sexta-feira, 26 de março de 2021

 

E ENTRE AS VÍTIMAS, O AMOR

Foi naquele outono em que perdi o cheiro de você, que tudo deixou de acontecer entre nós. Lembro da tarde cinzenta, das rosas despetaladas, dos gerânios entristecidos pela chuva. Ouço ainda o silêncio daqueles dias que pareciam sem vida, emprestando à cidade um ar de cemitério abandonado.

Ninguém falava outra coisa, senão da pandemia, do vírus, da ansiedade pela vacina. Havia um canal de televisão onde só faltavam as trombetas da morte, chamando vivos e mortos para o juízo final: tantas eram as notícias fúnebres e os avisos aterrorizantes sobre o alastramento do vírus.

O meu ganha-pão, até ali, me trazia prazer e alívio: a música. Tornava felizes as criaturas, o povo que frequentava bares e restaurantes e, dessa felicidade banal, extraía motivos de alegria, por me sentir útil. Mas, havia o outro lado, o principal, claro. Era dali que eu tirava o sustento para a paixão que nos havia enroscado há algum tempo. Com meus modestos ganhos e o teu salário mínimo de balconista de padaria, a gente vivia bem, dentro dos limites de nossos desejos.

Então a gente se entregava aos frêmitos daquela paixão: eu me embriagava com seu cheiro, aquele trazido por seus cabelos. Recém saída do banho, você os enroscava no meu rosto. Então, línguas loucas se buscavam e com mãos sôfregas viajávamos, um no corpo do outro. Depois do clímax, saciados, ficávamos conversando coisas sem pé nem cabeça, um olhando para o outro, rindo à toa. E eu sempre sentindo o cheiro de você.

Mas sobreveio a época do terror maior. Aquele terror que esparramou o desespero, tirando o pão da boca de muita gente, por conta da ideia de que, fechando tudo, desde que o povo escondesse o nariz atrás da máscara, não mostrasse os dentes e se entocasse em casa,  o vírus sumiria.

Foi quando fecharam bares e restaurantes, e o que passou a nos sustentar foi o teu salário mínimo. Fui apenas um, dos muitos que ficaram sem trabalho: não havia mais bailes, e os colegas, que outra coisa não sabiam fazer, senão alegrar a vida dos outros, se embretaram na própria inutilidade. E o mundo, para nós, músicos, foi mudando de rosto. Tudo foi ficando diferente. Eu, um inútil. E você, embalando pãezinhos para delivery.

Então aconteceu aquela tarde em que eu perdi o cheiro de você. E era exatamente o seu cheiro que me fortalecia como macho. Na falta dele, me tornei simplesmente imprestável para o amor, um zé ninguém na cama, um morto vivo, sem os recursos básicos para dar continuação à vida em outra alma. E você, na hora, me despediu. Nem me deu os trinta. Que eu saísse imediatamente, porque  você não iria sustentar, com seu salário mínimo, um vagabundo, traidor. Que eu fosse procurar a outra, a que se refestelava comigo, enquanto você embalava pãezinhos.

Saí, tossindo. Mas você, decerto, só na manhã seguinte quando, não sentindo o cheiro dos cacetinhos recém saídos do forno, se deu conta do Covid...

 

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