sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

 

A EMBRIAGUEZ DO PODER PROVOCA INDIGESTÃO 

Eram quatro indivíduos: dois condenados, protegidos pela presunção da inocência, um foragido, e um sem condenação, mas respondendo a processos por receptação, homicídio, porte ilegal de arma e roubo. Estavam a bordo de um automóvel furtado e clonado, no qual levavam uma submetralhadora, três pistolas 9mmm, carregadores de armas, munição calibre 9mmm, e coletes balísticos. Como não tinham aparência de anjinhos que acompanham andores de procissão, foram presos em flagrante. E, por reforço, a polícia pediu a prisão preventiva deles: vá que, na audiência de custódia, seus belos olhos servissem de argumento para relaxamento do flagrante...

 

Então aconteceu o seguinte: uma juíza deixou no xilindró três deles e liberou o quarto, circunavegando em sinuosa redação: “exceção se faça a Carlos Irajá, que, mesmo envolvido nesta prática delitiva - que envolve a apreensão de diversas armas de fogo (inclusive uma submetralhadora) e munição, coletes balísticos e outros apetrechos vinculados à prática delitiva organizada, detém, em seu benefício, a primariedade. Assim, tenho que ainda possível lhe seja concedida liberdade provisória cumulada com cautelares alternativas".

A cantilena do “bandido coitadinho” desafinou ao som dos “apetrechos vinculados à prática delitiva organizada”. Vista como desestímulo ao trabalho policial, a decisão judicial suscitou indignação nos órgãos de segurança.

Então o Judiciário veio dar satisfação pública. Afinal, a sociedade desassistida, refém do Direito aplicado pelo avesso, é quem banca subsídios e outros penduricalhos dos juízes.

"A decisão está bem fundamentada e adotou critérios jurídicos para a conclusão encontrada. Haverá concordâncias e discordâncias, naturais do processo jurídico-democrático, o que se dirime pela legítima via recursal, própria do sistema processual" - proclama, em socorro da juíza, o Conselho de Comunicação do TJ-RS, através do senhor Antonio Vinicius Amaro da Silveira.

Melhor seria que o Tribunal tivesse calado: a emenda arruinou ainda mais o soneto. O Conselho de Comunicação do TJ-RS não tem competência para analisar as decisões dos juízes. Não lhe cabe dizer se a sentença está bem ou mal fundamentada. Essa função é da alçada dos órgãos jurisdicionais. E mais: a decisão não está bem fundamentada, coisa nenhuma, porque escancara áspera contradição. Para ser bem fundamentado, o juízo de valor deve se estribar em premissas das quais a conclusão escorra naturalmente. Ora, os antecedentes do preso, a natureza do delito e os “apetrechos vinculados à pratica delitiva organizada”, são premissas que não levam a concluir senão pela conduta de agente virtualmente perigoso. Mas, a juíza “encontrou” outra conclusão: a “primariedade”.

O artigo 312 do Código de Processo Penal serve os juízes a cujo ego só o poder compraz. A lei lhes concede arbítrio para decidirem sobre a prisão preventiva, ainda que todas as circunstâncias salientem a inconveniência de manter o acusado em liberdade. Então, para não passar atestado de pobreza em silogismo, basta que o magistrado invoque esse dispositivo legal. Não precisa gastar seu vocabulário em dialética indigente. E saiba o Conselho de Comunicação do Tribunal de Justiça, desinformado na arte de tergiversar, que a força da lei dispensa outros “critérios jurídicos”.

 

 

 

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