quinta-feira, 28 de maio de 2020


O DECANO

João Eichbaum


Quem vê, pensa: parece jeitoso, de largos tirocínios. A cada adjetivo que surge no seu escrito, Celso de Mello sacode a cabeça, como se estivesse recebendo aplausos de si de mesmo ou de uma grande plateia. O molejo da cabeça, abandonada pelos cabelos, parece funcionar como metrônomo do discurso, puxando a carroça de um só substantivo com uma fileira de adjetivos. Mas também não deixa adjetivos abandonados. Volta e meia atrela um advérbio ao adjetivo, para engrandecer a qualificação. Depois de qualificar o substantivo, o adjetivo é qualificado pelo advérbio, que às vezes também resolve deixar o verbo mais saliente.

Parece complicado? Talvez. Mas não existe outra maneira de retratar fielmente o decano, fazendo discursos, cuja valia só se pode medir pela mãe dos bocejos, a prolixidade. Citando o que fulano disse, repetindo o que beltrano ensinou, desencavando jurisprudências cujos equívocos se convertem em lei, ele vai virando páginas e páginas.  Não quer saber, ou nem sabe lidar com linguagem prosaica e acessível, que entre pelos ouvidos do povo como um refrão fácil de repetir. A linguagem dele é de dicionário.

O decano nunca foi advogado na vida. Não sabe o quanto custa andar de Herodes a Pilatos, pedindo, suplicando, implorando, levando chá de banco, chute no traseiro. Parece que foi concebido para dar pareceres. Recebido o diploma de bacharel, prestou concurso para promotor de Justiça. Mas ficou menos de seis anos dando pareceres no Ministério Público. Foi convidado e levou seus adjetivos e advérbios a dançarem na boca ou a ornarem os escritos do secretário de Cultura e Tecnologia de São Paulo.

Mais tarde fez o mesmo para um constituinte da Assembleia paulista. Por fim, deu pareceres na Casa Civil e na Consultoria Geral da República do José Sarney. Só saiu da Consultoria para se entregar ao esplendor da toga, apadrinhado por José Sarney e Saulo Ramos.

Mas, no caminho da glória, tropeçou no desgosto, ouvindo sobre sua pessoa, pela boca do padrinho Saulo, um parecer que nem papagaio falante aprecia: a comparação com aquele excremento usado pelos passarinhos para homenagear os pais da pátria nos monumentos das praças, o mesmo excremento que, ao exigir soltura, reduz a dignidade de toda a criatura humana, do papa ao morador de rua, a alívios ou esforços malcheirosos.

Como seus colegas, Celso de Mello vive a glória num tribunal que é também sumidouro e cemitério. Sumidouro de crimes apagados pelo tempo. Cemitério das esperanças de quem deixou a vida, sem o consolo da justiça, pela qual suplicou. Nos últimos dias, porém, na contramão dessa triste sina, ele imprimiu pressa e diligência na caça de palavras que podem desovar pensamentos criminosos do presidente Jair Bolsonaro, em conversas com Sérgio Moro ou nas reuniões ministeriais. 

O decano pode estar padecendo o tormento de dizer adeus à glória. Em novembro, cercado de pajens de capinha preta será levado, pela última vez, ao trono das ilusões do poder. Ali só senta quem suporta o êxtase de viver como suma majestade da pátria.




quinta-feira, 21 de maio de 2020


NA FALTA DE COMPETÊNCIA, O ARBÍTRIO

João Eichbaum

O aluvião da desgraça, que o coronavirus fez desabar sobre nós, está mostrando que somos governados por gente despreparada, que não enxerga um palmo diante do nariz e que, na falta de competência, usa da arbitrariedade para tirar o pão da boca de quem precisa trabalhar.

O vírus veio da China, carregando consigo o desrespeito que o Estado chinês empresta aos direitos humanos. Nunca os direitos fundamentais, consagrados na Constituição, foram negados tão escancaradamente, como no rabo desse coronavirus, à conta de uma “emergência”, confundida com estado de defesa ou de sítio.

Sem comércio, indústria e grande parte dos serviços funcionando, o que é que acontece? Primeira resposta, óbvia:  restringe-se a área ocupacional, obsta-se o trabalho, rouba-se do cidadão, que precisa de emprego, a sua fonte de sustento. Ou seja: nega-se-lhe o direito de viver. Segunda resposta: nega-se ao empreendedor, o comerciante, o industrialista, o prestador de serviço, o direito à livre iniciativa.

A paralização da atividade econômica, imposta por estados e municípios, é arbitrária, insana, inconsequente. Não passa de um instrumento de terror. É a filosofia macabra que livra alguns da morte, mas ameaça a muitos com a fome. Fere direitos individuais e viola um princípio constitucional, sem o qual nem o Estado pode existir.

É do giro da economia que nascem o emprego, o consumo, os elementos de que se vale o fisco, para manter o Estado. Por isso, o artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal consagra os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa entre os princípios fundamentais da república. Esses princípios constitucionais são o alicerce da nação.
Atentar contra eles é atentar contra o próprio Estado.

O artigo 23, inc. II, da Constituição Federal, que muitos decretos municipais invocam, para engessar a economia, não os autoriza. Aquele dispositivo impõe um dever para administradores municipais: cuidar da saúde. Mas, ao invés de cumprirem esse dever, investindo na estrutura dos serviços de saúde, eles preferem embelezar a cidade, para distrair o povo com circo.

 A chegada do vírus chinês os surpreendeu de calça na mão e, não sabendo o que fazer, apelaram, sim, apelaram para ignorância: negam o direito à vida, que provém do trabalho, gerado pela livre iniciativa. Escondem sua incompetência, afrontando a Constituição.

 O maior modelo de má gestão, de desperdício do dinheiro público, que se tem neste país, está no estado do Amazonas. Lá foi construído majestoso estádio de futebol, para encantar o mundo e deslumbrar os amazonenses. Agora, por conta da pompa, do luxo, do desperdício no futebol, a pandemia está ceifando vidas: não há hospitais suficientes, nunca houve sistema de saúde à altura das necessidades.

Estamos por conta do dólar que sobe, e da bolsa que despenca. O povo em cativeiro, donde só sai com focinheira. O comércio fechado, empreendimentos sufocados, a economia ameaçada por uma vertigem sem fundo. E milhões de pessoas sem fugir desse destino, o desemprego, que arrasta para dentro das famílias o desespero, anunciando um fantasma pior: a fome.

quinta-feira, 14 de maio de 2020


GARIMPANDO CRIMES
João Eichbaum

No dia em que pediu demissão do Ministério da Justiça, Sérgio Moro debitou sua saída a divergências com Jair Bolsonaro. Depois de aludir a genérica “interferência política na polícia”, revelou que o presidentequeria ter uma pessoa da confiança pessoal dele”, para obter “informações, relatórios de inteligência”, e “tinha preocupação com inquéritos” no STF. Por isso achava oportuna uma troca na Polícia Federal. No pronunciamento, Moro desmentiu que a exoneração do delegado Valeixo, tinha sido a pedido.

Foi tudo quanto disse Sérgio Moro sobre o presidente da República. Mas, para pasmo de quem não é analfabeto funcional e tem conhecimentos primários de Direito Penal, o senhor Aras, Procurador Geral da República, requereu permissão para enquadrar, em inquérito policial, Bolsonaro e Moro por dez crimes, extraídos do pronunciamento do último.

A dimensão dos episódios narrados revela a declaração de Ministro de Estado de atos que revelariam a prática de ilícitos, imputando a sua prática ao Presidente da República, o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa...”, escreve Aras.

No texto acima há pequena mostra da obra da PGR, maltratando a construção verbal: “revela a declaração ...de atos que revelariam”.

Eis os crimes “em tese”, arrancados a fórceps “da dimensão dos episódios (valha-nos da tumba, Camões!) narrados”: “falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra”.

“Interferência política, escolha de pessoa de confiança para obter informações, relatórios de inteligência, preocupação com inquéritos” não são crimes. Nem a “falsidade ideológica” pescada na informação de que no Diário Oficial consta como sendo “a pedido” uma exoneração que ocorreu “ex officio”, e leva o nome de Sérgio Moro, que não assinou o ato. Esse crime se tipifica somente com a finalidade perseguida pela falsificação, circunstância que não deflui do pronunciamento de Moro.

A natureza do inquérito, cinzelada pelo artigo 4º do Código de Processo Penal, o leva à “apuração de infrações penais e de sua autoria”. O senhor Aras quer extrair “infrações penais” de palavras que não exprimem condutas delituosas. Quer inquérito para destrinchar suposições, intenções, maus pensamentos. Até crime que não existe no Código Penal, o senhor Aras botou na lista, para investigar Bolsonaro e Moro: “obstrução de justiça”.

Nessa hora má, com o coronavirus ceifando vidas e depenando a economia do país, a peça de Aras, por sua insignificância jurídica, merecia ser indeferida. Mas, não. Caiu no colo de um magistrado que, sem guardar distância de questões alheias a seu múnus, já tinha exarado juízo sobre a pessoa de Bolsonaro: “não está à altura do cargo”. Coincidentemente esse inquérito é o ovo donde pode sair, fazendo piu, piu, o impeachment do presidente.

Ao invés de gastar suas antigas pestanas sobre dezessete laudas, aturdido em dar o melhor de si para si mesmo, garimpando crimes desconhecidos da linguagem penal, Celso de Mello faria melhor, se dando por suspeito. Não pela lei, mas pela ética, pela dignidade, preservando a imagem do Judiciário.


sexta-feira, 8 de maio de 2020


O ARTIGO 37
João Eichbaum

No uso e gozo da palavra, dirigindo-se ao distinto público Jair Bolsonaro primeiro pintou Sérgio Moro como sujeito vaidoso. Depois, desandou em explicações dos porquês que apearam o cansado delegado Valeixo da chefia da Polícia Federal. Na poeira dessas explicações, deu com a língua nos dentes, falando coisas que não devia. Disse que à polícia federal importava mais o assassinato da vereadora Mariele, do que a pessoa dele, quase assassinado em Minas Gerais. Antes, dando entrevista, Sérgio Moro espalhara que o presidente queria meter o bedelho na Polícia Federal.

Pelo fio dessas conversas começou a soar o artigo 37 da Constituição Federal, como guizo de serpente, nos ouvidos dos doutores.

O artigo 37 sinaliza a defesa do país contra a promiscuidade facilitada pelo poder, exortando governantes e demais autoridades à lembrança de que o Estado não está a serviço deles, mas eles estão a serviço do Estado. É aquele aviso aos navegantes no poder: “não vim para ser servido, mas para servir”. Só que não é bem assim. O jeitinho, no Brasil, é sempre melhor do que a lei, e por isso chegamos ao ponto a que chegamos. É por isso que o país está atolado nessa matéria que passa pelos intestinos e sai no detrás, nas partes velhacas dos políticos.

Tão bonito, tão nobre, tão bem intencionado o artigo 37, mas tão desprezado, enxovalhado por burros e mal intencionados! No próprio STF se come lagostas, se toma champanhe, vinho estrangeiro, cachaça, se estala a língua com acepipes que o povo nem conhece, e tudo vai na conta do contribuinte. Mas, falar no art. 37 para o Tribunal de Contas é o mesmo que tocar violino em casa de surdo: a promiscuidade desses proveitos pessoais com os cargos e funções dos ministros é ignorada.

Bolsonaro achava que a polícia federal, sendo sua subordinada, devia descobrir primeiro quem mandou matá-lo; depois, tratar do caso da Mariele. Mas justamente seu cargo o impede de usar o Estado para exigir o primeiro lugar da fila.

O 37, cheio de vírgulas e substantivos, veda, “a qualquer dos Poderes”, o uso das instituições em proveito próprio. Mas não proíbe a nomeação de amigos para cargos de confiança. Não aludindo a seu caso, Bolsonaro estaria a salvo de imbecilidades judiciais, nomeando quem quisesse para chefia da PF, sem botar minhoca na cabeça dos ministros do STF. A chefia da PF é cargo de confiança. E ninguém vai procurar inimigo para lhe dar cargo de confiança.

Para impedir a posse de Alexandre Ramagem, amigo de Bolsonaro, na chefia da PF, adversários do presidente juntaram suas conversas, pegaram debaixo dos tapetes judiciários o pó do art. 37, e impetraram inepto mandado de segurança. Aí Alexandre Moraes mergulhou seus saberes na entrevista de Sérgio Moro e lá pescou uma liminar nua, descalça, claudicante, se escorando em suposições.

Sufocada no pó dessa pobreza jurídica de mandado de segurança sem direito líquido e certo, a Justiça só será reconhecida como tesoura de jardim, usada para desfolhar ramagens...

sexta-feira, 1 de maio de 2020


COMO NA VARA DE FAMÍLIA
João Eichbaum

Com a aquele jeitinho e a voz mansa de monge trapista, Sérgio Moro conseguiu parar o Brasil na sexta-feira passada. O coronavirus sumiu das manchetes. O noticiário do horror, contando mortos, silenciou. Por algumas horas, foi como se o vírus tivesse sumido, através de um passe de mágica.

O homem que vinha deslumbrando o Brasil, antes do anúncio da candidatura de Jair Bolsonaro, o homem que era considerado uma espécie de herói nacional, por ter transformado em processos judiciais as investigações da chamada Lava-Jato, condenando Lula da Silva à prisão, estava pulando fora do barco do Bolsonaro...

Em razão de seu prestígio popular, o então juiz de direito federal Sérgio Moro, foi cotado para compor o governo de Jair Bolsonaro como Ministro da Justiça. Para estupefação de muitas pessoas, especialmente magistrados, Moro jogou fora sua carreira de vinte e três anos. Ele se exonerou da magistratura, quer dizer, ficou sem emprego, para se aventurar na política.

Por sua atuação como juiz na operação Lava-Jato, o magistrado se tornara figura pública conhecida internacionalmente. Adquirira fama e respeito. Era tido e havido como expressão de conduta ilibada, equilíbrio e sabedoria jurídica. Apesar dessa solidez pessoal, deixou o certo pelo duvidoso.

A arte de chegar ao poder à custa de qualquer coisa, não é para neófitos. É preciso muito jogo de cintura, é preciso engolir sapo para vomitar caranguejo, é preciso conhecer o truque de usar os ombros dos outros para chegar ao cume. É preciso abandonar princípios muitas vezes, renunciar a propósitos saudáveis, abrir mão do convívio com a família ou do próprio conforto pessoal. Por tudo isso, um velho ditado gaúcho alerta com sabedoria: ovelha não é pra mato.

O exercício da magistratura é cheio de regras. O meio político, ao contrário, não tem regras fixas. O que vale é aquilo que convém no momento. O que hoje tem valor, amanhã pode deixar de ter. A mais alta rotatividade de sentimentos, ideias, princípios e comportamentos é só na política que se conhece. Prova disso é a Constituição Federal, que não passa de uma colcha de retalhos: volta e meia é emendada, por meio de acordos, “articulações”, etc. Será que Sérgio Moro desconhecia a oração franciscana da suruba política “é dando que se recebe”? 

O vínculo entre ele e Bolsonaro terminou como uma relação amorosa qualquer. Morta a paixão, surge a guerra dos ressentimentos: onde é que eu estava com a cabeça, quando fui me juntar a essa peste? Então, quebrados os pratos, eles soltaram a língua na frente da torcida. Segundo Moro, Bolsonaro é metido a mandão, mete o bedelho em tudo. E Bolsonaro o tem por vaidoso, que só se preocupa consigo mesmo, ao invés de pensar na pátria. Tão vaidoso que o esnobou, na primeira vez que se viram...

A economia ameaçada pela inanição, o desemprego arrastando a miséria para dentro das famílias, o coronavirus ceifando vidas incessantemente, e dois egos em liça, como se estivessem na Vara de Família, “por incompatibilidade de gênios”...