sexta-feira, 3 de abril de 2020



MUDANÇA NO CAMINHO DO CÉU
João Eichbaum

Quando a coisa começou a ficar preta na Itália, o papa Francisco expediu medida liminar de salvação: quem passar desta para a melhor, na carona do coronavirus, está com os pecados desde já perdoados.
Muita gente esfregou as mãos de contentamento, por não ter que pagar a entrada no céu com cochichos no confessionário. Principalmente os velhinhos que, pelo longo tempo vivido nessa terra, haveriam de ter uma lista interminável de pecados e pecadilhos anotados no livro tombo do paraíso, e não estavam dispostos a agarrar o demônio pelas guampas.
O incômodo de ter que botar nos tímpanos do padre, pigarrento e fedendo a cigarro, surtos de sem-vergonhice de ocasião, sempre foi difícil de engolir. Se fossem grandes pecados, como matar e roubar, tudo bem. Seria fácil, limpar a goela e arrotar grandeza no confessionário: “finei um sujeitinho que desatou louvores nos ouvidos da minha mulher, no concernente às secções retrasadas dela”. Ou, “aquele desfalque que dei na prefeitura foi um mal-entendido com a minha conta bancária, e os demais prejuízos que alastrei no povo como deputado, votando em favor do fundo eleitoral, correram mais na conta dos arreglos partidários do que por vontade própria. Além disso, a gente precisa tirar dinheiro do povo para amamentar a democracia”.
Sempre havia um jeito de tirar o corpo fora ou, no mínimo, de invocar o testemunho de Deus, de que não tinha sido má intenção.
Ah, mas as miudezas e variações do sexto e do nono mandamento já eram outras histórias. Andavam mais no raso, mais perto do sem-vergonhismo. E aí o gaguejo impedia de esmiuçar as circunstâncias, que o padre queria tirar a limpo: “como foi, foi em decúbito ventral ou decúbito dorsal, quantas vezes”?
Ah, grande papa esse, se antecipando ao julgamento de Deus e fornecendo carteirinha de inocente para entrar no céu, sem precisar desencravar pecados em ouvido de padre!
O único senão seria o da viagem para o céu nas asas do coronavirus. Aí encalhava o dilema: se o cavalo encilhado não passa duas vezes, teriam que aproveitar a ocasião? Ou esperar pelo fim do mundo?
Com o poder que esse papa tem, dispensando a vistoria do juízo final, para botar o pessoal do coronavírus na fila dos destinados à vida eterna, quem sabe dia desses ele revoga definitivamente a lei da confissão?
É claro que os velhinhos não iam se entregar assim, de graça, para a pandemia, em troca da salvação da alma, sem contar com mais uma oportunidade. De fato, começaram a aparecer sinais de mudanças. A internet passou a ser a casa de Deus, no lugar das igrejas. Depois, dispensado da semana santa, o povinho ficou em casa, deixando de pegar pau de andor com Jesus morto. O próximo passo poderia ser confissão pelo Whatsapp...
Pensando bem, os velhinhos apostaram nas futuras mudanças a caminho do céu, largaram de mão a carona do coronavirus e engrossaram as filas para a vacina da gripe. Aí, não houve vacina que chegasse.



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