SABE COM QUEM TÁ
FALANDO?
João Eichbaum
O nome do desembargador
Eduardo Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, encheu as manchetes dos
jornais e a boca dos noticiaristas da Globo, na semana passada. O rechonchudo,
pançudo e meio despecoçado senhor, saíra pelas ruas de Santos, no litoral
paulista, sem o devido resguardo contra o coronavírus: de cara à mostra, sem
proteção.
Acontece que lá, como
em outras cidades do país, vigora o decreto da máscara. A liberdade de ir e vir
está condicionada a uma ordem: só se pode ir e vir mascarado. Então, abordado
por um guarda municipal, em razão do descumprimento do decreto, o desembargador
sacou o documento do bolso traseiro e o brandiu na frente do nariz do guarda:
“sabe com quem tá falando”?
O guarda não tugiu, nem
mugiu, mas teve o atrevimento de chamar o desembargador de “cidadão”. Pra quê,
minha gente, o togado subiu nos tamancos: “cidadão, não, você está falando com
um desembargador”. Enquanto isso, sem mostrar a mínima impressão com o
currículo do cidadão, que não se considera cidadão porque é desembargador, o
guarda manteve a calma e começou a preencher a notificação de multa.
A pachorra do guarda
atiçou ainda mais a ira do desembargador, que estava a ponto de largar fumaça
azulada pelas ventas, diante de tanta falta de consideração. Aí, deu de mão no
celular e chamou, ou fez que chamou, o secretário municipal de segurança. No
diálogo, ou suposto diálogo, sobrou para o guarda, pela boca do desembargador
que não se considera cidadão, um substantivo que, fazendo as vezes de adjetivo,
serve para verrumar a auto-estima do atingido: “analfabeto”.
Nada disso mexeu com a
bonomia do servidor municipal. Concluído o preenchimento da notificação,
destacou a primeira via e a entregou ao togado. Esse, incontinenti, encarou o
guarda com desprezo, fez pedacinhos do documento, e saiu com aquele andar de
quem anda e defeca ao mesmo tempo.
O fato escandalizou o país.
A falta de educação, o desprezo para com os mais humildes, a arrogância por se
sentir mais do que os outros, arrancaram a revolta da população. Como pode um
desembargador mostrar tal descaramento? Onde está a dignidade do cargo de juiz,
que desanda em truculência, em desaforo barato?
Mas o povo desconhece a
doença transmitida pelo vírus do poder, que é a “juizite”. Vestido de toga, o
homem se sente entupido de poder, se torna juiz e senhor de vidas e destinos. Tanto
na primeira instância como nos tribunais, ressalvadas honrosas exceções, grassa
a epidemia. Os altos salários e a garantia de poder fazer bobagem toda a vida,
chamada vitaliciedade, são os agentes desses surtos.
O abandono aos delírios
do poder é quase uma rotina no Judiciário. É coçado pelo poder que o Supremo
Tribunal Federal, com sua linguagem florida e seus arroubos de superioridade, rasga
a Constituição e muda a jurisprudência, a cada nova verdade criada por ele.
E, no rabo desses balés
de vaidades e infantis exibições de poder, vem pendurada a conta para o
contribuinte.
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