sexta-feira, 17 de janeiro de 2020


 OUTRA VEZ O SENHOR TOFFOLI
João Eichbaum

A tal de NETFLIX deve ser uma empresa pobre, miserável, esbodegada nas finanças, em estado de agonia, à beira da falência. Em sua reclamação perante o STF, para exibir um filme chamado “A Primeira Tentação de Cristo”, deve ter despendido razões capazes de arrancar lágrimas, de desentranhar suspiros, de abalar sentimentos, de comover o universo. Ela conseguiu entortar as linhas do Direito no raciocínio de Dias Toffoli, esse mesmo senhor que, usando o poder devastador do Judiciário, complicou a vida dos indefesos brasileiros com o DPVAT.

“ A Primeira Tentação de Cristo” estava programada para uma exibição especial de Natal de um grupo que produz vídeos, chamado Porta dos Fundos. Diz-se que o filme escracha Jesus Cristo, apresentando-o como pederasta ou representando-o por um pederasta. Por esse motivo uma organização religiosa pediu e obteve em juízo a proibição do espetáculo.

Então sobreveio a reclamação da NETFLIX, que amoleceu o coração do ministro Dias Toffoli, produzindo efeitos no seu raciocínio. E tais foram esses efeitos, que o ministro esqueceu de tudo: da Constituição Federal, do Código de Processo Civil, do Código Penal, do rito do procedimento, e até do vernáculo.

Tratava-se de um pedido unilateral. Ora, o pedido de uma só das partes do processo pesa apenas sobre um dos pratos da balança da Justiça e prejudica o equilíbrio determinado pelo artigo 7º do Código de Processo Civil.

O pedido da NETFLIX se assentava na Constituição Federal, que proíbe censura. Mas a Constituição é confusa. O artigo 5º, inc. IX, assegura a liberdade de expressão artística, intelectual, etc. “independente de censura” e no art. 220 proíbe censura. Mas no inc. VI do artigo 5º estabelece também que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença”. Ah, e na Constituição está escrito que todos seus dispositivos foram promulgados “sob a proteção de Deus”.

Além disso, o Código Penal no art. 208, define como crime “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. E o Código de Processo Civil que no artigo 989, inc. I, no rito da reclamação, manda ouvir o autor do ato impugnado, no inc. II impõe uma condição: “se necessário”, ordenar “a suspensão do processo ou do ato impugnado, para evitar dano irreparável”.

Não se trata de direito líquido e certo contra a censura. Há dispositivos constitucionais que se entrechocam e, nesse embate, favorecem ambas as partes: de um lado a produtora que quer vender seu filme e, de outro, os cristãos que têm por violada sua crença, e vilipendiada a figura máxima da cristandade. Nesse quadro, não pode prevalecer a decisão individual de um membro do tribunal. O tema exige análise multifária.

E o pior é que a decisão de Dias Toffoli tropeça em primária interpretação de texto. Irreparável é o dano que não se pode reparar, que não há dinheiro que pague, que represente prejuízo irreversível. Então, que “dano irreparável” causaria à NETFLIX o adiamento da exibição do filme? Que “necessidade” teria pressionado sua liberação imediata? Só na cabeça do ministro escorrem razões que nenhuma lógica desvenda.





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