sexta-feira, 23 de outubro de 2020

 

INCONGRUÊNCIAS E FIASCOS

De modo geral, o ser humano se considera bem mais importante do que ele realmente é. Filósofos e religiosos, fechando os olhos para a natureza animal dessa criatura, acabam lhe inculcando a ideia de que é um ente revestido de dignidade, com direito à vida eterna.

Distorcendo a realidade de que somos apenas uma espécie, a dos vertebrados bípedes falantes, pertencente ao gênero animal, se aproveitaram os mais ambiciosos, os menos escrupulosos, para estabelecer uma hierarquia. Essa hierarquia compreende uma casta armada que detém o poder, estabelecendo as regras para o estrato social inferior, desarmado. E isso tanto   no plano laico como no plano religioso.

Os que mandam, o fazem segundo suas conveniências; os que obedecem ficam nivelados pela régua da lei ou dos costumes impostos, como esse de amar a Deus, quando o que o homem mais ama, acima de todas as coisas, é a vida, sem nunca dispensar uma saidinha com a mulher do próximo.

No Brasil, esse quadro das diferenças entre servos e poderosos, tem se acentuado de forma escandalosa  ultimamente, com a vantagem de mostrar, para os servos, que os poderosos não são melhores do que ninguém, nivelados que estão, pela natureza animal, a todo mundo.

Acontece que as normas, as regras, o arcabouço do poder, enfim, têm suas falhas, seus furos, seus remendos, denunciando a fraqueza dos degraus da hierarquia.

No caso Marco Aurélio-André do Rap todas essas fraquezas vieram à tona. Alegando ter aplicado apenas a letra da lei, o ministro Marco Aurélio mandou soltar imediatamente a André do Rap, poderoso e endinheirado traficante.

A ordem de Marco Aurélio, mais do que estranheza, desatou clamor público, reação da qual os poderosos hoje não podem fugir, diante da força das redes sociais. O impacto então bateu em Luiz Fux, presidente do STF. Num esforço para salvar a honra da instituição, cassou os efeitos da medida decretada pelo colega, entregando ao pleno do tribunal o julgamento da questão.

Então vieram a furo vaidades, egoísmo, pobreza intelectual, ingredientes impróprios à composição do conceito de dignidade. O primeiro a exibir a chaga de sua vaidade atingida foi Marco Aurélio, recusando a Luiz Fux o status de instância superior à sua. Ao invés de se limitar a julgar o conflito, tornou-se um personagem dele, como vítima da decisão de Fux.

No plenário, foi discutida preliminarmente a legalidade do ato que suspendera a soltura do traficante. Na sua vez, Gilmar Mendes, com pose de catedrático, gastou duas horas para dizer que a medida de Fux não tinha amparo legal. Mas, acabou se expondo ao ridículo da incongruência:  aprovou o ato que havia considerado ilegal. Foi como se o advogado do diabo lhe tivesse assoprado que as evidências de seu discurso estavam manchadas de dúvidas.

Com exacerbada irresignação, só semelhante à de quem perde todas as fichas no jogo, Marco Aurélio protagonizou a vulgaridade do espetáculo. Como torcedor xingando o juiz, borrifava invectivas contra Fux. E pela TV Justiça, funcionando como esgoto a céu aberto, escorria a dignidade...

 

 

 

 

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