E ENTRE AS VÍTIMAS, O AMOR
Foi
naquele outono em que perdi o cheiro de você, que tudo deixou de acontecer
entre nós. Lembro da tarde cinzenta, das rosas despetaladas, dos gerânios
entristecidos pela chuva. Ouço ainda o silêncio daqueles dias que pareciam sem
vida, emprestando à cidade um ar de cemitério abandonado.
Ninguém
falava outra coisa, senão da pandemia, do vírus, da ansiedade pela vacina.
Havia um canal de televisão onde só faltavam as trombetas da morte, chamando
vivos e mortos para o juízo final: tantas eram as notícias fúnebres e os avisos
aterrorizantes sobre o alastramento do vírus.
O
meu ganha-pão, até ali, me trazia prazer e alívio: a música. Tornava felizes as
criaturas, o povo que frequentava bares e restaurantes e, dessa felicidade
banal, extraía motivos de alegria, por me sentir útil. Mas, havia o outro lado,
o principal, claro. Era dali que eu tirava o sustento para a paixão que nos
havia enroscado há algum tempo. Com meus modestos ganhos e o teu salário mínimo
de balconista de padaria, a gente vivia bem, dentro dos limites de nossos
desejos.
Então
a gente se entregava aos frêmitos daquela paixão: eu me embriagava com seu
cheiro, aquele trazido por seus cabelos. Recém saída do banho, você os
enroscava no meu rosto. Então, línguas loucas se buscavam e com mãos sôfregas
viajávamos, um no corpo do outro. Depois do clímax, saciados, ficávamos
conversando coisas sem pé nem cabeça, um olhando para o outro, rindo à toa. E
eu sempre sentindo o cheiro de você.
Mas
sobreveio a época do terror maior. Aquele terror que esparramou o desespero,
tirando o pão da boca de muita gente, por conta da ideia de que, fechando tudo,
desde que o povo escondesse o nariz atrás da máscara, não mostrasse os dentes e
se entocasse em casa, o vírus sumiria.
Foi
quando fecharam bares e restaurantes, e o que passou a nos sustentar foi o teu
salário mínimo. Fui apenas um, dos muitos que ficaram sem trabalho: não havia
mais bailes, e os colegas, que outra coisa não sabiam fazer, senão alegrar a
vida dos outros, se embretaram na própria inutilidade. E o mundo, para nós,
músicos, foi mudando de rosto. Tudo foi ficando diferente. Eu, um inútil. E
você, embalando pãezinhos para delivery.
Então
aconteceu aquela tarde em que eu perdi o cheiro de você. E era exatamente o seu
cheiro que me fortalecia como macho. Na falta dele, me tornei simplesmente
imprestável para o amor, um zé ninguém na cama, um morto vivo, sem os recursos
básicos para dar continuação à vida em outra alma. E você, na hora, me
despediu. Nem me deu os trinta. Que eu saísse imediatamente, porque você não iria sustentar, com seu salário
mínimo, um vagabundo, traidor. Que eu fosse procurar a outra, a que se
refestelava comigo, enquanto você embalava pãezinhos.
Saí,
tossindo. Mas você, decerto, só na manhã seguinte quando, não sentindo o cheiro
dos cacetinhos recém saídos do forno, se deu conta do Covid...