quinta-feira, 29 de outubro de 2020

 LOCUÇÃO PREPOSITIVA

Em editorial intitulado “A Lei não é o Problema”, o jornal Estadão enaltece a decisão de Marco Aurélio, que mandou soltar o traficante André do Zap.  Diz o editorial que “as disposições legais vigentes não são apenas corretas, como essenciais...” E cita o parágrafo único do art. 316 do CPP: “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

São dois os problemas: a lei e os que não sabem ler. O aprendizado do idioma que não foi regado com boas leituras dá nisso. As pessoas juntam as letras e formam palavras. Mas, não entendem o texto, porque o léxico pobre as impede de gerir aquele processo de inteligência, que envolve conhecimentos gramaticais.

Que o povo fique só nas palavras, sem atinar com o verdadeiro sentido de sua expressão, vá lá. Mas que jornalistas não saibam joeirar gramaticalmente um texto, é imperdoável. Mesmo que tenham sido arrastados ingenuamente pela ilusão de que “notório saber jurídico” é a trena de medir toga de ministro do STF em senhores de augusta sabedoria.

Todo mundo sabe que não é bem assim. Todo o mundo sabe que, na selva da politicagem, a Constituição Federal é interpretada ao sabor de interesses pessoais ou de grupos, e que, para ser ministro do STF, requisito indispensável é só ter padrinhos no poder.

A locução prepositiva é uma expressão com função conectiva, destinada a ligar termos ou orações, fazendo as vezes de preposição. “Sob pena de” é uma locução prepositiva que significa “estar sujeito” a possíveis consequências.

Por exemplo, na entrada de uma caverna pode haver um cartaz assim: “não entre, sob pena de ser devorado por um leão”. Isso não quer dizer que haja um leão lá dentro. Tanto pode ser a morada de um leão, como um lugar habitualmente visitado por leões. Não quer dizer que basta entrar na caverna, para ser devorado por um leão. O leão pode estar dormindo, pode não ter dentes, pode estar saciado... Então, quem entrar lá “está sujeito”: estará se expondo a virar comida. Trata-se de advertência, e não de um juízo perfeito e acabado, tipo: entrou, tá ralado.

Se a redação do parágrafo único do art. 316 do CPP foi movida pela intenção que, no dispositivo, Marco Aurélio e os editorialistas leram, o legislador é ruim no vernáculo. Além de desconhecer o sentido da locução “sob pena de”, deixou a oração “tornar a prisão ilegal” à mercê de sujeito ambíguo, omitindo o reflexivo “se”, que definiria aquela função gramatical. E, sem técnica legislativa, emprestou natureza de perempção à inatividade judicial, criou outra prisão provisória, e enxertou um “de ofício” que exclui requerimentos.

Então é preciso dizer aos editorialistas do jornal Estadão que o problema está na lei, sim, na lei e nas pessoas que não sabem ler. Será que aqueles jornalistas e algum ministro do STF sabem o que é uma “locução prepositiva”?

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