ENTRE A VIDA E A MORTE
Nunca é ao por do sol, ou ao cair da tarde. É sempre
de manhã, logo que a cidade desperta, aos sábados, domingos e segundas-feiras.
Lá estão elas, com o prego ardente do rancor cravado no coração, ruminando
vingança e formando fila, para pegar ficha.
São as vítimas do espetáculo do desamor, do amor
desfeito ou imperfeito, da paixão pelo homem errado: mulheres que apanham do marido ou namorido. Esses, com o dinheiro
da semana no bolso, a caminho de casa passam no boteco, onde entram antes do
cair da tarde de sexta-feira, e donde são os últimos a sair, depois de encher a
cabeça de cachaça.
Elas esperam ficha, para mostrar as banhas da
barriga, as pernas cheias de varizes, os peitos caídos, as costas lanhadas.
Algumas sabem por que apanharam, embora motivo outro não tenha tido o agressor, senão a própria bebedeira, que
lhe deu vontade de bater em alguém ou lhe sugeriu que algum safado andou
pastando no seu belo gramado.
Mas, a maldade humana, a animalidade do homem, não se
cristaliza nesses picos. A ressaca se encarrega de domar o animal. Há, porém,
maldades que se eternizam, porque provocam uma revolta que jamais será
debelada. E essas maldades não passam pela cabeça das mulheres que, se
considerando as piores vítimas do macho, esperam, impacientes na fila, pela
intercessão da santa Maria da Penha.
Enquanto elas esperam, há uma criança que, lívida,
entre soluços e sob o peso de indizível humilhação, expõe no seu corpinho
inocente as marcas de uma atrocidade que lhe há de perseguir pela vida inteira:
o abuso sexual. Ou de uma atrocidade pior, aquela que provoca a dor da perda irresgatável: o corpo de uma criança
teso, frio, expondo as entranhas dilaceradas por um crime da mesma natureza.
Enquanto elas esperam, está sendo dissecado um corpo
crivado de balas, com projéteis escondidos entre camadas de gordura, alojados
nos espaços intercostais, metidos no caminho entre o coração e os pulmões, além
de perfurações de entrada e saída. Ou simplesmente retalhado a facadas.
Ah, e naquela fila de espera não faltam também as
galhofadas e os efeitos desmoralizantes dos vomitórios de bêbados trazidos pela
polícia.
Esse cenário de misérias físicas e morais exige o
trabalho de criaturas que saibam se
despojar de sentimentos; que tenham estômago à prova de engulhos e olhos à
prova de lágrimas, para lidar com desgraças engendradas pelo homem, esse animal
dotado de inteligência, mas envenenado com maldade.
Só pessoas assim preparadas se podem colocar no lado
oposto ao das fraquezas humanas: abrindo mão do descanso, do lazer, da
convivência com a família, dia e noite, domingos e feriados, elas se entregam
ao profissionalismo que contribui para a reparação dos vilipêndios.
Mas, a estafa advinda desse círculo infernal, que é o
trabalho exigido pelas dores da vida e da morte, só encontrará recompensa na
consciência de quem o realiza, porque ninguém quer ser levado - nem vivo, nem
morto - à presença de médicos legistas.
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