FÉ DEMAIS
João Eichbaum
O país está entregue a um pandemônio social e político. A
grande imprensa não fala no coronavirus, sem falar no Bolsonaro, e não fala no
Bolsonaro, sem falar no coronavirus. Decreta-se isolamento social, mas no
detrás dele corre notícia da liberação de seiscentos pilas para quem precisa.
Aí uma parte do povo se aglomera nas lotéricas e nos bancos para saber da
grana. E outra parte, com a grana ou cartão no bolso, se aglomera no
supermercado, para comprar ovo de páscoa e papel higiênico.
Desse cenário de basbaquice coletiva não destoa o decreto
espiritual baixado pelo prefeito do município gaúcho de Sarandi, instituindo
sete dias de orações, para exorcizar a pestilência, como se Sarandi fosse a
Santa Sé. O decreto convida “a população sarandiense para orar durante uma
semana, clamando por livramento de todo o mal e pela bênção do Senhor Deus
sobre este município e sobre a nação brasileira”.
Não é ordem. É convite. Ninguém é obrigado a aceitar convite.
E, para arredar dúvidas, se apresenta a ressalva: “independente de credo ou
religião”. Juridicamente, portanto, a peça não se enquadra em qualquer conceito
que represente exercício de poder. Não se faz convites através de decreto, nem
se faz decreto em forma de convite. O Decreto-convite, ou Convite-decreto passa
longe de qualquer forma de ato administrativo. Simplesmente não existe no mundo
do Direito.
Largada a notícia, Zero Hora correu atrás de um
“especialista”. Na quarentena, encontrou um professor de Direito, que botou em sua
boca de doutor o seguinte embargo: “a medida fere o princípio laico da
Constituição Federal”.
Pelo jeito, o doutor não passou vistoria no Preâmbulo da
Constituição. O distinto ignora que ela foi promulgada “sob a proteção de Deus”,
estando, por isso, muito longe de aninhar “princípio laico”. O Estado laico
desconhece divindades.
E mais: é “inviolável a liberdade de consciência e de
crença”, declara o art. 5º, inc. VI. E, agarrado no art. 150, inc. VI, letra
“b” da Constituição Federal, um fruto bastardo da mancebia Igreja-Estado,
reforça: é vedado “instituir impostos sobre templos de qualquer credo”. Principalmente
esse rebento do adultério político de outros tempos impede que a separação
entre as duas instituições seja considerada - como devia ser - absoluta.
A propalada “laicidade” do Estado não é princípio. Princípios
são ideias basilares, alicerces filosóficos que sustentam alguma coisa. Mas, o
Estado brasileiro, longe de se sustentar na laicidade, preserva a crença como
um direito fundamental.
O decreto do prefeito, enfim, não pertence ao mundo do
Direito e, por isso, não é prato para palpites de jurista. Nem no Direito
Canônico ele encontra lugar: o vigário da cidade torceu o nariz quando teve
conhecimento da peça.
Uma iniciativa desse porte só pode figurar no folclore da
política brasileira, que tem sua história sovada por muitos surtos de mediocridade.
A menos que o povo de Sarandi tenha mais prestígio no céu do que o Papa, cujas
preces se perderam no caminho da eternidade e não contiveram o horror da peste sobre
a Itália.
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