quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

 

O JÚRI

O incêndio da boate Kiss ganhou manchetes no mundo, mexeu com muita gente, fez rolar muita lágrima. Por longo tempo, os meios de comunicação, que acamparam em Santa Maria, colhendo notícias na fonte, mantiveram milhares de pessoas tensas, aflitas, incrédulas, revoltadas. Era impossível ficar indiferente diante de uma tragédia que roubou tantas vidas de um modo cruel, engendrado pela tortura da sufocação, do desespero e de outros tormentos que a morte enviou, antes de chegar.

Primeiro vieram as faíscas. Depois a fumaça e em seguida o pânico desencadeado pelo berro “fogo”. E a multidão que lá se aglomerava, tratou de fugir, mas foi acossada pela fumaça. Gritos e empurrões eram gerados pelo pavor de encontrar a morte, entre pessoas caídas e pisoteadas, antes de achar a única porta que permitiria a fuga para a vida.

Esse quadro, de um pavor infernal, que nem pela fértil imaginação de Dante Alighieri passaria, foi levado às manchetes, despertando a sensibilidade coletiva que está presente sempre, em qualquer desgraça. Imagine-se então quem foi mergulhado na dor, dominado pelo desespero da perda, dando de ombros para o mundo, para a vida, para tudo aquilo que não diga respeito ao ser amado que tombou sem ar, foi pisoteado e transformado em número, ficou exposto seminu, ou sem identidade, debaixo duma lona, no chão de uma praça de esportes...

De lá para cá se passaram oito anos, um tempo insuficiente para relegar ao esquecimento o tamanho da tragédia e da impressão por ela causada a quem quer que seja. Então, sobreveio o julgamento de pessoas diretamente envolvidas na tragédia: os donos da boate e dois participantes da banda, cujo show pirotécnico foi o aceno para o comparecimento da morte naquela casa de diversão.

Para muita gente, o espetáculo do julgamento foi outro show: o do quem com ferro fere, com ferro será ferido. Parentes das vítimas armaram barracas nos arredores do local do julgamento, para reavivar as cenas que atiçaram o pavor, a aflição e a comiseração em um número quase ilimitado de pessoas. E a um corpo de jurados a má interpretação do direito entregou o destino dos réus.

Juízos e tribunais, esquecidos de que ao Direito se empresta o apelido de “ciência”, confiaram a um grupo de leigos o deslinde de uma questão fundamentalmente técnica: o dolo eventual.

A incompetência do legislador, ao definir as atribuições do espetáculo teatral do júri, incluiu nelas essa questão, que transcende o fato, afasta a evidência do acontecimento e se aninha na peneira do raciocínio. Cabia ao Judiciário sanar o mal feito, interpretando restritivamente o dolo eventual.

Mas, não. A magistratura, que é paga para fazer justiça, se descartou do problema, dando uma de Pôncio Pilatos: botou a bronca no colo do povo. E aí, no  espetáculo do circo forense montado para o povo, não faltaram xingamentos, que lembravam guris prometendo se pegar na saída, nem um inacreditável depoimento de alma do outro mundo. Ao final, o que sobrou para povo foi dar palpites, que viraram “Justiça”.

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