quinta-feira, 21 de abril de 2022

 

ENTRE A VIDA E A MORTE

Nunca é ao por do sol, ou ao cair da tarde. É sempre de manhã, logo que a cidade desperta, aos sábados, domingos e segundas-feiras. Lá estão elas, com o prego ardente do rancor cravado no coração, ruminando vingança e formando fila, para pegar ficha.

São as vítimas do espetáculo do desamor, do amor desfeito ou imperfeito, da paixão pelo homem errado: mulheres que apanham  do marido ou namorido. Esses, com o dinheiro da semana no bolso, a caminho de casa passam no boteco, onde entram antes do cair da tarde de sexta-feira, e donde são os últimos a sair, depois de encher a cabeça de cachaça.

Elas esperam ficha, para mostrar as banhas da barriga, as pernas cheias de varizes, os peitos caídos, as costas lanhadas. Algumas sabem por que apanharam, embora motivo outro não tenha tido  o agressor, senão a própria bebedeira, que lhe deu vontade de bater em alguém ou lhe sugeriu que algum safado andou pastando no seu belo gramado.

Mas, a maldade humana, a animalidade do homem, não se cristaliza nesses picos. A ressaca se encarrega de domar o animal. Há, porém, maldades que se eternizam, porque provocam uma revolta que jamais será debelada. E essas maldades não passam pela cabeça das mulheres que, se considerando as piores vítimas do macho, esperam, impacientes na fila, pela intercessão da  santa Maria da Penha.

Enquanto elas esperam, há uma criança que, lívida, entre soluços e sob o peso de indizível humilhação, expõe no seu corpinho inocente as marcas de uma atrocidade que lhe há de perseguir pela vida inteira: o abuso sexual. Ou de uma atrocidade pior, aquela que provoca a dor  da perda irresgatável: o corpo de uma criança teso, frio, expondo as entranhas dilaceradas por um crime da mesma natureza.

Enquanto elas esperam, está sendo dissecado um corpo crivado de balas, com projéteis escondidos entre camadas de gordura, alojados nos espaços intercostais, metidos no caminho entre o coração e os pulmões, além de perfurações de entrada e saída. Ou simplesmente retalhado a facadas.

Ah, e naquela fila de espera não faltam também as galhofadas e os efeitos desmoralizantes dos vomitórios de bêbados trazidos pela polícia.

Esse cenário de misérias físicas e morais exige o trabalho de criaturas  que saibam se despojar de sentimentos; que tenham estômago à prova de engulhos e olhos à prova de lágrimas, para lidar com desgraças engendradas pelo homem, esse animal dotado de inteligência, mas envenenado com maldade.

Só pessoas assim preparadas se podem colocar no lado oposto ao das fraquezas humanas: abrindo mão do descanso, do lazer, da convivência com a família, dia e noite, domingos e feriados, elas se entregam ao profissionalismo que contribui para a reparação dos vilipêndios.

Mas, a estafa advinda desse círculo infernal, que é o trabalho exigido pelas dores da vida e da morte, só encontrará recompensa na consciência de quem o realiza, porque ninguém quer ser levado - nem vivo, nem morto - à presença de médicos legistas.

 

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