sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

 

SABES LER ? (II)

 

Deu na “Coluna do Estadão”: “o ministro aposentado Celso de Mello doou a biblioteca com 12 mil livros de seu antigo gabinete a um amigo de infância de Tatuí (SP), sua terra natal, mas fez questão de guardar consigo a toga usada nas sessões do STF”.

Sobre os livros o ex-decano não deu explicações. Mas, sobre a toga, falou assim para o jornal:  “é a mesma velha toga que usei até o fim e que me protegeu, em favor da comunidade, como indevassável escudo assegurador de minha independência funcional e de minha liberdade decisória nos julgamentos de que participei ao longo dos 31 anos em que integrei o STF”.

Fazendo as contas, chega-se à seguinte conclusão: se o senhor Celso de Mello lesse um dos livros de sua biblioteca por mês, em dez anos teria lido 120 livros e, em cem anos, 1.200. Se tivesse lido um livro a cada semana, leria 520 livros em dez anos e 5.200, em cem anos. Então, jamais leria os doze mil livros em toda sua vida. Por isso os doou: os livros só serviam de enfeite em sua biblioteca, e de motivo para exibir uma erudição de vitrine.

Sim, porque, da explicação que ele deu sobre a toga, se extrai a desconcertante revelação de que não foram muito úteis suas leituras. Talvez só tenha lido maus autores, que nunca lhe ensinaram a economizar adjetivos, para só usá-los adequadamente, com a finalidade de dar o necessário realce à qualidade do substantivo.

Ora, vejam: “a mesma velha toga”... “Mesmo” é um pronome demonstrativo, cuja função consiste em substituir algum termo empregado na oração anterior. Ao lado de “velha toga”, tal pronome demonstrativo não tem função gramatical alguma: torna-se um vocábulo ínútil, imprestável, só serve para soar mal nos ouvidos de quem domina o vernáculo. É um modo de falar próprio de quem tem dificuldades com a gramática...

“Indevassável escudo assegurador”... Nossa! Dois adjetivos para um substantivo, um ajuntamento de vocábulos que só presta como sopa de letrinhas. Um escudo é um escudo, e pronto. É o tipo de substantivo que se expressa por si próprio, sem necessidade de adjetivos. Em linguagem correta, só lhe cabem qualificações materiais: grande, pequeno, etc.

Além de colocar em destaque a hipertrofia do próprio ego, a expressão “me protegeu, em favor da comunidade, como indevassável escudo assegurador de minha independência funcional e de minha liberdade”, trai a pobreza do ex-ministro na criação de metáforas, apesar de ser ele possuidor de milionária biblioteca.

Toga nunca foi escudo. Muito menos, indevassável, pois ela não serve como proteção, nada garante, não consegue esconder vícios e erros. A toga não passa de símbolo, um símbolo que tenta emprestar respeito à Justiça. E quem a veste está preso ao dever de praticar essa justiça, dando a cada um o que é seu. Portanto, o verdadeiro juiz, o juiz cioso desse dever, não pode alardear que tem liberdade. Sua liberdade está limitada às alternativas que lhe proporcionam o caminho para a Justiça.

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