O DISCURSO
João Eichbaum
Dizem por aí que a história do profeta Daniel
não é bem assim como a bíblia conta. Daniel tinha amigos e inimigos. Sendo
poderosos, seus inimigos convenceram o rei a meter o cara na cova dos leões,
para servir de repasto às feras. Lá o largaram de noite, mas no dia seguinte,
ao invés de restos de ossos esquartejados, encontraram o dito Daniel belo e
faceiro, sem leão nenhum ao redor, de bem com a vida. Aí achando que Daniel
tinha poderes miraculosos que desmanchavam a fome e a fúria de leões, lhe deram
liberdade, para não caírem noutra fria. Indagado por amigos como se livrara da
enrascada, Daniel confessou o segredo. “Fiz o seguinte: quando os leões
correram em minha direção, eu berrei mais alto que os rugidos deles: vocês
podem me comer, mas depois vai haver discursos”.
Ora, quem é que gosta de discursos? Quem é que
tem saco para ouvir políticos prometendo isso e aquilo, mundos e fundos, que a
vida vai melhorar que o salário vai subir, que não vai ter mais inflação e
outras frivolidades?
Leão não gosta de discurso. Mas boi gosta, para
dormir. Na contramão do senso comum,
terça-feira passada, pelo que se viu nas redes sociais, o Brasil parou para ver
e ouvir o Bolsonaro se apresentando na ONU. Por lá passaram vários presidentes brasileiros,
mas os discursos deles jamais foram vistos e ouvidos com tanta gana, torcida e
sem enfado como o discurso do Bolsonaro. Bolsonaro, na pior das hipóteses,
conseguiu uma coisa que nem a seleção brasileira de futebol, depois dos 7x1,
conseguiu: atrair tanto amigos como inimigos para a frente da televisão.
E depois do discurso, claro, choveram
comentários, pró e contra. Para os inimigos, Bolsonaro foi um fiasco, uma
vergonha. Imaginem, esse Brasil, rico, poderoso, cheio de gente ordeira, culta,
educadíssima, condescendente, que não joga lixo na rua, não recebe nem paga
propina, ser representado por um tipo assim, exatamente o inverso desse povo
refinado...
Já os amigos, ou seguidores, festejaram o
presidente como figura ímpar, brilhante, que desafiou poderosos, exigiu
respeito para o país e botou pra fora os podres dos canalhas do planeta, na
cara deles.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Quem
conhece o ramo sabe que existe uma diferença enorme entre ler um discurso e
fazer um discurso. O orador, aquele que faz o discurso, escolhe a postura, a
impostação de voz, teatraliza, encara a plateia, faz pausas que geram
expectativas. Mas quem apenas lê um discurso feito por outrem, sem poder
desviar os olhos de uma tela, jamais poderá ser visto como orador. Ele perde a
espontaneidade, não pode fixar a câmera, tem movimentos tolhidos pela atenção
que o deve prender à tela, é turvado pela iluminação.
Bolsonaro não discursou. Ele apenas leu um
discurso escrito por outrem, um discurso dizendo o que muitos brasileiros
gostariam de dizer e que a outros brasileiros repugna. Mas conseguiu um milagre
maior que o de Daniel: até os leões que o querem devorar, ouviram-no.
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