DO AMOR ALUGADO, NA
QUARENTENA
João Eichbaum
Desatravancada de povo,
a cidade mais parece um fantasma de pedra e cimento. É tal a quietura e a
mesmice, um silêncio de tamanha impertinência, sem zumbido nenhum, que é capaz
de fazer dormir até boneca de pano, dessas que só pobre conhece. O vivente que
anda por aí não encontra ninguém para trocar meio dedo de prosa, nem para um
“bom dia” ou para um “como tem passado”? Nem um mísero gato preto atravessa a
rua. Dá para pensar que o mundo parou nas três da tarde, com todo mundo
espichado na cama, tirando proveito do coronavirus na sesta.
O povo está entrincheirado,
na frente da televisão, ou com os dedos no celular, revirando as letras, sem
dar cobro da modorra de cada dia: a mulher vendo sempre o mesmo homem na frente
dela, e homem vendo sempre a mesma mulher na frente dele.
Todo mundo de resguardo,
fazendo o asseio das mãos a toda hora, mais para passar o tempo do que para não
pegar a doença. Das janelas abertas, só o vento tira proveito para balançar
acortinados e dar asas para algum papel esquecido em cima da mesa. Porque de
nada adianta se debruçar na janela e entregar para os olhos o pasmo das ruas
vazias, da cidade deserta, como se estivesse morta, sem viva alma em ponto de
serventia para algum pensamento.
Nada retira o vivente do
espanto de ter que conviver com o tédio, com as horas que não passam. Onde
andarão os velhinhos, com seus cachorrinhos de estimação, levantando a perninha
de poste em poste, botando o focinho a serviço de qualquer cheiro e fazendo das
calçadas sua latrina de cada dia? E as madames elegantes, metidas na apertura
das calças jeans que botam no relevo suas repartições traseiras e demais merecimentos,
puxando pela corrente seu doguezinho metido a besta, onde andarão?
Diz-se que andam
empanzinados de povo os supermercados, com gente estocando papel para assepsia
do traseiro, e enchendo os carrinhos com tudo o que os olhos alcançam, como se
o amanhã fosse hoje, para servir necessidades que nem sabem possuir.
Enfim, olhada pelos
olhos da doença, a vida está entregue àqueles que trabalham para consertar as
maldades da natureza na gente: médicos, enfermeiros, pessoal da saúde. E a
motoristas, motoboys, em serviço de qualquer causa, na vida e na morte. O resto
voltou para o tempo das cavernas, vivendo só para si e os seus.
Só ela não faz parte
desse quadro, desse oco de coruja em que se transformou a cidade, encalhada no
silêncio. Na sua torcida e destorcida profissão, a mais antiga do mundo,
alugando o amor a tanto por hora, ela se
expõe a tantos riscos quanto aqueles que, por juramento, compram briga com a
morte. Na manhã seca e vazia, na esquina deserta, lá está, expelindo fumaça
pelo nariz, bolsa no ombro, a magricela, de prontidão para se alugar, sem o
olhar espantado de quem teme a morte porque, para viver, ela precisa aceitá-la.
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