sexta-feira, 9 de outubro de 2020

 

O DOUTOR DE LA CORUÑA

 

Sabe aquele cara que, chegando com um sorríso amável, tão amável que parece antigo, de muitos tempos vividos, passados juntos, tipo gente de casa, ganha toda a confiança de você? Ele entra na sua vida como um raio de luz que jamais se apagará, põe ritmo no seu fôlego, acalma seu coração, põe você noutro mundo.

 

E quando ele começa a falar, você é arrastado, em poucos segundos, pela sensação de que o sujeito é aquela criatura enviada por Deus, para botar sua vida em ordem, para esquecer sua dor nas costas, para zerar o saldo negativo que você tem no banco, para encaixar tudo e não deixar nada fora do lugar. Então ele diz a que vem, depois de ter captado você nas redes da sedução, que ele maneja com perícia exemplar.

 

O galante, o conversador, o mágico da palavra e dono de um sorriso inimitável, não é nada mais, nada menos, do que um vendedor de plano funerário. E que foi contemplado por Deus com o dom da sedução. Então, ele, que veio arrastado pela tentativa de lhe vender um plano funerário, acaba, com calma e minúcias,  lhe vendendo três.

 

Sim, existe esse tipo. Existem encantadores de burro, como os há de serpentes. Existem aqueles que hipnotizam com um olhar, com um sorriso e depois deitam um verbo que desmoraliza qualquer contestação. Tanto existem que o Código Penal Brasileiro lhes dedica um capítulo inteiro.

 

Mas, nem todos os dotados pelo Espírito Santo com arte de cativar, enveredam pelo caminho do crime. Vender planos funerários, por exemplo, não é crime. Há os que aproveitam esse dom divino, para se dar bem na vida, sem fazer esforço.

 

Vejam o que aconteceu para Bolsonaro. Levado pelo piauiense Ciro Nogueira, líder do “Centrão” no Senado e enredado na Lava Jato, o seu conterrâneo, Kassio Marques, foi ao Palácio do Planalto pedir uma mãozinha do presidente para vestir toga de ministro do STJ. Carregava debaixo do braço o currículo, atestando pós-graduação em La Coruña. E chegou com aquele sorriso amável e o jeito de falar cativante. Em poucos minutos recebeu uma resposta que não esperava: seria indicado para o STF. Sucesso que nenhum vendedor de plano funerário sonhou.

O resto da história é conhecido. Os encantos do piauiense foram se alastrando. Chegaram ao Toffoli, e até ao sisudo Gilmar Mendes. Rolou rock, pizza, futebol do brasileirão na casa do Toffoli. E trocaram afetuosos abraços heterossexuais, pescoço com pescoço, a mão de um quase encostando na bunda do outro, Bolsonaro e Toffoli. Assim, terminaram em abraços, carícias e pizza as bravatas de um cabo e um soldado fechando o Supremo...

 

No beija-mão aos senadores, ritual enxertado nos pré-requisitos para se tornar ministro do STF, Kassio esmerilhou frases coleantes, respondeu com jeito de muçum ensaboado a temas como “lava jato” e prisão em segunda instância, distribuindo seus encantos. Kátia Abreu não escapou ao feitiço. Ignorando a inexistência do pós-graduação em La Coruña, a senadora se rendeu, suspirosa: “ele é carismático...”

 

 

 

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