quinta-feira, 23 de julho de 2020


SABE COM QUEM TÁ FALANDO?
João Eichbaum

O nome do desembargador Eduardo Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, encheu as manchetes dos jornais e a boca dos noticiaristas da Globo, na semana passada. O rechonchudo, pançudo e meio despecoçado senhor, saíra pelas ruas de Santos, no litoral paulista, sem o devido resguardo contra o coronavírus: de cara à mostra, sem proteção.

Acontece que lá, como em outras cidades do país, vigora o decreto da máscara. A liberdade de ir e vir está condicionada a uma ordem: só se pode ir e vir mascarado. Então, abordado por um guarda municipal, em razão do descumprimento do decreto, o desembargador sacou o documento do bolso traseiro e o brandiu na frente do nariz do guarda: “sabe com quem tá falando”?

O guarda não tugiu, nem mugiu, mas teve o atrevimento de chamar o desembargador de “cidadão”. Pra quê, minha gente, o togado subiu nos tamancos: “cidadão, não, você está falando com um desembargador”. Enquanto isso, sem mostrar a mínima impressão com o currículo do cidadão, que não se considera cidadão porque é desembargador, o guarda manteve a calma e começou a preencher a notificação de multa.

A pachorra do guarda atiçou ainda mais a ira do desembargador, que estava a ponto de largar fumaça azulada pelas ventas, diante de tanta falta de consideração. Aí, deu de mão no celular e chamou, ou fez que chamou, o secretário municipal de segurança. No diálogo, ou suposto diálogo, sobrou para o guarda, pela boca do desembargador que não se considera cidadão, um substantivo que, fazendo as vezes de adjetivo, serve para verrumar a auto-estima do atingido: “analfabeto”.

Nada disso mexeu com a bonomia do servidor municipal. Concluído o preenchimento da notificação, destacou a primeira via e a entregou ao togado. Esse, incontinenti, encarou o guarda com desprezo, fez pedacinhos do documento, e saiu com aquele andar de quem anda e defeca ao mesmo tempo.

O fato escandalizou o país. A falta de educação, o desprezo para com os mais humildes, a arrogância por se sentir mais do que os outros, arrancaram a revolta da população. Como pode um desembargador mostrar tal descaramento? Onde está a dignidade do cargo de juiz, que desanda em truculência, em desaforo barato?

Mas o povo desconhece a doença transmitida pelo vírus do poder, que é a “juizite”. Vestido de toga, o homem se sente entupido de poder, se torna juiz e senhor de vidas e destinos. Tanto na primeira instância como nos tribunais, ressalvadas honrosas exceções, grassa a epidemia. Os altos salários e a garantia de poder fazer bobagem toda a vida, chamada vitaliciedade, são os agentes desses surtos.

O abandono aos delírios do poder é quase uma rotina no Judiciário. É coçado pelo poder que o Supremo Tribunal Federal, com sua linguagem florida e seus arroubos de superioridade, rasga a Constituição e muda a jurisprudência, a cada nova verdade criada por ele.

E, no rabo desses balés de vaidades e infantis exibições de poder, vem pendurada a conta para o contribuinte.


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