sexta-feira, 27 de março de 2020


DO AMOR ALUGADO, NA QUARENTENA

João Eichbaum
Desatravancada de povo, a cidade mais parece um fantasma de pedra e cimento. É tal a quietura e a mesmice, um silêncio de tamanha impertinência, sem zumbido nenhum, que é capaz de fazer dormir até boneca de pano, dessas que só pobre conhece. O vivente que anda por aí não encontra ninguém para trocar meio dedo de prosa, nem para um “bom dia” ou para um “como tem passado”? Nem um mísero gato preto atravessa a rua. Dá para pensar que o mundo parou nas três da tarde, com todo mundo espichado na cama, tirando proveito do coronavirus na sesta.

O povo está entrincheirado, na frente da televisão, ou com os dedos no celular, revirando as letras, sem dar cobro da modorra de cada dia: a mulher vendo sempre o mesmo homem na frente dela, e homem vendo sempre a mesma mulher na frente dele.

Todo mundo de resguardo, fazendo o asseio das mãos a toda hora, mais para passar o tempo do que para não pegar a doença. Das janelas abertas, só o vento tira proveito para balançar acortinados e dar asas para algum papel esquecido em cima da mesa. Porque de nada adianta se debruçar na janela e entregar para os olhos o pasmo das ruas vazias, da cidade deserta, como se estivesse morta, sem viva alma em ponto de serventia para algum pensamento.

Nada retira o vivente do espanto de ter que conviver com o tédio, com as horas que não passam. Onde andarão os velhinhos, com seus cachorrinhos de estimação, levantando a perninha de poste em poste, botando o focinho a serviço de qualquer cheiro e fazendo das calçadas sua latrina de cada dia? E as madames elegantes, metidas na apertura das calças jeans que botam no relevo suas repartições traseiras e demais merecimentos, puxando pela corrente seu doguezinho metido a besta, onde andarão?

Diz-se que andam empanzinados de povo os supermercados, com gente estocando papel para assepsia do traseiro, e enchendo os carrinhos com tudo o que os olhos alcançam, como se o amanhã fosse hoje, para servir necessidades que nem sabem possuir.

Enfim, olhada pelos olhos da doença, a vida está entregue àqueles que trabalham para consertar as maldades da natureza na gente: médicos, enfermeiros, pessoal da saúde. E a motoristas, motoboys, em serviço de qualquer causa, na vida e na morte. O resto voltou para o tempo das cavernas, vivendo só para si e os seus.

Só ela não faz parte desse quadro, desse oco de coruja em que se transformou a cidade, encalhada no silêncio. Na sua torcida e destorcida profissão, a mais antiga do mundo, alugando o amor a tanto por hora, ela  se expõe a tantos riscos quanto aqueles que, por juramento, compram briga com a morte. Na manhã seca e vazia, na esquina deserta, lá está, expelindo fumaça pelo nariz, bolsa no ombro, a magricela, de prontidão para se alugar, sem o olhar espantado de quem teme a morte porque, para viver, ela precisa aceitá-la.



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