MUDANÇA NO CAMINHO DO CÉU
João Eichbaum
Quando a coisa começou a ficar preta na Itália, o papa
Francisco expediu medida liminar de salvação: quem passar desta para a melhor,
na carona do coronavirus, está com os pecados desde já perdoados.
Muita gente esfregou as mãos de contentamento, por não ter
que pagar a entrada no céu com cochichos no confessionário. Principalmente os
velhinhos que, pelo longo tempo vivido nessa terra, haveriam de ter uma lista
interminável de pecados e pecadilhos anotados no livro tombo do paraíso, e não
estavam dispostos a agarrar o demônio pelas guampas.
O incômodo de ter que botar nos tímpanos do padre, pigarrento
e fedendo a cigarro, surtos de sem-vergonhice de ocasião, sempre foi difícil de
engolir. Se fossem grandes pecados, como matar e roubar, tudo bem. Seria fácil,
limpar a goela e arrotar grandeza no confessionário: “finei um sujeitinho que
desatou louvores nos ouvidos da minha mulher, no concernente às secções
retrasadas dela”. Ou, “aquele desfalque que dei na prefeitura foi um
mal-entendido com a minha conta bancária, e os demais prejuízos que alastrei no
povo como deputado, votando em favor do fundo eleitoral, correram mais na conta
dos arreglos partidários do que por vontade própria. Além disso, a gente precisa
tirar dinheiro do povo para amamentar a democracia”.
Sempre havia um jeito de tirar o corpo fora ou, no mínimo, de
invocar o testemunho de Deus, de que não tinha sido má intenção.
Ah, mas as miudezas e variações do sexto e do nono mandamento
já eram outras histórias. Andavam mais no raso, mais perto do sem-vergonhismo.
E aí o gaguejo impedia de esmiuçar as circunstâncias, que o padre queria tirar
a limpo: “como foi, foi em decúbito ventral ou decúbito dorsal, quantas vezes”?
Ah, grande papa esse, se antecipando ao julgamento de Deus e
fornecendo carteirinha de inocente para entrar no céu, sem precisar desencravar
pecados em ouvido de padre!
O único senão seria o da viagem para o céu nas asas do
coronavirus. Aí encalhava o dilema: se o cavalo encilhado não passa duas vezes,
teriam que aproveitar a ocasião? Ou esperar pelo fim do mundo?
Com o poder que esse papa tem, dispensando a vistoria do
juízo final, para botar o pessoal do coronavírus na fila dos destinados à vida
eterna, quem sabe dia desses ele revoga definitivamente a lei da confissão?
É claro que os velhinhos não iam se entregar assim, de graça,
para a pandemia, em troca da salvação da alma, sem contar com mais uma
oportunidade. De fato, começaram a aparecer sinais de mudanças. A internet
passou a ser a casa de Deus, no lugar das igrejas. Depois, dispensado da semana
santa, o povinho ficou em casa, deixando de pegar pau de andor com Jesus morto.
O próximo passo poderia ser confissão pelo Whatsapp...
Pensando bem, os velhinhos apostaram nas futuras mudanças a
caminho do céu, largaram de mão a carona do coronavirus e engrossaram as filas
para a vacina da gripe. Aí, não houve vacina que chegasse.
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