quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 

O ANIMAL VOLÚVEL

O cronista fez a seguinte definição de povo: um grupo de animais vertebrados, mamíferos, falantes, bípedes, não alados, mas volúveis, movidos a crenças, paixões, necessidades e interesses. Não deu outra. Três dias depois, um assassinato, praticado por tortura na via pública, servia como exemplo concreto dessa definição.

A doentia curiosidade por cenas cruentas, que é uma forma de paixão, já que a paixão não passa de emoções elevadas ao cubo, parece uma atração irresistível do povo: onde tem sangue, lá está o povão para bisbilhotar. Coisa muito comum é engarrafamento no trânsito por causa dessa vampírica bisbilhotice. Um carro batido, capotado ou atravessado é o bastante para que o povo já diminua a marcha, a fim de ver o tamanho da desgraça. Hoje, com a tecnologia, tudo fica mais fácil. Com o celular na mão, o povo não só satisfaz seu gosto por desgraça, como ainda tem ocasião de botar seu ego na frente, postando a desgraça no Facebook. Ah, e ainda conta com a chance de vender a notícia.

No caso da monstruosidade no Carrefour em Porto Alegre, quem não é levado por sentimento doentio, mas por racionalidade, ao tomar conhecimento das imagens da violência se pergunta: quem é que filmou isso?

Lá estava o povo: não só assistindo, servindo como plateia da desgraça alheia, como filmando, para atender interesses seus. Ao invés de usar o telefone para chamar a polícia, para pedir socorro, o povo estava lá naquele palco público, satisfazendo suas emoções pela cena cruenta. Da caverna da covardia, ninguém saiu para acabar com o cruel espetáculo. Se eram dois os agressores, não haveria entre a plateia três machos dispostos a assumir o papel de heróis?

Não. Macho? O que é isso? Isso é machismo. Hoje todo mundo é igual. Desapareceu, para o povo, o substantivo masculino. Então, vamos ficar de fora, só filmando.

E as imagens captadas correram pelo país inteiro, atiçando paixões, revolvendo ódios, excitando aqueles que distinguem as criaturas pela cor, mas contraditoriamente combatem o racismo, esse substantivo inventado para expressar discriminação contra determinadas etnias. E daí, surgiu outra violência, a do quebra-quebra, mas também carnaval, como sinal de “protesto”, em plena pandemia, que ninguém é de ferro...

E a grande imprensa já correu atrás de opiniões. Gilmar Mendes, Luiz Fux e Alexandre de Moraes, deixaram de ser juízes, para se misturar à plateia. Encheram a boca de adjetivos para condenar a ação, fora dos autos, emitindo opiniões, quando seu dever seria se reservarem para eventual julgamento.

Enfim, esse é o povo: um ajuntamento de animais “não alados”, mas volúveis. Ontem, esse ajuntamento pedia a libertação de Barrabás e a crucificação de Jesus Cristo, hoje adora Jesus Cristo. O povo não passa disso: um caniço agitado pelo vento soprado pelos Moisés da vida, que lhe prometem pão e mel. Enquanto isso, para se distrair, vai construindo seus bezerros de ouro e seus espetáculos circenses com a desgraça alheia. Lá vai, levantando cartazes de “queremos Justiça”, porque ficaria feio escrever “queremos vingança”.

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