sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

 

A TRANSFIGURAÇÃO DOS ONZE

 

Nunca, em sua história, a seleção brasileira de futebol conseguiu reunir onze Pelés, apesar de existirem milhões de brasileiros que têm intimidade com a bola e com ela mostrem habilidade de malabaristas.

 

E vocês acham que, alguma vez na vida, fez parte dos onze do STF, um único Pelé do Direito, apesar de existirem milhões de advogados, nessa terra de bacharéis?

 

Não, senhores. Gênio não dá em touceira. Criaturas dotadas de excelência em conhecimentos ou habilidades são raras. E a genialidade de Pelé – para ficar só no futebol – é uma prova disso. Transportando tais considerações para a composição do Supremo Tribunal Federal, a coisa fica pior ainda.

 

Para ser ministro, o que menos conta é a sabedoria. Notório saber jurídico e conduta ilibada não passam de vocábulos impressos na Constituição Federal. Dado fundamental que impera, na indicação de alguém para integrar o Supremo, é o apadrinhamento político. Depois, a “via crucis”. O candidato vai de gabinete em gabinete dos senadores, para pedir ajuda. Até se ajoelhar, se ajoelha, se preciso for. Mas, também valem festas de arromba, em iates.

 

A chamada “sabatina” perante o Senado não passa de encenação: o candidato, que conhece alguma coisa de Direito, é examinado por uma turma heterodoxa que sabe muito menos ainda. E, a partir daí, se abre o caminho da glória, da realização do sonho dourado, como se a toga tivesse o condão de transformar pessoas, de lhes plantar extremada excelência para julgarem defeitos alheios, ou uma sabedoria que exija o domínio de áreas com as quais nunca tiveram um mínimo instante de intimidade.

 

A hermenêutica e a dialética, por exemplo, exigem, de quem usa a toga da instância final, conhecimentos que beirem as virtudes de Rui Barbosa. Mas a primeira deficiência que trai o nível de cultura dos ministros é o desconhecimento do latim. A prolixidade de seus votos, a lenga-lenga repetitiva do “fulano disse isso, beltrano disse aquilo”, revela a dificuldade deles na síntese. Falta-lhes a estrutura da lógica, que só o latim, o grego e o alemão ensinam. Daí as dificuldades para encontrarem palavras que evitem orações sinuosas.

 

Então eles catam palavras no dicionário e contorcem as frases, coalhando-as de adjetivos e advérbios. Com esse linguajar, conseguem impressionar bocejantes leitores de livros de auto-ajuda, passando uma imagem de seres superiores, saciados de sabedoria, habitantes de páramos inatingíveis.

 

Tratados como se fossem a elite da intelectualidade na ciência jurídica, a nata da aristocracia dos sábios, eles não conseguem se esquivar desses eflúvios de grandeza.Tal espírito superior os afasta da realidade, do rés do chão da vida, e lhes sopra a sensação de que não são seres humanos tão frágeis como aqueles que lhes vêm suplicar justiça. Salvo se aparecer um desmiolado qualquer, um varejista de impropérios, lhes vomitando bravatas, ameaças e imprecações injuriosas. Aí o Estado encarna neles e os transfigura: transforma as vítimas em acusadores, juízes e legisladores, que criam o “mandado de prisão em flagrante”...

 

E o Legislativo, servil, engasgado pela ignorância jurídica, se dobra.

 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

 

A EMBRIAGUEZ DO PODER PROVOCA INDIGESTÃO 

Eram quatro indivíduos: dois condenados, protegidos pela presunção da inocência, um foragido, e um sem condenação, mas respondendo a processos por receptação, homicídio, porte ilegal de arma e roubo. Estavam a bordo de um automóvel furtado e clonado, no qual levavam uma submetralhadora, três pistolas 9mmm, carregadores de armas, munição calibre 9mmm, e coletes balísticos. Como não tinham aparência de anjinhos que acompanham andores de procissão, foram presos em flagrante. E, por reforço, a polícia pediu a prisão preventiva deles: vá que, na audiência de custódia, seus belos olhos servissem de argumento para relaxamento do flagrante...

 

Então aconteceu o seguinte: uma juíza deixou no xilindró três deles e liberou o quarto, circunavegando em sinuosa redação: “exceção se faça a Carlos Irajá, que, mesmo envolvido nesta prática delitiva - que envolve a apreensão de diversas armas de fogo (inclusive uma submetralhadora) e munição, coletes balísticos e outros apetrechos vinculados à prática delitiva organizada, detém, em seu benefício, a primariedade. Assim, tenho que ainda possível lhe seja concedida liberdade provisória cumulada com cautelares alternativas".

A cantilena do “bandido coitadinho” desafinou ao som dos “apetrechos vinculados à prática delitiva organizada”. Vista como desestímulo ao trabalho policial, a decisão judicial suscitou indignação nos órgãos de segurança.

Então o Judiciário veio dar satisfação pública. Afinal, a sociedade desassistida, refém do Direito aplicado pelo avesso, é quem banca subsídios e outros penduricalhos dos juízes.

"A decisão está bem fundamentada e adotou critérios jurídicos para a conclusão encontrada. Haverá concordâncias e discordâncias, naturais do processo jurídico-democrático, o que se dirime pela legítima via recursal, própria do sistema processual" - proclama, em socorro da juíza, o Conselho de Comunicação do TJ-RS, através do senhor Antonio Vinicius Amaro da Silveira.

Melhor seria que o Tribunal tivesse calado: a emenda arruinou ainda mais o soneto. O Conselho de Comunicação do TJ-RS não tem competência para analisar as decisões dos juízes. Não lhe cabe dizer se a sentença está bem ou mal fundamentada. Essa função é da alçada dos órgãos jurisdicionais. E mais: a decisão não está bem fundamentada, coisa nenhuma, porque escancara áspera contradição. Para ser bem fundamentado, o juízo de valor deve se estribar em premissas das quais a conclusão escorra naturalmente. Ora, os antecedentes do preso, a natureza do delito e os “apetrechos vinculados à pratica delitiva organizada”, são premissas que não levam a concluir senão pela conduta de agente virtualmente perigoso. Mas, a juíza “encontrou” outra conclusão: a “primariedade”.

O artigo 312 do Código de Processo Penal serve os juízes a cujo ego só o poder compraz. A lei lhes concede arbítrio para decidirem sobre a prisão preventiva, ainda que todas as circunstâncias salientem a inconveniência de manter o acusado em liberdade. Então, para não passar atestado de pobreza em silogismo, basta que o magistrado invoque esse dispositivo legal. Não precisa gastar seu vocabulário em dialética indigente. E saiba o Conselho de Comunicação do Tribunal de Justiça, desinformado na arte de tergiversar, que a força da lei dispensa outros “critérios jurídicos”.

 

 

 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

 

HACKERS HERÓIS, MORO ALGOZ E LULA, VÍTIMA?

 

O jornal Estadão tem insistido nas notícias sobre a decisão do Ricardo Lewandowski, que liberou para a defesa de Lula as invasões dos hackers nos celulares de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol. Na última delas, fez uma chamada insinuante: “mulher de Moro pede a Fachin revogação da liminar de Lewandowski que deu a Lula acesso às mensagens hackeadas de ex-juiz da Lava Jato”.

Mas, não se entregue a distorções. Não fique imaginando uma bela madame cruzando as pernas na frente de um embasbacado sexagenário. Trata-se de um procedimento chamado Reclamação, que só pode ser operado através de profissional de advocacia. Sérgio Moro constituiu sua procuradora a advogada Rosângela Moro. Se Rosângela é sua mulher, isso é irrelevante para o Direito.

Mas o que a redação do texto jornalístico deixa transparecer, é a mudança do tratamento que a imprensa passou a dar para Sérgio Moro. Foi na medida do exagero de virtudes que lhe foram atribuídas pelos meios de comunicação, que Moro apareceu aos olhos do povo como herói ou, mais que isso, como ídolo, digno de passar sob arcos de flores. E assim ele começou a ser encarado até fora do país, e admirado como refinada inteligência. Mas, agora alguns órgãos da imprensa querem desbarrancar seu ruidoso heroísmo, querem destroná-lo da glória.

A criatura humana não é de ferro. A química que opera no seu cérebro a submete mais às emoções do que ao gélido racionalismo. À medida que crescia sua fama de herói e seu nome andava de boca em boca como o homem de que a pátria precisava, para escorraçar a corrupção, Moro se sentia na obrigação de corresponder a essa expectativa. E a operação Lava a Jato, que passou a ser conhecida como “Lava Jato”, sendo saudada nos quatro cantos do país, lhe parecia o andor no qual ele seria levado aos píncaros da glória, antes que essa passasse como nuvens errantes.

Por conta disso se estreitaram os vínculos entre ele e Deltan Dallagnol. Sem a operosidade do procurador Dallagnol, o juiz Sérgio Moro não poderia corresponder às expectativas do povo.

Mas esse estreitamento de relações foi longe demais. O Ministério Público, representado por Dallagnol, deixou de ser parte processual, nas operações que investigavam o comprometimento de Lula com a corrupção, para ser um interlocutor do juiz. Ao invés de falar nos autos, o Ministério Público falava no celular. E aí, até sugestão sobre a inquirição de testemunha, recebeu de Sérgio Moro.

Esse deslize, noticiado no Estadão, pode enquadrar o juiz como suspeito, nos termos do inc. IV do artigo 254 do Código de Processo Penal. Sua aplicação, porém, sem o incidente processual da suspeição, é juridicamente insustentável. Acusado de suspeição, o juiz tem o direito à defesa, máxime contra provas ilícitas. Como haverá de se defender, quem já deixou de ser juiz?

Mas, há quem, movido a lufadas de autoritarismo ou perversidade política, já esteja deixando vazar a intenção de mostrar a Sérgio Moro a inutilidade da glória...

 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

 

SABES LER ? (II)

 

Deu na “Coluna do Estadão”: “o ministro aposentado Celso de Mello doou a biblioteca com 12 mil livros de seu antigo gabinete a um amigo de infância de Tatuí (SP), sua terra natal, mas fez questão de guardar consigo a toga usada nas sessões do STF”.

Sobre os livros o ex-decano não deu explicações. Mas, sobre a toga, falou assim para o jornal:  “é a mesma velha toga que usei até o fim e que me protegeu, em favor da comunidade, como indevassável escudo assegurador de minha independência funcional e de minha liberdade decisória nos julgamentos de que participei ao longo dos 31 anos em que integrei o STF”.

Fazendo as contas, chega-se à seguinte conclusão: se o senhor Celso de Mello lesse um dos livros de sua biblioteca por mês, em dez anos teria lido 120 livros e, em cem anos, 1.200. Se tivesse lido um livro a cada semana, leria 520 livros em dez anos e 5.200, em cem anos. Então, jamais leria os doze mil livros em toda sua vida. Por isso os doou: os livros só serviam de enfeite em sua biblioteca, e de motivo para exibir uma erudição de vitrine.

Sim, porque, da explicação que ele deu sobre a toga, se extrai a desconcertante revelação de que não foram muito úteis suas leituras. Talvez só tenha lido maus autores, que nunca lhe ensinaram a economizar adjetivos, para só usá-los adequadamente, com a finalidade de dar o necessário realce à qualidade do substantivo.

Ora, vejam: “a mesma velha toga”... “Mesmo” é um pronome demonstrativo, cuja função consiste em substituir algum termo empregado na oração anterior. Ao lado de “velha toga”, tal pronome demonstrativo não tem função gramatical alguma: torna-se um vocábulo ínútil, imprestável, só serve para soar mal nos ouvidos de quem domina o vernáculo. É um modo de falar próprio de quem tem dificuldades com a gramática...

“Indevassável escudo assegurador”... Nossa! Dois adjetivos para um substantivo, um ajuntamento de vocábulos que só presta como sopa de letrinhas. Um escudo é um escudo, e pronto. É o tipo de substantivo que se expressa por si próprio, sem necessidade de adjetivos. Em linguagem correta, só lhe cabem qualificações materiais: grande, pequeno, etc.

Além de colocar em destaque a hipertrofia do próprio ego, a expressão “me protegeu, em favor da comunidade, como indevassável escudo assegurador de minha independência funcional e de minha liberdade”, trai a pobreza do ex-ministro na criação de metáforas, apesar de ser ele possuidor de milionária biblioteca.

Toga nunca foi escudo. Muito menos, indevassável, pois ela não serve como proteção, nada garante, não consegue esconder vícios e erros. A toga não passa de símbolo, um símbolo que tenta emprestar respeito à Justiça. E quem a veste está preso ao dever de praticar essa justiça, dando a cada um o que é seu. Portanto, o verdadeiro juiz, o juiz cioso desse dever, não pode alardear que tem liberdade. Sua liberdade está limitada às alternativas que lhe proporcionam o caminho para a Justiça.