O DECANO
João Eichbaum
Quem vê, pensa: parece jeitoso, de largos
tirocínios. A cada adjetivo que surge no seu escrito, Celso de Mello sacode a
cabeça, como se estivesse recebendo aplausos de si de mesmo ou de uma grande
plateia. O molejo da cabeça, abandonada pelos cabelos, parece funcionar como
metrônomo do discurso, puxando a carroça de um só substantivo com uma fileira
de adjetivos. Mas também não deixa adjetivos abandonados. Volta e meia atrela
um advérbio ao adjetivo, para engrandecer a qualificação. Depois de qualificar
o substantivo, o adjetivo é qualificado pelo advérbio, que às vezes também
resolve deixar o verbo mais saliente.
Parece complicado? Talvez. Mas não existe outra
maneira de retratar fielmente o decano, fazendo discursos, cuja valia só se
pode medir pela mãe dos bocejos, a prolixidade. Citando o que fulano disse,
repetindo o que beltrano ensinou, desencavando jurisprudências cujos equívocos
se convertem em lei, ele vai virando páginas e páginas. Não quer saber, ou nem sabe lidar com
linguagem prosaica e acessível, que entre pelos ouvidos do povo como um refrão
fácil de repetir. A linguagem dele é de dicionário.
O decano nunca foi advogado na vida. Não sabe o
quanto custa andar de Herodes a Pilatos, pedindo, suplicando, implorando, levando
chá de banco, chute no traseiro. Parece que foi concebido para dar pareceres.
Recebido o diploma de bacharel, prestou concurso para promotor de Justiça. Mas
ficou menos de seis anos dando pareceres no Ministério Público. Foi convidado e
levou seus adjetivos e advérbios a dançarem na boca ou a ornarem os escritos do
secretário de Cultura e Tecnologia de São Paulo.
Mais tarde fez o mesmo para um constituinte da
Assembleia paulista. Por fim, deu pareceres na Casa Civil e na Consultoria
Geral da República do José Sarney. Só saiu da Consultoria para se entregar ao
esplendor da toga, apadrinhado por José Sarney e Saulo Ramos.
Mas, no caminho da glória, tropeçou no desgosto, ouvindo
sobre sua pessoa, pela boca do padrinho Saulo, um parecer que nem papagaio
falante aprecia: a comparação com aquele excremento usado pelos passarinhos para
homenagear os pais da pátria nos monumentos das praças, o mesmo excremento que,
ao exigir soltura, reduz a dignidade de toda a criatura humana, do papa ao
morador de rua, a alívios ou esforços malcheirosos.
Como seus colegas, Celso de Mello vive a glória
num tribunal que é também sumidouro e cemitério. Sumidouro de crimes apagados
pelo tempo. Cemitério das esperanças de quem deixou a vida, sem o consolo da
justiça, pela qual suplicou. Nos últimos dias, porém, na contramão dessa triste
sina, ele imprimiu pressa e diligência na caça de palavras que podem desovar
pensamentos criminosos do presidente Jair Bolsonaro, em conversas com Sérgio
Moro ou nas reuniões ministeriais.
O decano pode estar padecendo o tormento de dizer
adeus à glória. Em novembro, cercado de pajens de capinha preta será levado,
pela última vez, ao trono das ilusões do poder. Ali só senta quem suporta o
êxtase de viver como suma majestade da pátria.