sexta-feira, 24 de abril de 2020


O ARTIGO 196
João Eichbaum
O finado Ulysses Guimarães e dezenas de outros, que abrigaram o traseiro na Assembleia Constituinte de 1988, escreveram o seguinte disparate na Constituição: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Olhe o tamanho da asneira: “a saúde é um direito garantido”. Quem é o Estado para nos dar um direito que só a natureza poderia dar, mas não dá? Se tivéssemos esse direito, seríamos imortais.

Pois, está aí o coronavirus que não deixa mentir: se instalou como quis, do jeito que quis e em quem ele quis, sem dar bola para o que diz a Constituição. Veio da China, pegou gente do governo, ministros, secretários. O vírus não fez distinção entre pobres e ricos, poderosos e miseráveis, famosos e anônimos. Ninguém se muniu da Constituição para dizer “eu fora, eu tenho direito à saúde, tenho o direito de não pegar o vírus”.

Viu a diferença? Direito à saúde, ninguém tem, porque somos feitos de matéria perecível, deteriorável, sujeita a defeitos de origem e a tempo de validade. Todos podemos ter, sim, o direito de proteção à saúde, para manter aceso nosso instinto de conservação. E, no máximo, o “direito de nos esconder em casa”, para fugir do vírus.
Faltou domínio do vernáculo, para a redação de um texto enxuto, depurado de circunlóquios, resguardado, pela síntese, contra mal entendidos. Bastaria uma norma básica, de natureza estritamente constitucional, assim: “incumbe ao Estado o dever de proteção e assistência à saúde de todos”. Ou os constituintes não sabiam que a todo o dever corresponde um direito?

Ao invés de um texto legislativo técnico, temos aí, no artigo 196 da Constituição, um penduricalho de quinze substantivos para dois verbos, maltratando a sintaxe. O nexo que os liga é a demagogia, costurada pela incompetência.
                                        
E, como a demagogia só serve para enganar, ela engana até hoje. Para ter seu “direito à saúde”, você vai para a fila do SUS, ou fica numa maca em corredores de hospitais à espera da morte ou do tratamento, ou paga duas vezes: o sistema oficial da Previdência e o plano particular. A realidade vivida pelo povo brasileiro é o retrato desse vernáculo empregado na Constituição, intragável, confuso, enfiado num labirinto, onde se esconde um falso direito.

Agora, sob o domínio do coronavirus, os destinos da pátria ficam entregues ao improviso, única disponibilidade do sistema. Primeiro, confiado a um blablabá muito parecido com o da Constituição. Mas, se serviu para distrair o povinho deslumbrado, o blablabá foi inútil para conter o vírus quando esse, pelos flancos, começou a ameaçar a economia. Aí, outra vez, o recurso foi o improviso: trocou-se o ministro bonitão do blábláblá da Saúde, por um sem beleza, mas com bom faro para negócios. Pronto. Só isso. Existirá alguma outra solução   num sistema corroído pela demagogia?


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