sexta-feira, 17 de maio de 2019


QUANDO A LAGOSTA É PRESSUPOSTO DE DIGNIDADE
João Eichbaum

Acintosas, despropositadas, descosidas do tecido social brasileiro, e se servindo do combalido tesouro nacional para sustentar quimeras, as “refeições institucionais” do Supremo Tribunal Federal atiçam a ira do povo e alimentam o desdém pelas instituições do país. Diante da força das redes sociais, será muito difícil que o órgão máximo do Judiciário consiga o respeito pela lagosta que lá comem. Principalmente porque, depois de digerida, ela se transforma naquela matéria que nivela a todos: os com toga e os sem toga.

O responsável pela cozinha, ops, pelo edital, cala solenemente sobre o assunto, como se cachaça fosse só coisa de pobre. E quem defende a compra de “ bobó de camarão, camarão à baiana, medalhões de lagosta com molho de manteiga queimada, bacalhau a Gomes de Sá, frigideira de siri, moqueca e arroz de pato”, tudo devidamente acompanhado com vinhos de premiação internacional, uísque e cachaça, o faz com argumentos pobres, que funcionam como galhos secos para alimentar a fogueira das críticas.

Para cassar a liminar da ação popular ajuizada pela deputada Carla Zambelli contra a licitação do STF, o desembargador Kassio Marques atropelou as regras processuais, se entusiasmou com a própria verborragia e foi direto ao mérito, prejulgando a causa, ao dizer “que não considera que a licitação se apresente lesiva à moralidade administrativa”.

E não contente com isso, sua excelência abriu mão do Direito e do conceito de moralidade, para se deslumbrar com a estética gastronômico-social, que rola nos estratos sociais onde o povo não tem acesso. Assim: “o pregão se justifica por qualificar o STF a oferecer refeições institucionais às mais graduadas autoridades nacionais e estrangeiras em compromissos oficiais nos quais a própria dignidade da Instituição, obviamente, é exposta”. 

Nessa linha de raciocínio - se é que se pode chamar de raciocínio a um ajuntamento de substantivos e adjetivos atrelados a um inútil advérbio -  não há lugar para o silogismo jurídico. O Direito passa longe da cozinha, dos regabofes internacionais, dos prazeres da carne, da gula refinada.

Se o que importa é “qualificar” (atente-se para o verbo) o Supremo Tribunal Federal como excelente “chef” perante “graduadas autoridades nacionais e estrangeiras”, estamos falando de temperos, ao redor de panelas e frigideiras, e não sobre Direito.

Da construção do discurso do desembargador, que é do Piauí, se extrai, sim, literalmente, a ideia de que a “dignidade da Instituição” depende de lagostas, camarões, siris, e bacalhau regados a vinhos premiados internacionalmente, a “cachaças de alta qualidade” e a “uísque envelhecido”, para se firmar como objeto de respeito. 

Depois disso, só quem tem muitos parafusos soltos, rolando debaixo do couro cabeludo ou da careca encerada, se pode entregar à ilusão de que a “dignidade da Instituição” verte da sabedoria, do juízo conspícuo, do equilíbrio emocional, do espírito de justiça e da correta aplicação da lei.



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