terça-feira, 29 de novembro de 2022

 

O VERNÁCULO MALTRATADO PELO JUDICIÁRIO


Matéria assinada por Sandra Denardin, no jornal Zero Hora, exalta a iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, editando “um guia de linguagem simples” destinado aos juízes. Segundo a jornalista, “o material, que está sendo distribuído para comarcas de todo o Estado do Rio Grande do Sul, traz uma série de orientações sobre como simplificar a linguagem utilizada tanto interna como externamente, a fim de facilitar a compreensão dos atos e das decisões e promover inclusão social, transparência e cidadania”.


Mas, além de servir como notícia, a matéria vem carregada de críticas. Para a jornalista, “o Poder Judiciário brasileiro, além de priorizar a linguagem técnica e rebuscada, mantém o uso de expressões em latim, em total dissonância com a realidade de seus jurisdicionados, os cidadãos brasileiros”. E a autora da matéria insta o Poder Judiciário a descer “do seu pedestal” e a “falar de igual para igual com o cidadão”.


Não é bem assim, porém. O que o Poder Judiciário menos usa é a linguagem técnica. Essa, a linguagem técnica é a da lei, a das expressões em termos estritamente jurídicos. A linguagem usada pelo Judiciário é o “dialeto juridiquês”, uma invencionice avessa a regras gramáticais básicas, como a sintaxe, e embebida em adjetivos e advérbios dos quais não se serve a lei, senão em casos estritamente necessários. E esse “dialeto juridiquês”, no qual se esbalda a jurisprudência, passa a léguas de distância da clareza e da concisão. Nele não há um espaço definido para o sujeito, o predicado e o complemento, que são a base da oração. Tais elementos da gramática somem no labirinto de prolixas e sonolentas lengalengas, que se instalam nos votos de desembargadores e ministros.


Para quem não domina perfeitamente o vernáculo, os termos rebuscados do “dialeto juridiquês” passam a falsa impressão de que se trata de linguagem jurídica. Mas, assim não é. Marcada pela propriedade, a linguagem do Direito não é labiríntica, tortuosa, hieroglífica.


Não deixa de ter razão a jornalista, quando critica o uso do latim. E isso, por uma razão muito simples: o emprego do latim por quem não domina o idioma de Cícero, não passa de linguajar de papagaio. É só repetição de quem ouviu aqueles sons, mas não sabe o que diz. O latim foi excluído do currículo escolar brasileiro há quase setenta anos. Juízes, desembargadores e ministros brasileiros, em sua maioria, nem era nascidos, quando a supressão do latim deu início à derrocada na arte de saber ler e escrever. Nenhum daqueles que militam na área jurídica do serviço público de hoje saberia conceituar o “ablativo absoluto”, ou apontar o sujeito, numa frase latina, identificando a declinação a que ele pertence, com o respectivo genitivo. E muito menos saberia conjugar o predicado.


Assim que, ao utilizarem o latim, os magistrados de hoje – não os de quarenta anos atrás – estão “em total dissonância” não só “com a realidade de seus jurisdicionados”, como diz a jornalista, mas também, com seu próprio saber.


quarta-feira, 16 de novembro de 2022

 

A NOTA DOS MILITARES, A ORDEM DO MORAES E O POVO


Para não parecerem omissas, mostrando-se indiferentes ao clamor de certos setores da sociedade, que se plantaram defronte aos quartéis pedindo “intervenção militar”, ou para que o seu silêncio não fosse interpretado como assentimento, as Forças Armadas se manifestaram.

A manifestação ocorreu, por ocasião da entrega do relatório da auditoria paralela, feita depois de alguma resistência do Tribunal Superior Eleitoral, primeiro sob as ordens de Edson Facchin e depois sob as ordens de Alexandre de Moraes. A entrega do referido relatório foi também exigência daquela Corte.

Em nota, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica “reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro, com a democracia e com a harmonia política e social do Brasil, ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras, nos mais importantes momentos da nossa história”. Mas traz também um sentido de advertência, nos seguintes termos: “ A Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional”.

A nota dos militares invoca a Lei 14.197, de 1º de setembro de 2021, cujo artigo 359-T exclui de conduta penal “a manifestação crítica aos poderes constitucionais...ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações, ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.

No mesmo dia, o ministro Alexandre de Moraes, agindo como se alguma lei lhe concedesse poder onipresente, exarou despacho que soou como um dar de ombros ao pensamento das Forças Armadas. Alexandre determinou a desobstrução de calçadas, acostamentos e logradouros públicos, no entorno de prédios públicos, além de estradas, em todo o território nacional. Para tanto, diz ele que “ a persistência de atos criminosos e antidemocráticos em todo o país, contrários à Democracia, ao estado de Direito, às Instituições, e à proclamação do resultado das Eleições Gerais de 2022... recomenda a EXTENSÃO DA DECISÃO CAUTELAR A QUAISQUER FATOS DESSA NATUREZA EM CURSO EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL...”

Atos criminosos e antidemocráticos” são termos genéricos, incabíveis em decisões judiciais. Não há na legislação penal crime algum, definido como “ato antidemocrático”. O fato criminoso tem que ser real, revelado por nomenclatura própria. “Não há crime, sem lei que o defina”, é um princípio básico de Direito Penal, acolhido pela Constituição brasileira. E o juiz deve analisar à luz da Lei Penal o fato que lhe é submetido, e não sob as falsas luzes da presunção. No caso, as manifestações populares se ajustam literalmente ao preceito invocado pelas Forças Armadas, preceito que não considera crime “ a manifestação crítica aos poderes Constitucionais... por meio de passeatas, reuniões, aglomerações”, etc.

Alardeia-se que vivemos numa democracia. Mas não há democracia sem povo. Só nas teocracias os “poderes constitucionais” estão nas mãos dos deuses.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

 

ILUSÕES COLETIVAS


É imensa, insuperável, a fraqueza do povo, traduzida em suscetibilidade às ilusões. E é dessa fraqueza que alguns se aproveitam para tirar da vida o que de melhor ela possa oferecer. Fé e fanatismo, não registrados nos dicionários como sinônimos, na verdade, na pura realidade, são sinônimos. A paixão por uma causa, tida depreciativamente como fanatismo, não é impulsionada senão pela crença de que vale a pena se debater por essa causa.

Há uma tríade, da qual poucos escapam: religião, futebol e política. A crença na primeira é o resultado da inconformidade do homem com sua natureza animal. Ele resiste à ideia de ser igual ao macaco, porque alguém espalhou por aí que só ele, homem, criatura feita “à imagem e semelhança de Deus”, tem duas coisas que macaco não tem: dignidade e alma eterna. E se tem alma eterna, ele se nega a acreditar que sua vida termine como a do macaco: em pó, ou cinza.

Por isso, negando a morte como um fim definitivo, um inimaginável número de religiões se espalha pelo mundo, oferecendo vida eterna, livre do enxofre e do fogo do inferno, em troca de alguma coisa. E é um negócio lucrativo. Se não o fosse, não haveria tantas religiões, não haveria templos suntuosos, pompa e luxo.

Já o futebol, longe de oferecer qualquer coisa que se assemelhe à eternidade, com gozo de uma vida sem fim, não encontra outra explicação para o fanatismo, além da fraqueza humana, da extrema sensibilidade da criatura humana para se submeter a ilusões. O torcedor, que desembolsa mensalidade ou paga a cada jogo a que comparecer, não tem outro retorno senão uma ilusão passageira de felicidade, dependendo de três limitadíssimas chances: seu clube só pode perder, ganhar ou empatar. Em compensação, há gente que tira proveito dessas ilusões: os jogadores, muitos dos quais enriquecem, adquirem fama, se tornam ídolos.

Da ilusão pela política o país viveu momentos marcantes nesses últimos quatro anos, entregue a uma espécie de delírio, senão loucura coletiva, que semeou discórdia, ódio, rupturas familiares, dividindo o país em duas facções.

O embate entre Jair Bolsonaro, resgatado do anonimato por cinquenta e sete milhões e oitocentos mil brasileiros em 2018, e Lula, tirado da cadeia e resgatado do exílio político, em 2021, por nove ministros do Supremo Tribunal Federal, mostrou até que ponto podem ir as fraquezas humanas.

O resultado das eleições, que proporcionou a vitória à facção liderada por Lula, mostrou, entre os que se sentiram derrotados, sentimentos que viajaram do abatimento pessoal à indignação. Essa, no primeiro momento, foi responsável por uma ameaça de colapso em todo o país, com bloqueio de estradas e tentativas de obstrução ao abastecimento de combustível. Sufocado esse movimento, emergiu então a crença nas Forças Armadas.

Empurradas pelo sentimento de que a Pátria é maior do que a Constituição, ou seja, maior do que o Estado, milhares de pessoas foram para a frente dos quartéis, pedindo intervenção militar. A resposta foi o silêncio, que tanto pode significar assentimento, como indiferença.










quarta-feira, 2 de novembro de 2022

 

UM CAPÍTULO DA HISTÓRIA: O PAÍS DIVIDIDO



Pouquíssimas vezes, em tempos vividos pelas atuais gerações, o Brasil sofreu impacto de tamanha ansiedade política, como nesse ano, e acentuadamente nos últimos meses.

Mergulhado que foi numa inflação arrasadora, de 80% ao mês, pelo desastroso governo Sarney, e transformado num grande Maranhão, o Brasil se socorreu do primeiro salvador da pátria que apareceu. E aí, do Maranhão que era, o país passou a ser governado como se fosse Alagoas. Da família Sarney, para a família Collor.

Fernando Collor de Melo, filho de um senador que, querendo matar um adversário, matara inocente colega dentro do Senado, se apresentou como “caçador de marajás”. Era tudo o que o povão queria: ver “marajás” da política no olho da rua, sofrendo o mesmo que o povo sofre, ou na cadeia, que é lugar de bandido.

E aí, feito presidente da república, o alagoano deu asas a seu deslumbramento. Fazia de tudo para ser aplaudido como um “show presidente”, popular, atlético e bonitão. E se gabava de morar na casa da Dinda. Mas, não sem antes tentar matar a inflação a pau. Para isso inventou uma tal de Zélia Cardoso de Mello, que passou a mão na poupança de todos os brasileiros e tornou o país completamente pobre, sem dinheiro, da noite para o dia.

Depois que um “impeachment” botou o “caçador de marajás” no olho da rua, a república passou para as mãos de um viúvo lá das Minas Gerais. Itamar Franco só tinha um defeito, aquele que torna imperfeito todo o bom macho: gostava de mulher. Mas, foi o único presidente que conseguiu domar o dragão da inflação, graças à equipe muito bem escolhida por seu ministro da Fazenda, o socialista Fernando Henrique Cardoso.

Claro, FHC foi o próximo presidente, e deu chance para que seus companheiros, como ele fugitivos ou banidos do país, retornassem ao bom viver da política. Nessa procissão socialista, tomou lugar no andor o sindicalista Lula, falastrão, sedutor e matreiro, que saiu do chão de fábrica para a cadeira de presidente da república. E aí foi o que foi: o Estado se agigantou, se tornou o pai e a mãe dos pobres, num torvelinho de “mensalões” e “lava-jatos”, gerados nos treze anos de governo petista, encerrados por um descendente de libanês, flagrado em conversas de porão com um corruptor.

O clamor contra a corrupção chegou aos ouvidos do capitão Bolsonaro. Voluntarioso, sem travas na língua, Bolsonaro tornou-se “mito”. Tentou governar o país do seu jeito, mas foi barrado pelo STF e pela grande imprensa, e conseguiu dividir o Brasil pelo meio, quando o senhor Fachin puxou Lula para fora da cadeia e do exílio político.

Dividido ao meio, o país foi assolado por um tsunami político que, fomentando ódio, destruindo amizades, trazendo azedumes e desconfortos para muitas famílias, atingiu quase toda população.

E, no rescaldo da segunda-feira, a única certeza que restou foi a de que o Brasil continuará dividido: os que trabalham, pagando a conta dos que não pagam imposto.

domingo, 9 de outubro de 2022

 O PODER DO CRIME

Alguém já disse - e com muita propriedade - que o crime não é organizado, mas o Estado é que é desorganizado. E a explicação para isso é de natureza antropológica. É o caráter da pessoa, seus dotes pessoais,  propensões e desejos que a levam a decidir sobre os rumos que tomará seu destino.

Nem todo o mundo é mentiroso. Nem todo mundo tem cara de pau, para prometer mundos e fundos, sabendo que nada pode fazer. Nem todo mundo consegue adquirir poder, através de apadrinhamento ou de cruzinhas em questionários sobre Direito. Pois o Estado é desorganizado por isso, porque na sua composição ingressa gente de todos os tipos e propensões, carregados por um ego que não abre mão dos seus desejos. Resultado: o Estado não é uma instituição abstrata, mas um ajuntamento de egos, cujas idiossincrasias repelem sua subsunção pelo cargo e pelas funções. Muitos até se julgam superiores ao cargo que ocupam.

Então, se os fatores da multiplicação são egos, o produto não pode ser senão uma desorganização chamada Estado.

O caráter e as propensões das pessoas que se tornam criminosos profissionais são os mesmos. O crime, em si, é o plasma social que os identifica. Por isso eles se tornam fortes, e muitas vezes superiores ao Estado. Esse, diluído em egos e propensões divididas, mostra suas faces contraditórias:  concede  direito de liberdade ao criminoso, negando, ao mesmo tempo,  à sua vítima, o direito à segurança.

Na semana passada foram divulgados artifícios usados pelo crime para enganar o Estado. Moradores de um condomínio em Canoas entregaram à polícia um áudio, no qual  um chefe de quadrilha, programando o afastamento de policiais militares por acusações de violência, exorta seus comparsas a se autolesionarem. Essa notícia levou a pensar que tais artifícios sejam usados na “audiência de custódia”, uma  pantomima processual criada “por recomendação” do Conselho Nacional de Justiça, mercê da qual criminosos são libertados.

Chamado a se pronunciar, o Tribunal de Justiça do RS se manifestou através do Presidente do Conselho de Comunicação. Para começar, o desembargador exaltou a “audiência de custódia” como “uma conquista da sociedade”. A seguir, confirmou, com espantosa naturalidade, o que já se esperava: nas 4. 836 audiências de custódia realizadas, foram mantidos presos 2.112, e soltos 2.724. Isso, em números estatísticos, representa maioria absoluta, demonstrando o percentual de 44% de prisões e 56% de solturas.

O desembargador não disse em nome de que sociedade ele falava. Não apresentou procuração. De boas, más e mornas sociedades, o país está cheio. Com toda certeza, não foi em nome da sociedade que banca os gordos salários, a que se atrelam penduricalhos com cifrão, para Judiciário. Essa sociedade, composta por cidadãos desarmados, quer se ver livre de criminosos, e não criminosos livres.~

Mas, enfim, num país que para contemplar políticos com subvenções bilionárias, se serve do suor, do trabalho e das privações dos pagadores de imposto, nada mais natural do que o poder do crime sobre o Estado, revelado em chocantes números.

           

terça-feira, 4 de outubro de 2022

 

BEZERROS DE OURO

Nenhuma livro desenha tão bem o povo como a bíblia. A descrição da fuga do Egito, em busca da terra prometida, onde vertia leite e mel, é perfeita. Ela mostra, numa resenha ideal, o que é o povo, principalmente quando a turba está reunida, quer físicamente, quer unida por objetivos comuns, cuja perseguição é regulamentada por limites de tempo e áreas físicas.

Na fuga para o Egito, descrita na bíblia sob o nome de Êxodo, se tratava de uma reunião física, um modelo perfeito para retratar esse animal da espécie humana. Para começar, para traçar os objetivos do movimento, claro, era necessário um líder, porque manada nenhuma sai em busca de alguma coisa sem alguém a quem deva seguir. E aí apareceu o primeiro líder de que se tem notícia na história da humanidade: Moisés.

E quem era Moisés? Segundo suas próprias palavras, para exibir sua identidade, se disse enviado por Javé, o deus judaico, que o havia encarregado dessa longa excursão da qual participaria o povo, para se livrar do regime de escravidão, a que estava submetido no Egito.

Mas, na verdade, Moisés não tinha folha corrida muito limpa. Moisés era um homicida. Homicida por legítima, ou supostamente legítima defesa de terceiro. Matara um egípcio, que estava infligindo maus tratos a um judeu. E a partir daí começou a dar sinais de liderança contra a escravidão dos judeus. Perante Javé, certamente, não passavam despercebidas essas condições indispensáveis para chefiar aquela aventura. E parece também que aquela divindade não ligava muito para esse negócio de ficha limpa.

O resto da história mostra como se comporta o povo, principalmente quando reunido em grupo. Nessas circunstâncias, as individualidades começam a despontar, mostrando as fraquezas, as exigências do ego, a voluptuosidade e, principalmente, a volubilidade, que o levou a substituir Javé por um bezerro de ouro.

Essa história serve para mostrar que, de lá para cá, o povo nunca mudou. Seu comportamento é o mesmo, suas reações são idênticas. E nessas características pontifica a volubilidade: volta e meia constrói bezerros de ouro, para os quais oferece sua submissão, sua idolatria. E quando aquele bezerro de ouro deixa de lhe cair no gosto, constrói outro, e quando esse outro não atende plenamente às exigências de sua animalidade, volta a buscar o primeiro. E assim vai levando a vida, trocando um bezerro por outro.

Essas mudanças têm causas diversas, porque os egos não são exatamente iguais. Não são medidos pelas mesmas réguas todos os desejos, todos os tipos de volúpia. Alguns são impelidos por afinidades de crenças ou de ideias, outros pela ambição, outros pelas simples necessidades animais, como as da barriga.

O retrato das eleições não produziu imagem diferente daquela que sempre mostrou o que é e como se comporta o povo: nunca se sabe o que realmente ele quer, tamanha e tão forte é sua volubilidade. É como figurante, nesse picadeiro da democracia, chamado “eleições”, que ele escolhe seus bezerros de ouro. Esses, tanto podem ser Lula, como Sérgio Moro.

 

 

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

 

A DECADÊNCIA

Por interesses econômicos, disfarçados com o nome de políticos ou religiosos, o povão, massa de manobra, é usado como instrumento para a criação de mitos. Alguns, principalmente os religiosos, passam de geração em geração, porque o homem, por medo da morte, prefere acreditar na vida eterna. E bezerros ou cordeiros que rendem ouro se eternizam, por conta dessa felicidade adiada. O mesmo não acontece com os mitos criados à conta de interesses políticos. Não são necessárias mais do que duas  ou três gerações, para que sejam esquecidos.

Getúlio Vargas foi um desses mitos políticos brasileiros. Mito em vida e mito na morte. Seu suicídio desencadeou ondas violentas de fanatismo, atiçou paixões. Bustos, monumentos e toda a sorte de obras que pudessem reconstruir sua memória como marcos de uma história, surgiram por toda a parte. A mais famosa dessas obras foi a chamada “carta-testamento”, que ele teria escrito, antes de se disparar um tiro mortal no coração. Em Porto Alegre, na praça da Alfândega, foi instalada, com todas as pompas e circunstâncias, uma réplica dessa carta, em bronze. O troféu ali permaneceu intacto, durante algumas décadas, enquanto estava viva naquela, e na geração seguinte, a imagem de mito que Getúlio inspirara no povo. Mas, como a fila anda e a história vai ficando no esquecimento, algum tempo depois, o traféu desapareceu.

 Teria sido furtado por algum idólatra do ilustre morto, para tê-lo só para si? Ou teria sido obra de um meliante barato, que só viu nele o alto valor comercial do bronze? Pelo sim, pelo não, a réplica foi refeita, dessa vez em aço, e recolocada  no local que lhe fora destinado. Mas, para desgosto dos poucos remanescentes do fanatismo por Getúlio Vargas, novamente o troféu foi parar em mãos alheias. Outra réplica, então, foi criada, para que o político nascido em São Borja não perdesse o lugar na praça. Dessa feita, o material usado foi metal de valor pífio, sem qualificação para o mercado. Pois, não é que, na semana passada, ia se repetindo a subtração da peça?

Não fosse a intervenção de um segurança, a placa teria sido levada por um meliante sem noção de nada: nem de valor histórico, nem de valor econômico. Metade dela já estava nas mãos do ladrãozinho, quando o segurança - que não pertencia ao órgão oficial ao qual incumbe zelar pelo patrimônio público, mas sim a uma instituição privada - interferiu.

Esse fato serve para revelar que decadência do homem, como animal racional, parece irreversível. Quando os próprios ladrões perdem a noção do valor de mercado das coisas, é porque estamos regredindo, em todos os sentidos. Parece que a imoralidade  vem se impondo como valor maior.

Não raramente nos deparamos com o potencial da imoralidade nas instituições que representam o braço da soberania. Na axiologia do Judiciário, por artifícios de hermenêutica, a moralidade é posposta às formas processuais. E no que toca ao Poder Legislativo, jamais se encontrará um lugar para o fundo partidário, por exemplo, entre os valores   morais.