sexta-feira, 17 de abril de 2020


FÉ DEMAIS
João Eichbaum

O país está entregue a um pandemônio social e político. A grande imprensa não fala no coronavirus, sem falar no Bolsonaro, e não fala no Bolsonaro, sem falar no coronavirus. Decreta-se isolamento social, mas no detrás dele corre notícia da liberação de seiscentos pilas para quem precisa. Aí uma parte do povo se aglomera nas lotéricas e nos bancos para saber da grana. E outra parte, com a grana ou cartão no bolso, se aglomera no supermercado, para comprar ovo de páscoa e papel higiênico.

Desse cenário de basbaquice coletiva não destoa o decreto espiritual baixado pelo prefeito do município gaúcho de Sarandi, instituindo sete dias de orações, para exorcizar a pestilência, como se Sarandi fosse a Santa Sé. O decreto convida “a população sarandiense para orar durante uma semana, clamando por livramento de todo o mal e pela bênção do Senhor Deus sobre este município e sobre a nação brasileira”.

Não é ordem. É convite. Ninguém é obrigado a aceitar convite. E, para arredar dúvidas, se apresenta a ressalva: “independente de credo ou religião”. Juridicamente, portanto, a peça não se enquadra em qualquer conceito que represente exercício de poder. Não se faz convites através de decreto, nem se faz decreto em forma de convite. O Decreto-convite, ou Convite-decreto passa longe de qualquer forma de ato administrativo. Simplesmente não existe no mundo do Direito.

Largada a notícia, Zero Hora correu atrás de um “especialista”. Na quarentena, encontrou um professor de Direito, que botou em sua boca de doutor o seguinte embargo: “a medida fere o princípio laico da Constituição Federal”.

Pelo jeito, o doutor não passou vistoria no Preâmbulo da Constituição. O distinto ignora que ela foi promulgada “sob a proteção de Deus”, estando, por isso, muito longe de aninhar “princípio laico”. O Estado laico desconhece divindades.

E mais: é “inviolável a liberdade de consciência e de crença”, declara o art. 5º, inc. VI. E, agarrado no art. 150, inc. VI, letra “b” da Constituição Federal, um fruto bastardo da mancebia Igreja-Estado, reforça: é vedado “instituir impostos sobre templos de qualquer credo”. Principalmente esse rebento do adultério político de outros tempos impede que a separação entre as duas instituições seja considerada - como devia ser - absoluta.

A propalada “laicidade” do Estado não é princípio. Princípios são ideias basilares, alicerces filosóficos que sustentam alguma coisa. Mas, o Estado brasileiro, longe de se sustentar na laicidade, preserva a crença como um direito fundamental.

O decreto do prefeito, enfim, não pertence ao mundo do Direito e, por isso, não é prato para palpites de jurista. Nem no Direito Canônico ele encontra lugar: o vigário da cidade torceu o nariz quando teve conhecimento da peça.

Uma iniciativa desse porte só pode figurar no folclore da política brasileira, que tem sua história sovada por muitos surtos de mediocridade. A menos que o povo de Sarandi tenha mais prestígio no céu do que o Papa, cujas preces se perderam no caminho da eternidade e não contiveram o horror da peste sobre a Itália.


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