sexta-feira, 31 de agosto de 2018


UM CADÁVER NA DESREGULADA BALANÇA DA JUSTIÇA
João Eichbaum
Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, foi uma vítima fatal da “prisão temporária”, essa lei infame, que permite encarcerar inocentes, assim reconhecidos pela Constituição Federal. Não resistindo à vergonha de ter sido preso sem culpa, Cancellier se suicidou. Mas, parece que a insolência de sua morte a alguns incomoda e lhes afina as suscetibilidades. Quando um cadáver não exala as devidas suspeitas, detetives há que farejam até o rasto das lembranças deixadas pelo morto.
 O atual reitor da UFSC e seu chefe de gabinete, ambos vivos por enquanto, foram denunciados por crime de “injúria”. O primeiro, por ter presidido cerimônia em homenagem ao falecido Cancellier, sem promover a remoção de cartazes que havia no local, pedindo a punição, por abuso de poder, de “agentes públicos”, cujas fotografias estavam ali estampadas. O segundo, pelo crime de se ter permitido fotografar, nesse cenário de revolta contra os fatos que desembocaram na morte do ex-reitor.
Para transformar em “criminosos” o reitor atual e seu chefe de gabinete, responsabilizando-os em razão de dizeres escritos por “manifestantes não identificados”, que “ofenderam a honra funcional” da delegada Érika Mialik Marena, o agente do Ministério Público invocou a parte do art. 13 do Código Penal que considera causa “a ação ou omissão, sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Quer dizer, reconhece que a “ofensa” foi praticada por uns, mas denuncia outros: é melhor ter na mão dois “criminosos” do que todo o bando deles voando.
A contradição mata a própria denúncia. Se foram “manifestantes não identificados” que “ofenderam a honra funcional” da delegada, como diz, com todas as letras, a denúncia, ela, a excelentíssima senhora, já estava “injuriada”, seu pundonor já havia perdido o resguardo, antes da presença do reitor e de seu chefe de gabinete no local onde havia cartazes de revolta. Portanto, não foram eles, os denunciados, que desencadearam o resultado: a “injúria” já havia sido plantada.
Do Judiciário temos o “prende-solta-solta-prende”, os estardalhaços circenses e muitos outros ditos por não ditos, que afundam no abismo sem fim das coisas sem serventia. Do Ministério Público provêm denúncias nada exemplares, que dissecam fatos penais e selecionam réus. Não há como fugir da insegurança jurídica, que coleia neste país como uma serpente venenosa, inoculando o pavor da injustiça no povo sofrido, como se já não bastasse a corrupção.

terça-feira, 28 de agosto de 2018


NÃO SOU OBRIGADA
Mariléia Sell

Em uma das minhas corridas diárias de Novo Hamburgo a São Leopoldo, de São Leopoldo a Novo Hamburgo e de Novo Hamburgo a São Leopoldo (sim, as vezes encontro comigo mesma no meio do caminho), meu carro resolve fazer a sua rebelião pessoal. A cada acelerada, ameaçava explodir. Não adiantaria de nada parar o carro, abrir o capô e olhar, com aquela cara de quem está seriamente analisando uma situação, a misteriosa engrenagem do motor. Seria como a minha mãe costuma dizer “o mesmo que olhar debaixo do rabo da vaca”. Atrasada, continuei a jornada e logo esqueci o manifesto, talvez tivesse sido algo ocasional, algo passageiro, sem uma consistência que merecesse maiores preocupações. Aumentei o volume do rádio. No dia seguinte, foram duas ocorrências. Sem tempo de ir ao mecânico, descobri a manha: era só não acelerar demais e eu podia dirigir, devagar, bem devagar, mas podia. Atrapalhei seriamente o ritmo do mundo nesses dias.

Liguei para um mecânico super-recomendado, supercompetente, super-honesto, supertudo. Expliquei os sintomas do carro, o ano, a quilometragem, a potência, as válvulas, o tipo sanguíneo e ainda acrescentei, repetindo, como papagaio de pirata, o que me disseram, que talvez fosse problema na injeção eletrônica. Visivelmente ofendido pela minha avaliação amadora e sem fundamento tecnológico-científico nenhum, ele retrucou: “não é eletrônico o problema, é mecânico”, naquele tom de autoridade que anos de prática na oficina lhe deram. Perguntei se ele resolvia problemas que fossem mecânicos e não eletrônicos. “Eu preciso ver o carro”, disse, ainda injuriado. “Bem, e se o problema for mecânico, o que pode ser?”, perguntei. “O problema É mecânico”, retrucou, com uma exagerada ênfase no É. O fato de eu não ter assumido o seu diagnóstico como definitivo o deixou visivelmente aborrecido.  Já sem saber como usar as palavras, pergunto:  “certo, o que é, então?”. “É a embreagem”, disse, sem acrescentar detalhes. Eu que decifrasse o que isso significa. “Isso é caro?”, perguntei, já prevendo rombos no meu cartão de crédito. “Tu vai gastar entre 900 e mil reais”, disse, sem maiores abalos.

Essa interação ocorreu cedo da manhã, eu tinha acabado de chegar ao meu trabalho, atrasada porque não podia acelerar, com uma dezena de pessoas para atender e, de repente, fui tomada de um senso de ultraje tão grande, mas tão grande, que agradeci a avaliação do mecânico e disse que buscaria a opinião de outro profissional. Percebi que ele ficou sem reação. Ele até tentou retomar a conversa. Tarde demais. Ele podia entender de embreagens, mas eu entendia de interações humanas. Desliguei o telefone.

Ao meio dia, acelerando cada vez menos para não ficar empenhada, uma colega de trabalho que acompanhou toda a saga ligou e disse que o marido trabalhava em uma revenda de carros e que tinha o contato de um mecânico de confiança. Peguei o número, sem grande euforia. Nunca tive muita sorte com mecânicos. Nem com pedreiros, nem com eletricistas e nem com técnicos de todas as ordens. Todos sempre fazem eu me sentir uma estúpida garotinha de pré-escola. Mas não tinha opção. Liguei. Dessa vez, economizei nas opiniões e nas perguntas, não queria passar atestado de burrice. O mecânico escutou atentamente. Não interrompeu. Não fez observações com tom de voz irritado. Perguntou algumas coisas e confirmou o diagnóstico do mecânico anterior. Pela primeira vez na vida não me senti na obrigação de saber de mecânica quando falo com um mecânico. Afinal, sei de outras coisas. Afinal, pago um mecânico justamente porque essa não é a minha profissão. Afinal, não sou obrigada a saber nada de mecânica porque nunca vou consertar o meu carro. Afinal, não exijo de nenhum mecânico conhecimentos avançados em linguística aplicada. Paguei a esse mecânico 573 reais e registrei o seu número de telefone!

Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos

domingo, 26 de agosto de 2018


PLANETACHO

BUZINANDO
A região Sudeste, que concentra mais de 50% do eleitorado, esta semana teve congestionamento enorme de presidenciáveis.

SANTO
Paulo Maluf foi cassado no Congresso. Apesar dos pesares, comparado com seus pares bem que ele poderia ser canonizado.

DOADOR
Luciano Huck doou cerca de R$ 250 mil ao PPS. Até aí nenhuma contradição. As eleições no Brasil se transformaram numa espécie de “Quem quer ser um milionário”.

REFORMA
Caso Lula não possa concorrer, o PT irá de Fernando Haddad, embora seja contra a terceirização.

FEIRA
A crise é tão grande, que tem gente fazendo vaquinha para poder ir na Expointer.

CANDIDATO
Já dizia um eleitor gago:
- Eu vou de Ei-ei-mael...

FINAL DE FEIRA
Michel Temer anda sumido até mesmo das fake News.

NO STF
Alcione cantou esta semana com a ministras do Supremo... Estas já fizeram realmente muita gente dançar.

RELÓGIO
Tem candidato que vai ter um espaço tão pequeno no horário eleitoral gratuito, que só vai dar tempo de dizer “tchau”

sexta-feira, 24 de agosto de 2018


O LADO CRUEL DA FÉ
João Eichbaum
Marozia Theofilato foi amante do papa Sérgio III, quando tinha 15 anos de idade e teve com ele um filho, que também foi papa, João XI. Teodora, mãe de Marozia, foi amante do papa João X. O papa João XII teve em sua cama, além da amante de seu pai, uma sobrinha e várias outras mulheres. Corre à boca pequena que a morte o surpreendeu, quando ele copulava com uma mulher casada: chamado à eternidade, foi para o gozo no céu...
Esses são apenas alguns exemplos de quão arrasador é o feitiço do sexo. E são apenas parte de uma história maculada por negociatas, ambições políticas, vendas de indulgências e outras imoralidades que serviram de argumento para que Martinho Lutero fundasse o seu credo religioso.
Mas, antes que Lutero a desmantelasse totalmente, a Igreja Católica lançou mão do contraveneno: o terror da Inquisição, a fé imposta pelo medo do inferno, a transformação da sexualidade em pedra angular do pecado, que fecha as portas da vida eterna.
O medo imposto aos fiéis transformou a face da instituição instalada no Vaticano. Por longo tempo ela se manteve como marca segura de salvação, soberania sagrada, respeitada por monarcas, estadistas, ditadores, e destinada a servir no júri do Juízo Final.
Desde então os papas não tiveram amantes. Cardeais, bispos e padres, passaram a ser tidos como criaturas escolhidas a dedo pelo Espírito Santo, com poderes para abrir as portas do céu. A pompa dos cerimoniais religiosos, a liturgia e os ritos adensavam as forças do ministério sacerdotal: tudo alimentado pela fé punitiva.
Mas, com a modernização introduzida pelos concílios Vaticano I e II, a instituição se secularizou, a ameaça do inferno foi perdendo a força e, por trás dos bastidores, a concupiscência foi provando que não existem mandamentos divinos superiores às funções biológicas.
Hoje, os escândalos clericais por conta da luxúria, revelando a força das leis da natureza, que exigem a continuação da espécie através do sexo, estão desmascarando a mentira da castidade sacerdotal. E a conivência da hierarquia eclesiástica, escondendo, no abismo do silêncio, hediondos crimes sexuais contra crianças, faz a Igreja voltar ao túnel negro de sua história, desdenhando das palavras que ela própria atribui a Jesus Cristo (Mateus, 18:6): “ai de quem escandalizar algum desses pequeninos; melhor fora que se lhe amarrasse ao pescoço uma pedra de mó, lançando-o no mar”.        


terça-feira, 21 de agosto de 2018


NÃO SOU SUA QUERIDA
Mariléia Sell

Aconteceu de novo. Não é a primeira e, certamente, não será a última vez que fui chamada de “querida” em uma reunião de trabalho. A diferença é que agora não fico mais com aquela sensação de incômodo, aquela sensação de desajuste por não ser levada à sério. Agora eu interrompo, para espanto de todos e de todas, quem se dirige a mim dessa forma e digo: “para você, sou professora”. 

Evidentemente, nem todos os homens que fazem uso do termo o fazem com a intenção de diminuir a mulher. Da mesma forma, nem todas as mulheres reconhecem esse uso como uma expressão machista. Um machismo carinhoso, um machismo cavalheiro, mas, ainda assim, um machismo. Estudiosos e estudiosas da análise crítica do discurso vão dizer que é justamente por isso que esse tipo de manifestação, disfarçada de elogio, revestida pelo verniz da gentileza, é tão poderosa, porque ela opera no campo do simbólico, não é tão visível quanto uma agressão verbal, um tapa, um chute, um empurrão do quarto andar. É uma manifestação que confunde a percepção dos mais desavisados e das mais desavisadas.

Não é novidade para ninguém que as mulheres brasileiras têm baixíssima representatividade na política e em outros espaços de poder, mesmo que sejamos a maioria em termos de contingente populacional. De 188 países, ocupamos a vergonhosa posição 142 no que se refere a representação no Poder Legislativo. Isso não vem de graça, vem de uma longa trajetória de desequilíbrio e de perpetuação de mecanismos de desvalorização, sutis ou escancarados, das mulheres. No imaginário social, a mulher sempre esteve atrelada ao mundo doméstico, à maternidade, ao cuidado. Associada às tarefas não remuneradas. Aos homens, sempre couberam as tarefas do mundo externo: a política, as ciências, os negócios, enfim, as tarefas sérias, que exigem comando, raciocínio e decisão. 

Assim, toda vez que uma mulher é chamada de “querida”, “anjo”, “linda”, “meu bem”, “docinho”, “princesa”, “menina”, “guria” no ambiente de trabalho ela é arremessada de volta ao ambiente privado, doméstico, porque esse tipo de manifestação acontece entre pessoas íntimas, na esfera privada. Sempre que uma mulher não é tratada com o mesmo respeito e distanciamento que se tem para com os homens no ambiente profissional, ela é empurrada para um espaço de menor valor social, um lugar de não reconhecimento, um lugar de desqualificação e de invisibilidade.

Quem não lembra da emblemática expressão “tchau, querida”, quando a maioria masculina do congresso votou pelo impedimento da presidenta? Ora, esse uso foi uma alusão à forma como o ex-presidente Lula despediu-se da presidenta em alguns dos áudios vasados pela Polícia Federal. Ou seja, a expressão foi usada na esfera privada, não foi pensada para o espaço público. Quando essa expressão é deslocada do seu lugar de produção, ela assume um tom de deboche, de ironia, de desrespeito à mulher Dilma.  É como dizer: “vai, querida, aqui não é o teu lugar”. É como dizer, fazendo coro à Revista IstoÉ, “volta para casa, querida, você é uma desequilibrada e uma histérica, não serve para o complexo jogo político”. É como dizer, com a condescendência de um pai, “querida, acredite, eu sei como as coisas funcionam”.

Pois eu não estou disposta a voltar para casa. E não sou sua querida. Aliás, anda pouca a minha disposição para ser querida.
Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos

domingo, 19 de agosto de 2018


PLANETACHO

NO RIO
A renovação na política é fundamental. Está aí o Rio de Janeiro que não nos desmente. Lá tem até Garotinho concorrendo.

PLEITO
As eleições presidenciais não passam de um concurso master chef do Estado.

ENTÃO
A dúvida persiste: em Ursal se diz amigo ou companheiro urso?

MAU TEMPO
O dólar durante três dias a quase quatro, quase empata com as temperaturas. A economia brasileira vive um longo inverno.

DO PERU
A torcida do Inter finalmente esta semana pôde cantar: Guerrero...time de Guerrero.

SEGUNDO SOL
Assim que o horário eleitoral gratuito entrar no ar, os mais desatentos podem acabar confundindo os vilões da novela das nove com alguns candidatos.

SAÍDAS
Assistindo aos debates se constata que o Rio Grande do Sul tem várias saídas: Uruguaiana, Santana do Livramento, Jaguarão, Salgado Filho, etc...

REAÇÃO EM CADEIA
Cunha defendendo a candidatura do Lula e Temer elogiando Geraldo Alkmin é o que se pode chamar de gol contra.

PREPARA
Dá uma ideia da realidade da economia tupiniquim atual a notícia de que o grande sucesso em palestras de gestão tem sido a cantora Anitta.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018


SÓ O INFERNO NÃO TEM FRONTEIRAS
João Eichbaum
A madrasta a tinha vendido para um desconhecido, sem que ela o soubesse. Dominada por um homem barbudo, de braços nodosos, foi jogada inerme no porta-malas de um automóvel. Debalde berrou, se esbateu, gritou por socorro. Sufocada, sem ar, chorando, acabou dominada pelo cansaço.
Desembarcaram-na na Líbia, para fazer dela uma escrava sexual. Ela, que nunca tinha encostado sua carne na carne de um homem, se negou ao vilipêndio. Então lhe cuspiram no rosto e a submeteram ao suplício: deitaram-na por terra, amarrando-a com o rosto voltado para o sol. Inerte, sem comida, sem água, o rosto ardido pelas queimaduras, não teve alternativa, senão deixar que lhe extirpassem a dignidade.
Foi jogada no quarto de um prostíbulo imenso e sombrio. Ali, soldados, homens de Gana, da Nigéria e da Líbia, faziam dela o escoadouro de sua lascívia animal. Escarravam nela, espancavam-na. Sob a mira das pistolas dos soldados, era obrigada a lhes satisfazer a luxúria mais sórdida, aquela de que só são capazes as bestas humanas. Por vezes, mais de cinquenta homens dela se serviram, num só dia.
Conseguiu fugir, enganada por uma mulher que, sob a promessa levá-la de volta a seu país, a explorou no meretrício. Fugiu novamente, sendo levada por outro explorador do sexo, num desses barcos clandestinos, que despejam migrantes na costa da Itália. Primeiro em Nápoles e depois em Roma, passou a fazer a única coisa que sabia: prostituir-se. Engravidou, foi repudiada pelos os homens. Foi dormir na rua, vivia de esmolas. Recolhida numa instituição social, exames médicos revelaram: está com HIV. Mas não quer abortar, não quer matar o filho de um pai que nem sabe quem é.
A história dessa criatura, Adije, nigeriana de 24 anos, é uma, entre outras de vários migrantes, contadas pela escritora e jornalista argentina Mori Ponsowi, na revista Piauí. São histórias de seres humanos que, fugindo da desgraça, ou são tragados pelo mar, ou esbarram nas fronteiras da esperança, fechadas por seus donos, os países ricos.
Assim vai a vida na terra. Enquanto alguns celebram o esplendor da noite dos esponsais, outros são condenados à morte. É abissal a desigualdade que separa os que sofrem dos que soltam seu riso superior. Quimeras de sociólogos e filósofos e orações do papa têm o mesmo efeito das opiniões dos motoristas de táxi: nada resolvem. Por tudo isso, perdido num universo que tem as próprias leis, o homem não consegue se desvencilhar dos estigmas da animalidade, do egoísmo e da maldade, que o tornaram o pior espécime do gênero a que pertence, depois que perdeu o pelo e o rabo.

terça-feira, 14 de agosto de 2018


ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE
Mariléia Sell
Os dois formavam um casal de novela: jovens, bonitos, ricos e estudados. Nas redes sociais, ostentavam toda a sua felicidade em dentições perfeitas. A vida nunca lhes negara nada. O futuro era só promessas. Ele defendia os valores cristãos e familiares. Reconhecia a família como a célula mais importante do grande organismo social. Como homem de família, tinha a missão de conduzir os rumos desta célula. Ela achava graça do marido: tão jovem e tão apegado às tradições. Ao mesmo tempo, achava-se amparada por alguém cujos valores eram tão firmemente assentados.

É certo que, às vezes, ela sentia-se um pouco incomodada com a assertividade do marido. Mas nada grave. Acabava cedendo para não contrariá-lo; ele sempre parecia saber o que estava fazendo. Era um homem firme e autoconfiante, não era desses que fraquejavam por falta de atitude. Para evitar aborrecimentos desnecessários com as pequenas miudezas da vida, deixava que ele decidisse as coisas. Às vezes, ele a corrigia nas suas opiniões, mas isso também não era motivo para desestabilizar a relação. Ele explicava detalhadamente a ela como as coisas funcionavam e tudo ficava certo. Pensando bem, às vezes, ela tinha dúvidas mesmo sobre a lucidez do seu próprio raciocínio. Nesse sentido, achava importante ouvir outras opiniões. Assim, ela organizava as ideias e elaborava o mundo a sua volta. Certas irrelevâncias, é necessário saber ignorar, pensava sempre, acionando uma lógica interna de economia. Tinha pavor daquelas mulheres que ficavam polemizando por qualquer coisinha. Achava desnecessário.

Com gosto, ele assumia a tarefa de fazer planos pelo casal. Para não dizer que não ouvia a esposa, as vezes aproveitava uma ideia ou outra e as incorporava nos seus planos maiores. Evidentemente, as ideias dela eram, no mais das vezes, descabidas.  Secretamente, ela ficava lisonjeada ao perceber que o marido acatava sugestões dela, mesmo ele não admitindo abertamente, mesmo creditando-as a si mesmo. Era o seu jeito de validá-la; ela compreendia bem. Ela sempre compreendia.

Por ter uma personalidade muito forte, de quem tem opinião bem cimentada, eventualmente elevava o tom da voz com a esposa. As vezes batia na mesa ou arremessava objetos. Nada demais, é só porque ele tinha muita convicção das coisas, não ficava hesitante e inseguro como tantos outros. Seus olhos não ficavam buscando aprovação alheia, como ela mesma faria. É natural que pessoas com um poder de compreensão mais privilegiado fiquem aborrecidas, vez ou outra, com os que ainda não alcançaram esse patamar de afirmação pessoal. É um pouco cansativo ter que traduzir o mundo o tempo todo. Como se não bastasse a exaustiva tarefa dele, a esposa, vez ou outra, argumentava. A culpa era dela quando as situações saíam do controle, ela deveria saber que o nível de tolerância do marido era baixo. Ela sempre soube, aliás. Ela sempre permitiu o comando dele. Para que provocar agora? Ele não era má pessoa, que ninguém entenda mal. Quando batia nela ou a chutava, era porque circunstâncias muito específicas o levavam a isso. Sempre é preciso considerar o contexto dos eventos para não fazer injustiças ou lançar-se a julgamentos precipitados.

Um dia, superados todos os limites da paciência, ele se viu obrigado a jogar a esposa pela janela. Ela dera para discutir agora; perdera a noção das coisas. Os gritos dela e os pedidos de socorro não foram ouvidos pela vizinhança. Todos sabem que entre briga de marido e mulher não se mete a colher. Acomodado este dilema moral, todos voltam a dormir tranquilos, com as suas consciências apaziguadas, o sono dos justos. Agora não há mais concessões a fazer, roxos a esconder, gritos a abafar. O corpo inerte na calçada é o derradeiro ajuste da esposa ao casamento.

Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos



domingo, 12 de agosto de 2018


PLANETACHO

CASCATA?
Aumento dos ministros do STF terá “efeito cascata” de R$ 4 bilhões. Tipo assim, as cataratas do Iguaçu.

RETROATIVO
Gilmar Mendes soltou mais três esta semana. Só para tirar o atraso...

AVES
O PSDB com tanto espaço no horário eleitoral gratuito terá que ter muito sangue frio. Resumindo, os tucanos terão que se transformar em pinguins...

NO CONGRESSO
A bancada da bala se articula no Congresso. O que deve aumentar muito a venda de carros blindados e coletes.

PERGUNTA
O time do Inter não corre perigo de virar "chacrinha" com a contratação do velho Guerreiro?

JUSTIÇA DIVINA


Maluf usou o celular e acabou quebrando uma das regras da prisão domiciliar e se justificou dizendo que Deus o absolve.

CONSELHO
Depois do primeiro debate dos presidenciáveis, só nos resta dizer:
   - Corram para as montanhas...

PIADAS PRONTAS
·        *Declaração de bens de Romero Jucá informou que o senador “empobreceu” na política...

·                * Suzane von Richthofen deixa a prisão para a saída do Dia dos Pais


sexta-feira, 10 de agosto de 2018


MANUELA, A CANDIDATA
João Eichbaum
A filha da desembargadora tem charme de madame, mas diz que é comunista. Comunista, socialista, trotskista, essas modas pegam na adolescência, na farra da política estudantil. É chique ser de esquerda nessa fase em que, entre prazeres e ócios cotidianos, os filhinhos de papai e mamãe têm casa, cama, comida, e suas cuecas e calcinhas lavadas por mulheres da periferia maltratadas pela vida.
Depois, passada a crise da revolta contra o mundo, que cria intempéries na família com aquele clima do não to nem aí, que contraria os pais, geralmente passa a doença do esquerdismo. Saído da adolescência, e com a perspectiva de não ter o conforto e a segurança da casa paterna, o sujeito é convocado a travar a luta pela vida. Aí, não sobra tempo para quimeras.
Mas, há as exceções, claro. Há quem, ainda à sombra da família bem ou mal constituída, tenha grana para fazer política sem pegar no batente. Gente que leva jeito para enrolar incautos e deslumbrados, com arengas que prometem a felicidade eterna, pode se dar esse luxo, porque vê no Estado o provedor das mordomias que a família lhe proporcionava na adolescência.
Pobre não tem tempo de pensar em política. Pobre tem que trabalhar, e quem trabalha não tem tempo para desperdiçar com veleidades. Mas há pobres muito sensíveis à vida fácil. Esses pegam a trilha da liderança sindical, o único meio que os transporta da condição de explorados para a de exploradores. Aí o cara, sem deixar de ser socialista ou comunista convicto, aproveita os benefícios do capitalismo.
Filha de desembargadora, com diploma de jornalismo obtido em faculdade particular, Manuela d´Ávila foi eleita vereadora aos 24 anos. De seu currículo não consta qualquer tipo de batente, desses de que necessita o pobre, para ter o que comer, o que vestir e onde morar, tendo que levantar às cinco da matina pra ser espremido no busão.
A carreira dela foi um foguete político: deputada estadual, federal. Agora, ela mira o topo. Só não foi indicada oficialmente para compor, como vice, a chapa do PT à presidência da República, porque, do calabouço, o Lula desaprovou o libreto da ópera bufa: um torneiro mecânico, que deixou o nordeste estropiado pela vida, acaba alcançando a glória de traçar os destinos da pátria com a bela filha da desembargadora, criada no berço esplêndido do auxílio-moradia e demais benemerências que os deuses garantem aos príncipes de toga. E aí remendou: mas pro patrício Haddad ela serve...


terça-feira, 7 de agosto de 2018


MIAMI É MELHOR QUE FORTALEZA
Mariléia Sell

Uma experiência sociológica interessante é ficar presa em uma fila, falo presa porque a fila é um lugar compulsório. Inútil resistir, debater-se; a fila é um exercício de resignação, um estágio para a evolução espiritual. Não conheço ninguém que goste de filas, que opte deliberadamente por ficar em filas, embora deva existir alguém nesse mundo. Sempre tem gente do contra! Mas não subestimemos a potência da fila; este lugar tão mundano e tão ordinário já foi merecedor de complexos estudos etnográficos, justamente por revelar práticas sociais igualmente complexas.

Bem, depois de depositar meus 39 itens de metal, conseguir passar pela porta giratória do banco e retirar a senha 4.398, instalei-me em uma cadeira estofada. Hoje em dia, o tempo perdido da espera é compensado com cadeiras estofadas. Quando as hérnias de disco não latejam, os clientes reclamam menos. Comecei a olhar fixamente para o painel das senhas, mas isso, como sabemos, só piora a espera. De repente, meus ouvidos deslizam para uma conversa entre duas senhoras ao meu lado. Elegantes senhoras. Penteadas e escovadas. Cheias de joias. As bolsas custariam o equivalente a um ano de trabalho de uma professora. 

O assunto era viagens. Comecei a me concentrar no tópico, pensando nas férias, sempre tão desejadas e tão distantes no horizonte. Me disfarcei toda, para que não percebessem minha orelha espichada. Olhei reto para frente, para o moço do caixa, magro e desanimado, provavelmente necessitado de férias. O meu ar blasé encobria um genuíno interesse científico; queria entrar no mundo delas. Se me notassem, entretanto, as falas das elegantes senhoras não teriam valor sociológico, pensei. É preciso ter método!

Tinham estado no Nordeste, as senhoras. Em Fortaleza, mais especificamente. Não se cansavam de elogiar as praias e o hotel magnífico, à beira mar. Já no café da manhã, eram mimadas com tapiocas e frutas exóticas por intermináveis garçons. Tomando sucos de mangaba, apreciavam os coqueiros balançando suavemente. A paisagem as fazia esquecer do frio do Sul. O Sul era terra de extremos! Mangaba é riquíssima em vitamina C; excelente para a pele, lembraram, saudosas. As tapiocas há muito já estavam nas suas cozinhas, por ser um alimento leve, ideal para manter a forma.

A essas alturas, eu já estava tomando coco em alguma praia paradisíaca, mas meu idílio durou pouco. A viagem das senhoras não foi só alegrias; infelizmente elas passaram por alguns desconfortos. Em Fortaleza, havia muita gente feia, lamentaram. A feiura é sempre um elemento a ser lamentado! Horrorizavam-se com as peles tão descuidadas, tão esturricadas pelo sol, tão carentes de vitaminas e de sais minerais. Até as crianças já pareciam velhas em miniaturas. “Não comem proteína”, concluíram em uníssono. Como pode alguém não saber dos malefícios do sol? É tão amplamente divulgado hoje em dia! Mulheres de 25 anos aparentavam ter 45 ou mais. Um verdadeiro horror todo esse desleixo com a aparência! Os cabelos também eram descuidados, ressecados, espetados. Mas isso seus olhos sensíveis até superariam, não fossem os dentes. Como conviver com esses sorrisos murchos?

Também as aborreceu a abordagem invasiva dos nativos. Os vendedores ambulantes não as deixavam em paz por um segundo. Facilmente passavam por gringas, tão brancas que eram: “um verdadeiro assédio”. Como não se incomodar com os corpos tortos e ressecados carregando o mundo para vender? Corpos inclinados com o peso da mercadoria. Com o peso da sobrevivência. Inegavelmente, a estética da pobreza é algo que incomoda. Com tanta falta de beleza, ficou impossível para as senhoras abstraírem da realidade e relaxarem. E quem não precisa, nos tempos que correm, abstrair da realidade? Realidade demais estressa; terreno fértil para os radicais livres. E se há algo a ser evitado nessa vida são os radicais livres.  Eles envelhecem.

As próximas férias precisam, definitivamente, ser melhor planejadas, ponderam seriamente. No Nordeste fica difícil para as simpáticas senhoras esquecerem que estão no Brasil. Considerariam seriamente Miami. Se o dólar ajudar!

Mariléia Sell é Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos


domingo, 5 de agosto de 2018


PLANETACHO
MAR
Em meio a um mar de desemprego no País o setor que mais cresce é o mercado de candidatos à vice-presidência.

RESSABIADOS
Com este mercado crescente, os que andam ressabiados são os candidatos à presidência da república. Ressabiados para não dizer temerosos.

VERBAS
Com a proximidade das eleições tudo é feito a toque de caixa...um, dois, três.

ENTÃO
Os candidatos a vice estão motivados. E não é para menos no Brasil de José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer.

NA HORIZONTAL
O horário eleitoral gratuito vai ser uma espécie de o “Brasil que eu quero” dos famosos.

MUITOS
Quem deve ocupar mais tempo no horário eleitoral é o Geraldo Alkmin (PSDB), já que é apoiado por um grupo grande de partidos chamado Centrão. É partido para chuchu.

SER OU NÃO SER
O Brasil virou um self service de vices.

RECLAME
Neymar recebeu mais de um milhão de reais da Gilette para pedir desculpas por sua atuação na Copa. O comercial não foi bem aceito nas redes sociais. Talvez se fizessem alguns cortes...

PROBLEMA
Quantas vaquinhas teriam que ser feitas para pagar os advogados dos donos da Friboi?

O ROTO
Temer criticou as barbaridades dos pré-candidatos durante a campanha. Logo ele que fez um governo bárbaro...