sexta-feira, 7 de maio de 2021

 

NÃO HAVERÁ OUTRO DIA

As montanhas e  os vergéis de Vale Vêneto serão as mudas, mas eternas testemunhas de seus primeiros espetáculos. Foi lá que ele, ainda antes de se despedir da infância, deixou sua marca como jogador de futebol. Sereno, falando pouco e em voz baixa, era, fora das quatro linhas, o guri que grangeava a simpatia e a admiração dos colegas. Com um domínio de artista da bola, servia de caça para os  adversários, em campo. Era derrubado, levantava, mas não perdia a serenidade, não jogava fora aquela simpatia, em reclamações contra as faltas. Não poucas vezes, com arte e velocidade, driblava quem lhe vinha pela frente e nem o goleiro poupava: transpunha a goleira com a bola grudada no pé e simplesmente a encostava na rede.

O destino o levou para fora de Vale Vêneto. Ainda adolescente, jogou no Riograndense de Santa Maria e de lá veio para o Cruzeiro de Porto Alegre. Mas, uma curva que havia no caminho o levou para a Brigada Militar, onde cursou a academia, tornando-se oficial.

Dos encontros em Vale Vêneto nasceu uma amizade de irmãos. E o bar se tornou ponto de convergência para chopes e papos... Ah, o bar: lá, uma pilha de bolachas de chope era sinal de partida para falar dos sonhos, dos pesadelos, das firmes esperanças, das esperanças perdidas. Lá se vivificavam recordações dos tempos de futebol. Lá eram desfiadas as lembranças de quem se foi, dos companheiros que integraram nossas biografias em rusgas, vitórias, derrotas, desapontamentos...

 

Cofre de confidências, o bar desvendava confissões: de vergonhas que ocupariam um navio, a glórias que caberiam num dedal. Ou vice-versa. O bar! Só lá as conversas se permitiam desandar para temas mais dignos de quem tem uma montanha de bolachas à frente. Como os prazeres da vida, desatados pelas tias, conhecedoras das necessidades dos machos. Elas têm remédios para todos os males, e o jeito manso de lidar como mãe para os queixosos, ou como professora, para os aprendizes... Ah, as tias! Só elas sabem preparar a alma para os deleites do corpo e  transformar uma ilusão em realidade passageira. Como só elas sabem esvaziar bolsos, sem encher as almas de remorsos. E a gente morria de rir!

 

Até que apareceu o maldito Covid... Os bares fecharam. E todos os encontros passaram a ser apenas  esperanças, promessas. Sobretudo, promessas: quando tudo isso passar, a gente se encontra. Quando a vida voltar ao que era, vamos tomar todas. Vamos abandonar esse jeito de freira carmelita, vivendo encerrados e só saindo à rua, com o rosto encoberto, a voz amordaçada. Vamos deixar de ser irreconhecíveis para os amigos. Vamos deixar essa rotina sufocante, essa barbárie de viver a mesma coisa todos os dias.

Uma vida inteira foi ficando para depois. Mas, esse depois não aconteceu. Nada mais rolou, porque a morte chegou antes.

Só resta agora uma triste e dura certeza, coronel Odone Menuzzi: quando eu voltar ao bar, o sal das minhas lágrimas por ti vai estragar o chope.

 

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