QUANDO A LAGOSTA É PRESSUPOSTO DE DIGNIDADE
João Eichbaum
Acintosas,
despropositadas, descosidas do tecido social brasileiro, e se servindo do
combalido tesouro nacional para sustentar quimeras, as “refeições
institucionais” do Supremo Tribunal Federal atiçam a ira do povo e alimentam o
desdém pelas instituições do país. Diante da força das redes sociais, será
muito difícil que o órgão máximo do Judiciário consiga o respeito pela lagosta
que lá comem. Principalmente porque, depois de digerida, ela se transforma
naquela matéria que nivela a todos: os com toga e os sem toga.
O responsável pela
cozinha, ops, pelo edital, cala solenemente sobre o assunto, como se cachaça
fosse só coisa de pobre. E quem defende a compra de “ bobó de camarão, camarão
à baiana, medalhões de lagosta com molho de manteiga queimada, bacalhau a Gomes
de Sá, frigideira de siri, moqueca e arroz de pato”, tudo devidamente
acompanhado com vinhos de premiação internacional, uísque e cachaça, o faz com argumentos pobres, que
funcionam como galhos secos para alimentar a fogueira das críticas.
Para cassar a liminar da
ação popular ajuizada pela deputada Carla Zambelli contra a licitação do STF, o
desembargador Kassio Marques atropelou as regras processuais, se entusiasmou
com a própria verborragia e foi direto ao mérito, prejulgando a causa, ao dizer
“que não considera que a licitação
se apresente lesiva à moralidade administrativa”.
E não contente com isso, sua excelência abriu mão do Direito e do
conceito de moralidade, para se deslumbrar com a estética gastronômico-social,
que rola nos estratos sociais onde o povo não tem acesso. Assim: “o pregão se
justifica por qualificar o STF a oferecer refeições institucionais às mais
graduadas autoridades nacionais e estrangeiras em compromissos oficiais nos
quais a própria dignidade da Instituição, obviamente, é exposta”.
Nessa linha de raciocínio - se é que se pode chamar de raciocínio a um
ajuntamento de substantivos e adjetivos atrelados a um inútil advérbio - não há lugar para o silogismo jurídico. O
Direito passa longe da cozinha, dos regabofes internacionais, dos prazeres da
carne, da gula refinada.
Se o que importa é “qualificar” (atente-se para o verbo) o Supremo
Tribunal Federal como excelente “chef” perante “graduadas autoridades nacionais
e estrangeiras”, estamos falando de temperos, ao redor de panelas e
frigideiras, e não sobre Direito.
Da construção do discurso do desembargador, que é do Piauí, se extrai,
sim, literalmente, a ideia de que a “dignidade da Instituição” depende de
lagostas, camarões, siris, e bacalhau regados a vinhos premiados
internacionalmente, a “cachaças de alta qualidade” e a “uísque envelhecido”,
para se firmar como objeto de respeito.
Depois disso, só quem tem muitos parafusos soltos, rolando debaixo do
couro cabeludo ou da careca encerada, se pode entregar à ilusão de que a
“dignidade da Instituição” verte da sabedoria, do juízo conspícuo, do
equilíbrio emocional, do espírito de justiça e da correta aplicação da lei.
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