ATÉ
QUE A MORTE OS SEPARE
Mariléia Sell
Os dois formavam um
casal de novela: jovens, bonitos, ricos e estudados. Nas redes sociais,
ostentavam toda a sua felicidade em dentições perfeitas. A vida nunca lhes
negara nada. O futuro era só promessas. Ele defendia os valores cristãos e
familiares. Reconhecia a família como a célula mais importante do grande
organismo social. Como homem de família, tinha a missão de conduzir os rumos
desta célula. Ela achava graça do marido: tão jovem e tão apegado às tradições.
Ao mesmo tempo, achava-se amparada por alguém cujos valores eram tão firmemente
assentados.
É certo que, às
vezes, ela sentia-se um pouco incomodada com a assertividade do marido. Mas
nada grave. Acabava cedendo para não contrariá-lo; ele sempre parecia saber o
que estava fazendo. Era um homem firme e autoconfiante, não era desses que
fraquejavam por falta de atitude. Para evitar aborrecimentos desnecessários com
as pequenas miudezas da vida, deixava que ele decidisse as coisas. Às vezes,
ele a corrigia nas suas opiniões, mas isso também não era motivo para desestabilizar
a relação. Ele explicava detalhadamente a ela como as coisas funcionavam e tudo
ficava certo. Pensando bem, às vezes, ela tinha dúvidas mesmo sobre a lucidez
do seu próprio raciocínio. Nesse sentido, achava importante ouvir outras
opiniões. Assim, ela organizava as ideias e elaborava o mundo a sua volta.
Certas irrelevâncias, é necessário saber ignorar, pensava sempre, acionando uma
lógica interna de economia. Tinha pavor daquelas mulheres que ficavam
polemizando por qualquer coisinha. Achava desnecessário.
Com gosto, ele
assumia a tarefa de fazer planos pelo casal. Para não dizer que não ouvia a
esposa, as vezes aproveitava uma ideia ou outra e as incorporava nos seus
planos maiores. Evidentemente, as ideias dela eram, no mais das vezes, descabidas.
Secretamente, ela ficava lisonjeada ao perceber que o marido acatava
sugestões dela, mesmo ele não admitindo abertamente, mesmo creditando-as a si
mesmo. Era o seu jeito de validá-la; ela compreendia bem. Ela sempre
compreendia.
Por ter uma personalidade
muito forte, de quem tem opinião bem cimentada, eventualmente elevava o tom da
voz com a esposa. As vezes batia na mesa ou arremessava objetos. Nada demais, é
só porque ele tinha muita convicção das coisas, não ficava hesitante e inseguro
como tantos outros. Seus olhos não ficavam buscando aprovação alheia, como ela
mesma faria. É natural que pessoas com um poder de compreensão mais
privilegiado fiquem aborrecidas, vez ou outra, com os que ainda não alcançaram
esse patamar de afirmação pessoal. É um pouco cansativo ter que traduzir o
mundo o tempo todo. Como se não bastasse a exaustiva tarefa dele, a esposa, vez
ou outra, argumentava. A culpa era dela quando as situações saíam do controle,
ela deveria saber que o nível de tolerância do marido era baixo. Ela sempre
soube, aliás. Ela sempre permitiu o comando dele. Para que provocar agora? Ele
não era má pessoa, que ninguém entenda mal. Quando batia nela ou a chutava, era
porque circunstâncias muito específicas o levavam a isso. Sempre é preciso
considerar o contexto dos eventos para não fazer injustiças ou lançar-se a
julgamentos precipitados.
Um dia, superados
todos os limites da paciência, ele se viu obrigado a jogar a esposa pela
janela. Ela dera para discutir agora; perdera a noção das coisas. Os gritos
dela e os pedidos de socorro não foram ouvidos pela vizinhança. Todos sabem que
entre briga de marido e mulher não se mete a colher. Acomodado este dilema
moral, todos voltam a dormir tranquilos, com as suas consciências apaziguadas,
o sono dos justos. Agora não há mais concessões a fazer, roxos a esconder,
gritos a abafar. O corpo inerte na calçada é o derradeiro ajuste da esposa ao
casamento.
Mariléia Sell é
Professora Doutora dos Cursos de Letras e Comunicação da Unisinos
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