quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

 

ELOGIOS BARATOS

O Estadão teceu uma coroa de louvores ao senhor Luiz Fachin, lhe atribuindo postura judicial essencialmente ética. Numa manifestação, o ministro teria ornado com retórica uma advertência supostamente dirigida a seus pares: “ao Direito o que é do Direito; à política o que é da política. É a filosofia do óbvio, própria para o consumo de plateias que guardam pouca intimidade com a erudição. No caso, são belos dizeres no conteúdo, mas absolutamente destoantes da obra de quem os proferiu. Diante delas não há quem não se lembre de um velho ditado: “façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço.”

Foi Fachin que, armando a seu jeito um artifício jurídico, preparou a volta do Lula para a política, donde esse, por força de sentença condenatória, havia sido ejetado. Fachin usou o avesso do Direito de tal modo, que a operação acabou botando Lula na disputa eleitoral.

Se conhecesse as lições do Direito Romano, que definem o Direito como “suum cuique tribuere”, Luiz Fachin teria dado realmente a cada um o que é seu: o Direito ao Direito; a política à política.

Mas, não foi o que aconteceu. Graças a um amálgama, que lembra mistura de urtiga com violeta, Fachin e sete de seus pares mudaram a história. Sim, oito ministros do STF, que se inflam à primeira grandeza de mestres do Direito, ignoraram solenemente o ABC das normas processuais penais às quais se submetem o instituto do Habeas Corpus e a exceção de incompetência. Então, declarando a incompetência do juizado de Curitiba, anularam os atos decisórios do processo a que lá respondia o Lula, incluindo a sentença condenatória, evidentemente. Em outras palavras: puxaram o Lula para fora do arrastão da Lava Jato, conduzida pelo então juiz Sérgio Moro.

Assim reza o artigo 111 do Código de Processo Penal: “As exceções serão processadas em autos apartados e não suspenderão, em regra, o andamento da ação penal”.

Isso quer dizer que a arguição de incompetência do juízo, sendo uma exceção, não se mistura com o conteúdo principal do processo, o mérito. Então ela deve ser julgada em separado, com todos seus trâmites independentes, inclusive os recursos.

A conclusão é extremamente simples: a incompetência só pode ser declarada por sentença no próprio processo e não em outro procedimento.

Há duas espécies de incompetência: a absoluta e a relativa. A primeira se torna indiscutível pela obviedade. Por exemplo, um juízo criminal julgando causando trabalhista. Já a incompetência relativa não é óbvia: ele depende de provas, exames, discussões, que demonstrarão qual, entre dois ou mais juízos, é o competente para a matéria.

Jamais a questão de incompetência relativa poderá ser resolvida mediante habeas corpus, porque nesse instituto só cabe exame de direito líquido e certo. A incompetência no processo do Lula era relativa, porque envolvia controvérsia sobre dois juízos: o de Curitiba e o de Brasília. O habeas corpus não era o lugar próprio para decidir o Direito. Ou seja, não foi dado ao Direito o que era dele,

 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

 

         EXPLICANDO O INEXPLICÁVEL

Na primeira infância, não há criança que, recriminada por algum mal feito, reconheça prontamente o erro e dê a mão à palmatória. Se houver, será uma raríssima exceção, porque a criança, que ainda não consegue raciocinar, obedece unicamente à lógica dos sentimentos. Quer dizer, são os sentimentos que lhe ditam todas e quaisquer respostas, quando inquirida ou instada a falar, expondo razões.

Bem servido foi, com tais pensamentos, o humor de quem leu, no Estadão, um artigo da lavra de Luís Roberto Barroso, intitulado “O STF que o Estadão não mostra”.

Para quem não sabe, ou não se lembra, o autor é o atual presidente do STF. Pois, o que aconteceu foi exatamente isso: recriminado o referido tribunal em vários editoriais do Estadão, mercê de atitudes, pronunciamentos ou decisões que soam mal, quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista da deontologia judiciária, veio a público o senhor Barroso dar suas explicações, em nome da instituição por ele presidida.

No espaço deixado pela escassez de razões, sobram sentimentos. O primeiro deles é o da injustiça, estampado no título do artigo “O STF que o Estadão não mostra”, e esclarecido pela queixa de que “não é justo criticar o Tribunal por aplicar a Constituição”.

Ora, o STF foi criticado por se desgarrar da Constituição, reivindicando papéis no melodrama político e social. E não são críticas genéricas, mas consubstanciadas em fatos amplamente conhecidos. Um dos muitos fatos conhecidos, e alvo das mais duras críticas, foi a imposição de uso de câmeras na farda de policiais. E a desculpa do Barroso se esfarrapou assim: “há quem ache que a violência policial descontrolada contra populações pobres é uma boa política de segurança pública. Mas não é o que está na Constituição”.

Nem podia estar na Constituição. A Constituição se limita a definir a competência da polícia. Abusos e violência são questões atinentes às leis penais. Se “não está na Constituição”, compete ao Legislativo, e não ao STF, a criação de normas de segurança. O Estadão criticou o STF pelo que ele não fez: zelar pela Constituição.

Ninguém conseguirá conter o riso, fustigado pelo deslumbre do senhor Barroso, que força a lembrança dos bons tempos de criança: “somos o tribunal mais transparente do mundo”. Quem se lembrar da madrasta da Branca de Neve, certamente adotará essa versão: espelho, espelho meu, haverá no mundo algum tribunal mais transparente do que eu?

O ministro quer aplausos. Mas, quem merece aplausos é o artista, que demonstra habilidade na execução da arte. Funcionário público não é artista. Não merece aplauso só por cumprir seu dever. O STF sofreu e sofre críticas por se ter refugiado na sombria ambivalência de legislador e juiz, usando o Direito para animar uma coreografia política. O dever do juiz é julgar, simplesmente julgar, adstrito à sua competência funcional, que não é fazer o bem, e muito menos o mal, como deixar morrer à míngua prisioneiros que estão sob sua custódia e que têm o direito fundamental à vida...

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

 

RANCOR E ZELO PELA DEMOCRACIA

Energúmenos os há em toda a parte, movidos por ideias de variados gêneros: sociais, políticos, religiosos, etc. Nisso se incluem sentimentos de natureza lúdica, como futebol, basquete, corridas automobilísticas, arte cinematográfica, novelas, e por aí vai. 

Nos últimos dias esse fanatismo apareceu em noticiários, crônicas, editoriais, a partir da premiação artística obtida por uma senhora chamada Fernanda Torres. Pelas manifestações se depreende que essa senhora é uma atriz cinematográfica. Certamente é muito conhecida por quem, não tendo domínio de leitura corrente para acompanhar legendas, prefere assistir a filmes brasileiros e novelas da Globo.

E, por falar nisso, a própria Globo acha que a premiação da atriz empolgou o país, como se fosse uma taça de campeão de futebol do mundo. Mas, se tudo se limitasse a essa idolatria, que nada representa e em nada corresponde às verdadeiras necessidades do povo brasileiro, tudo se desculparia por conta do elevado número de analfabetos funcionais neste país.

A imprensa carunchada, amamentada nas tetas do governo da hora, depois de consultar seu repertório de mágoas, laureou dona Fernanda como heroína da democracia. Acontece que, segundo dizem, o tal filme, fonte do prêmio, não passa de romanceada narrativa de fatos ocorridos na época do regime militar, em tempos idos.

Para Rosane de Oliveira, colunista de Zero Hora, “o retrato de uma família destroçada pelo arbítrio mostra o quanto é degradante para uma sociedade a supressão da democracia”. Mas essa afirmação serve como premissa para uma conclusão capenga. “Defender o arbítrio – diz a colunista - não é uma inocente manifestação de liberdade de expressão. É na verdade um crime passível de responsabilização penal, principalmente quando o equivocado posicionamento deriva para ações violentas como a invasão às sedes dos três poderes da República ocorrida em janeiro de 2023.”

Eliane Cantanhede, do Estadão, afina pelo mesmo diapasão: “Prêmio de Fernanda Torres a 3 dias do 2º ano do 8 de janeiro é um troféu à democracia”. E exalta a premiada atriz por “trazer o troféu justamente três dias antes de o (sic) aterrorizante 8 de janeiro de 2023 completar dois anos”.

Diz Cantanhede que “a PGR se prepara para denunciar quem e o que for denunciável, e o Supremo para julgar e punir”... E isso posto, conclui que “as instituições estão a postos para defender a democracia dentro da ordem e da legalidade”.

Dona Fernanda poderia ser elogiada sem alusões absurdas. Atores do “aterrorizante 8 de janeiro” acusados de “ações violentas” (faxineira com o rosário na mão, morador de rua, vendedor de algodão doce, manicure armada com pincel de batom) foram convocados pelo destino, sem direito a prêmios, para desempenharem papéis num processo penal instaurado com denúncia coletiva, direcionado para lotes humanos, sem o direito fundamental da individualização da pena. Longe de interpretar a “ordem e a legalidade”, determinadas na Constituição e no Código de Processo Penal, é um feito judicial contaminado por obscenidades processuais, jamais tratadas na história do direito brasileiro. Uma obra feita a capricho para figurar na Antologia da Infâmia.

 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

 

        A CONSTITUIÇÃO E O IDIOMA VIOLADOS

O problema do senhor Dias Toffoli é o seguinte: na expressão racional, ele se engasga com vocábulos e com a gramática do único idioma que lhe permite falar.

A crônica intitulada “O Repetente Piorou”, da lavra de Augusto Nunes na Revista Oeste, é uma verdadeira obra de arte literária, exprobrando o desastre linguístico e discursivo daquele senhor que, graças ao notório saber jurídico do Luiz Inácio da Silva, se tornou ministro do STF.

Para não dizerem que o brilhante jornalista exagerou na tinta, ele transcreve literalmente o palavrório que a língua do Toffoli expeliu, ao votar na questão da constitucionalidade do art. 19 da Lei do Marco Civil: “Esse caso, como todos sabem, mas para aqueles que desconhecem, que estão nos ouvindo, envolveu um editor que foi condenado por crime de racismo por divulgar livros de teor antissemita contra os judeus”.

Para quem conhece a gramática da língua portuguesa, a leitura desse ajuntamento de palavras, a partir da conjunção “mas”, dói nos ouvidos como um si bemol desafinado. A pobre conjunção está perdida na selva da inconsequente loquacidade do ministro: foi despida das funções que a gramática lhe atribui.

A partir dessa agressão à gramática, evidentemente, o palavreado do Toffoli não poderia ter desembocado em conclusão lógica, decorrente de científico silogismo jurídico. Principalmente depois de dar um puxão mais para baixo no seu nível de cultura, ao definir o transporte ferroviário como “meio de comunicação”...

O “caso do editor”, por ele citado, é exatamente a premissa que tira todo o vigor de sua conclusão, à luz da Constituição de 1988, que, no art. 5º, inc. IX, veda a censura. Se o editor foi punido pelo crime de racismo, cumpriu-se, rigorosamente, a ordem jurídica com a aplicação da lei penal. Como se tratava de recurso penal, o STF não poderia ter invocado “limites da liberdade de expressão” para condenar o recorrente. Se o fez, uma hermenêutica tão indigente não pode servir como didática. Além disso, a Lei do Marco Civil da Internet, que reforçou a vedação da censura prevista na Constituição, ainda não existia.

Assim reza o art. 19 da Lei acima referida: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

Onde está a “inconstitucionalidade” desse artigo, que tem como finalidade precípua garantir a liberdade de expressão e impedir a censura? Nele estão claros não só o enunciado verbal, como o espírito da Constituição, que estabelece como “fundamental” o direito de expressão.

Numa hora dessas é que se constata quão indispensáveis são o domínio da linguagem e alguns conhecimentos perfuntórios de dialética, para que a indigência de regras discursivas não se homizie no poder.