DO ANALFABETISMO FUNCIONAL
João Eichbaum
A
linguagem representa para o direito o mesmo que o cálculo representa para a
engenharia, e a anatomia para a medicina. O uso dela é que permite distinguir
os juristas dos palpiteiros. Quem não domina a linguagem, evidentemente não
pode dominar o Direito.
Então,
vejamos. “Culpado”, o que significa? “Culpado” é quem leva a culpa, por alguma
coisa. O dicionário Larousse Cultural trai pobreza exatamente cultural, ao
definir culpado também como “aquele que delinquiu”. E, pior ainda, como
“criminoso, réu, acusado”. A palavra “criminoso” envolve ignomínia,
desqualificação, rebaixamento moral, qualidades que o adjetivo “culpado”, em
sua acepção genuína, não sugere. “Réu” e “acusado”, sendo apenas sujeitos
passivos no processo penal, também não são sinônimos de “culpado”.
O
constituinte brasileiro empregou o adjetivo “culpado”, na redação do inc. LVII
do art. 5º, como antônimo de “inocente”: “ninguém será considerado culpado, até
o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Quer dizer, só condenada
definitivamente, em única ou em última instância, a pessoa perde o status da
inocência.
Quem
quer que não tenha tido sua cultura contaminada pelo vírus do analfabetismo
funcional entenderá o sentido do vocábulo “culpado”, no mencionado texto da
Constituição. Ele envolve o sentido de culpa e não de pena. Por mais que se
distorça o seu significado, por mais acrobacias intelectuais que se usem, essa
palavra jamais se confundirá com “prisão”, pela razão nua e crua de ter origem
etimológica no substantivo culpa.
A
prisão é tratada, na Constituição Federal, como instituto diverso da culpa, por
não estarem uma e outra ligadas entre si ontologicamente. Prisão não exige
culpa, nem culpa exige prisão. Nem todo o culpado deve ser necessariamente
preso. Um inocente pode ser preso até que sua inocência seja reconhecida por
sentença transitada em julgado. Ao estabelecer que ninguém seja preso “senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária
competente”, o inc. LXI do artigo 5º traça a diferença.
Então,
tanto o reconhecimento da culpa como a legalidade da prisão estão definidos na
Constituição em termos basilares distintos. O resto corre por conta da
legislação ordinária. E a legislação ordinária já previa, no art. 669 do
Decreto-Lei 3689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal, ou seja,
47 anos antes da Constituição Federal em vigor: “só depois de transitada em
julgado será exequível a sentença”. Quer dizer: o réu condenado só passará a
cumprir a pena, depois do trânsito em julgado da sentença. Mas nada impedirá
que permaneça preso, segundo o art. 5º, LXI da Constituição.
No
fundo, tudo parece piada: o réu está preso legalmente, mas não está cumprindo
pena. Pode? Pior: não está cumprindo, mas está cumprindo, porque o tempo de
prisão será computado na execução da pena.
A
barafunda do constituinte perdido corre por conta da democracia, que enfia
doutores e analfabetos no mesmo saco donde sai a lei. O apadrinhamento político
se encarrega das pantomimas jurídicas no STF. E nós pagamos para ter leis boas
e justiça sábia, mas nos metem goela abaixo gato por lebre.
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