NÃO HAVERÁ OUTRO DIA
As montanhas e os vergéis de Vale Vêneto serão as mudas, mas
eternas testemunhas de seus primeiros espetáculos. Foi lá que ele, ainda antes
de se despedir da infância, deixou sua marca como jogador de futebol. Sereno,
falando pouco e em voz baixa, era, fora das quatro linhas, o guri que grangeava
a simpatia e a admiração dos colegas. Com um domínio de artista da bola, servia
de caça para os adversários, em campo.
Era derrubado, levantava, mas não perdia a serenidade, não jogava fora aquela
simpatia, em reclamações contra as faltas. Não poucas vezes, com arte e
velocidade, driblava quem lhe vinha pela frente e nem o goleiro poupava:
transpunha a goleira com a bola grudada no pé e simplesmente a encostava na
rede.
O destino o levou para fora
de Vale Vêneto. Ainda adolescente, jogou no Riograndense de Santa Maria e de lá
veio para o Cruzeiro de Porto Alegre. Mas, uma curva que havia no caminho o
levou para a Brigada Militar, onde cursou a academia, tornando-se oficial.
Dos encontros em
Vale Vêneto nasceu uma amizade de irmãos. E o bar se tornou ponto de
convergência para chopes e papos... Ah, o bar: lá, uma pilha de bolachas de
chope era sinal de partida para falar dos sonhos, dos pesadelos, das firmes
esperanças, das esperanças perdidas. Lá se vivificavam recordações dos tempos
de futebol. Lá eram desfiadas as lembranças de quem se foi, dos companheiros
que integraram nossas biografias em rusgas, vitórias, derrotas,
desapontamentos...
Cofre de
confidências, o bar desvendava confissões: de vergonhas que ocupariam um navio,
a glórias que caberiam num dedal. Ou vice-versa. O bar! Só lá as conversas se
permitiam desandar para temas mais dignos de quem tem uma montanha de bolachas
à frente. Como os prazeres da vida, desatados pelas tias, conhecedoras das
necessidades dos machos. Elas têm remédios para todos os males, e o jeito manso
de lidar como mãe para os queixosos, ou como professora, para os aprendizes... Ah,
as tias! Só elas sabem preparar a alma para os deleites do corpo e transformar uma ilusão em realidade
passageira. Como só elas sabem esvaziar bolsos, sem encher as almas de
remorsos. E a gente morria de rir!
Até que apareceu
o maldito Covid... Os bares fecharam. E todos os encontros passaram a ser
apenas esperanças, promessas. Sobretudo,
promessas: quando tudo isso passar, a
gente se encontra. Quando a vida voltar ao que era, vamos tomar todas. Vamos
abandonar esse jeito de freira carmelita, vivendo encerrados e só saindo à rua,
com o rosto encoberto, a voz amordaçada. Vamos deixar de ser irreconhecíveis
para os amigos. Vamos deixar essa rotina sufocante, essa barbárie de viver a
mesma coisa todos os dias.
Uma vida inteira foi ficando
para depois. Mas, esse depois não aconteceu. Nada mais rolou, porque a morte
chegou antes.
Só resta agora uma triste e
dura certeza, coronel Odone Menuzzi: quando eu voltar ao bar, o sal das minhas
lágrimas por ti vai estragar o chope.
Nenhum comentário:
Postar um comentário