O ARTIGO 196
João Eichbaum
O finado Ulysses
Guimarães e dezenas de outros, que abrigaram o traseiro na Assembleia
Constituinte de 1988, escreveram o seguinte disparate na Constituição: “a saúde
é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação”.
Olhe o tamanho da
asneira: “a saúde é um direito garantido”. Quem é o Estado para nos dar um
direito que só a natureza poderia dar, mas não dá? Se tivéssemos esse direito,
seríamos imortais.
Pois,
está aí o coronavirus que não deixa mentir: se instalou como quis, do jeito que
quis e em quem ele quis, sem dar bola para o que diz a Constituição. Veio da
China, pegou gente do governo, ministros, secretários. O vírus não fez
distinção entre pobres e ricos, poderosos e miseráveis, famosos e anônimos.
Ninguém se muniu da Constituição para dizer “eu fora, eu tenho direito à saúde,
tenho o direito de não pegar o vírus”.
Viu a diferença? Direito
à saúde, ninguém tem, porque somos feitos de matéria perecível, deteriorável,
sujeita a defeitos de origem e a tempo de validade. Todos podemos ter, sim, o
direito de proteção à saúde, para manter aceso nosso instinto de conservação.
E, no máximo, o “direito de nos esconder em casa”, para fugir do vírus.
Faltou domínio do vernáculo, para a redação de um
texto enxuto, depurado de circunlóquios, resguardado, pela síntese, contra mal
entendidos. Bastaria uma norma básica, de natureza estritamente constitucional,
assim: “incumbe ao Estado o dever de proteção e assistência
à saúde de todos”. Ou os constituintes não sabiam que a todo o dever
corresponde um direito?
Ao invés de um texto
legislativo técnico, temos aí, no artigo 196 da Constituição, um penduricalho
de quinze substantivos para dois verbos, maltratando a sintaxe. O nexo que os
liga é a demagogia, costurada pela incompetência.
E, como a demagogia só
serve para enganar, ela engana até hoje. Para ter seu “direito à saúde”, você
vai para a fila do SUS, ou fica numa maca em corredores de hospitais à espera
da morte ou do tratamento, ou paga duas vezes: o sistema oficial da Previdência
e o plano particular. A realidade vivida pelo povo brasileiro é o retrato desse
vernáculo empregado na Constituição, intragável, confuso, enfiado num
labirinto, onde se esconde um falso direito.
Agora, sob o domínio do
coronavirus, os destinos da pátria ficam entregues ao improviso, única
disponibilidade do sistema. Primeiro, confiado a um blablabá muito parecido com
o da Constituição. Mas, se serviu para distrair o povinho deslumbrado, o
blablabá foi inútil para conter o vírus quando esse, pelos flancos, começou a
ameaçar a economia. Aí, outra vez, o recurso foi o improviso: trocou-se o
ministro bonitão do blábláblá da Saúde, por um sem beleza, mas com bom faro
para negócios. Pronto. Só isso. Existirá alguma outra solução num
sistema corroído pela demagogia?
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