O ANIMAL VOLÚVEL
O cronista fez a seguinte definição de povo: um grupo de animais
vertebrados, mamíferos, falantes, bípedes, não alados, mas volúveis, movidos a
crenças, paixões, necessidades e interesses. Não deu outra. Três dias depois,
um assassinato, praticado por tortura na via pública, servia como exemplo concreto
dessa definição.
A doentia curiosidade por cenas cruentas, que é uma forma de
paixão, já que a paixão não passa de emoções elevadas ao cubo, parece uma
atração irresistível do povo: onde tem sangue, lá está o povão para
bisbilhotar. Coisa muito comum é engarrafamento no trânsito por causa dessa vampírica
bisbilhotice. Um carro batido, capotado ou atravessado é o bastante para que o
povo já diminua a marcha, a fim de ver o tamanho da desgraça. Hoje, com a
tecnologia, tudo fica mais fácil. Com o celular na mão, o povo não só satisfaz
seu gosto por desgraça, como ainda tem ocasião de botar seu ego na frente, postando
a desgraça no Facebook. Ah, e ainda conta com a chance de vender a notícia.
No caso da monstruosidade no Carrefour em Porto Alegre, quem não é
levado por sentimento doentio, mas por racionalidade, ao tomar conhecimento das
imagens da violência se pergunta: quem é que filmou isso?
Lá estava o povo: não só assistindo, servindo como plateia da
desgraça alheia, como filmando, para atender interesses seus. Ao invés de usar
o telefone para chamar a polícia, para pedir socorro, o povo estava lá naquele
palco público, satisfazendo suas emoções pela cena cruenta. Da caverna da
covardia, ninguém saiu para acabar com o cruel espetáculo. Se eram dois os
agressores, não haveria entre a plateia três machos dispostos a assumir o papel
de heróis?
Não. Macho? O que é isso? Isso é machismo. Hoje todo mundo é
igual. Desapareceu, para o povo, o substantivo masculino. Então, vamos ficar de
fora, só filmando.
E as imagens captadas correram pelo país inteiro, atiçando
paixões, revolvendo ódios, excitando aqueles que distinguem as criaturas pela
cor, mas contraditoriamente combatem o racismo, esse substantivo inventado para
expressar discriminação contra determinadas etnias. E daí, surgiu outra
violência, a do quebra-quebra, mas também carnaval, como sinal de “protesto”,
em plena pandemia, que ninguém é de ferro...
E a grande imprensa já correu atrás de opiniões. Gilmar Mendes,
Luiz Fux e Alexandre de Moraes, deixaram de ser juízes, para se misturar à
plateia. Encheram a boca de adjetivos para condenar a ação, fora dos autos,
emitindo opiniões, quando seu dever seria se reservarem para eventual
julgamento.
Enfim, esse é o povo: um ajuntamento de animais “não alados”, mas
volúveis. Ontem, esse ajuntamento pedia a libertação de Barrabás e a
crucificação de Jesus Cristo, hoje adora Jesus Cristo. O povo não passa disso:
um caniço agitado pelo vento soprado pelos Moisés da vida, que lhe prometem pão
e mel. Enquanto isso, para se distrair, vai construindo seus bezerros de ouro e
seus espetáculos circenses com a desgraça alheia. Lá vai, levantando cartazes
de “queremos Justiça”, porque ficaria feio escrever “queremos vingança”.