu. Não só a Globo, como o doutor Drauzio, antes um ídolo, se transformaram em alvo de desdém e de uma fúria coletiva.
A Globo não resistiu à avalanche de indignação. Chamou o doutor Drauzio e ambos tiveram que sorver o cálice amargo da humilhação, reconhecendo um erro. E Suzy, para o povo, deixou de ser a mulher que queria ser...

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